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ALÍVIO

Depois de alguns dias, Mirra já começava a fazer pés e cabeças da estranha Casa dos Faladores.

Mesmo sendo um prédio confuso, sem adornos e coisas para diferenciar um corredor do outro, alguns detalhes ainda ajudavam a quem andasse por eles a se encontrar. Mais importante do que os detalhes eram as placas pequeninas acima de cada escada, indicando o número do andar em que se estava.

Quem mostrou as placas para Mirra foi Cadente, que a encontrou no terceiro dia desde que havia se mudado para o prédio, vagando sem rumo ao tentar encontrar o caminho de volta para o próprio quarto depois de perambular já há algumas horas.

Mirra não podia negar que estava um pouco chateada com a demora da amiga para ir vê-la, mas não conseguiu ficar emburrada. Era tão bom ver alguém, e alguém a quem conhecia ainda por cima. Isso porque, depois de alguns encontros constrangedores com os tais 'fãs' de Mirra Demína no primeiro e segundo dia, Mirra havia passado a maior parte do terceiro dia sem ver a sombra de outra pessoa a não ser que olhasse pelas janelas do prédio.

"Aqui me lembra o sanatório que eu fui uma vez." Ela disse a Cadente enquanto subiam escadas para o que Cadente chamava de 'um lugar bom'.

"O que é um 'sana..'"

"Sanatório." Repetiu Mirra. "É um lugar onde colocam pessoas com… problemas."

"Oh."

"Você foi num sanatório porque estava com algum problema?"

"Não… Eu era pequena."

Mirra sentiu o olhar de esguelha de Cadente.

"Menor… Fui com meus pais pra ver uma tia da minha mãe. Eu não podia entrar onde eles dormiam, por isso fiquei do lado de fora com meu pai, mas ainda me lembro de ver o corredor, era… realmente parecido com esses."

"E isso é uma coisa ruim?" Perguntou Cadente, parecendo entender que aquela não devia ser uma recordação muito agradável para Mirra.

"Bem… eu não entendia direito na época o que era aquele lugar, por isso acabei sonhando muito com ele durante algum tempo. Não eram sonhos muito bons."

"Oh…"

Cadente e Mirra continuaram a caminhar em silêncio por um momento.

"Eu não sei o porquê de você ter escolhido ficar nos Faladores." Disse Cadente. "Mas eu fico feliz que tenha se juntado a nós."

Dessa vez foi Mirra quem a olhou de lado.

"Sei que não é um lugar legal e que você poderia ter um quarto bem melhor do que o que você provavelmente tem aqui. Você pode ter outro um pouco melhor se quiser depois, mas… esse lugar ainda é péssimo." Cadente suspirou. "Eu não iria querer isso pra você, mas… já que está aqui, eu fico realmente feliz." A menina, normalmente tímida, sorria genuinamente naquele momento.

Mirra também sorriu. Saber que Cadente estaria no mesmo grupo não era algo decisivo em sua escolha, mas certamente tinha sua importância.

"Hmm…"

"O que foi?" Perguntou Cadente.

"Porque esse lugar…"

"É tão horrível?"

"Ah…" Mirra suspirou, mas acabou assentindo, um tanto desanimada.

"É um dos principais motivos de não termos muitas pessoas dispostas a se juntar a nós."

"Mas… porque?"

"Eu não tenho certeza." Disse Cadente. "Quando cheguei em Metrópole a Casa dos Faladores já era assim, mas dizem que na época do antigo Falador, as coisas eram diferentes."

"Antigo Falador?"

"O chefe dos Faladores antes de Maísa. Parece que ele não se importava que os Faladores tivessem uma vida boa aqui."

"E Maísa se importa?" Disse Mirra, quase que imediatamente se arrependendo de ter dito aquilo e olhando de esguelha para Cadente outra vez.

"Tudo bem." Cadente a assegurou. "Eu também já pensei sobre isso muitas vezes. Maísa não é do tipo que se importe muito com o que os outros fazem ou tem na maioria das vezes, muitos Faladores tem casas ou dormitórios próprios em outros lugares."

"Por isso esse lugar está vazio?"

"Também." Admitiu Cadente.

"Quer dizer que os quartos podiam ser melhores? Porque ter todo esse trabalho?"

Cadente balançou a cabeça.

"Bem, teve uma vez que alguém falou sobre isso perto da Faladora. Eu não me lembro ao certo das palavras que ela usou, mas acho que a única coisa que disse era que 'pra ser um Falador de verdade, nossa Casa deveria ser um abrigo, e não um palácio'."

Mirra franziu.

"É…" Disse Cadente. "Eu também não entendi o que ela quis dizer até hoje."

