O que se procura, quando se tenta dominar a alma do outro? O que se procura capturar, aprisionar? Por que causar dor e profunda tristeza? O que se procura na outra alma, que tanta falta sentimos na nossa