Depois de subirem mais lances de escada do que Mirra poderia contar enquanto conversavam e ainda usar uma meia dúzia de elevadores, Cadente abriu uma porta e a luz do sol quase cegou Mirra.

Ao conseguir enfim olhar para frente, a cena deixou Mirra deslumbrada.

O céu de Metrópole se estendia além da porta, fazendo um contraste incrível com o corredor fechado.

Mirra seguiu Cadente, pisando numa escada circular feita de grades que subia circularmente para o que parecia ser o terraço da Casa dos Faladores, o que Mirra achava estranho já que ela se lembrava de ter visto o prédio de cima, e daquela vez ele claramente tinha o topo arredondado, feito uma bola gigante.

Olhando para baixo, Mirra não conseguia ver as ruas da cidade, apenas as paredes dos edifícios estranhos e cabos que suportavam pontes ou escadas atravessando o ar. Quanto aos trilhos no céu, estes corriam ao redor e até mais alto do que elas estavam naquele momento. Um carrinho solitário cruzava por cima dos topos ao longe, distante demais pra que Mirra pudesse distinguir quem eram as pessoas que o usavam.

"Acho que agora sei porque esse é um lugar bom." Disse Mirra, sorrindo animada.

"Então vamos ver se vai se surpreender um pouco mais." Respondeu Cadente enquanto as duas continuavam a subir os últimos degraus em curva, virando-se para o prédio novamente ao passar debaixo de uma espécie de cobertura de ferro antes de chegarem a uma porta de vidro fosco.

Mirra se sentia ansiosa depois de escutar Cadente, mas quando a menina abriu de fato a porta de vidro, o deslumbramento de Mirra alcançou um nível além do que ela poderia esperar.

Além da porta de vidro havia… uma floresta.

Não um jardim ou uma plantação organizada, mas parecia que realmente havia uma floresta ali. Mirra teve de olhar para trás por um segundo para se certificar de que ainda estavam numa escadaria ao lado do topo do edifício.

"Por aqui." Disse Cadente, puxando Mirra pela mão ao atravessarem da escada para o solo de terra e ramos.

Se afastando da porta, as meninas se embrenharam pela vegetação. Árvores de todos os tipos se sobrepunham umas às outras, e arbustos coloridos impediam o avanço das duas aqui e ali, mas Cadente sabia onde ir para tomar a rota mais fácil ao redor e por baixo dos galhos.

Luminosidade atravessava as copas altas das árvores, mas ao passarem por um trecho parcialmente mais livre de obstruções, Mirra pôde ver que acima de suas cabeças não havia apenas o céu azulado. Ela também podia ver partes de uma estrutura de metal que se conectava feito uma teia, muito distante no alto. Aqui e ali o azulado do céu também brilhava de forma estranha, se destacando.

"Aquilo é…"

Cadente riu, baixinho.

"O topo da torre é uma abóbada de vidro." Ela disse.

"Uma floresta em cima da Casa dos Faladores… isso também foi obra de Maísa?"

Cadente assentiu.

"E você sabe o porquê disso?"

"Não faço ideia." A menina deu de ombros enquanto passavam debaixo de um tronco tombado entre o chão e a copa de outra árvore. "Só sei que pra mim este é o melhor lugar da Casa."

"O melhor lugar, dentro do pior." As duas riram, mas Mirra não pôde se segurar e disse: "Pensando bem, talvez Maísa só queira que os Faladores não sejam preguiçosos?"

Cadente franziu, pensativa.

"Porque diz isso?"

"O prédio é como um labirinto." Disse Mirra, passando a mão por uma flor rosada ao lado do que parecia o início de um caminho já muito trilhado por onde começaram a caminhar. "E esse lugar… é tão diferente. É bom e… depois de ficar trancada por tanto tempo é…"

"Aliviante?" Disse Cadente, olhando por sobre o ombro.

Mirra suspirou.

"Isso… aliviante."

"E isso quer dizer…"

"Quer dizer que talvez Maísa só quisesse que os Faladores se esforçassem pra chegar aqui. Que fosse difícil."

Cadente não a respondeu por algum tempo enquanto continuavam a avançar pela trilha estreita, passando por grandes pedras musgosas e até um filete de água que corria feito um riacho pelo meio da mata.

"Talvez você não esteja errada." Cadente disse ao começarem a virar uma curva na trilha, desviando de vários troncos que se conectavam formando uma única árvore que mais parecia um bambuzal estranho e cheio de cipós. "Mas não acho que seja só isso." Disse a garotinha, olhando para Mirra. "Acho que ela também…"

Foi nesse momento que Cadente trombou com outra garota que vinha na direção oposta, andando depressa.

Cadente caiu para trás, mas a outra menina apenas cambaleou por um momento, o que não foi o bastante para a garota deixar de xingar a plenos pulmões: "Ei, você. Olhe por onde anda!"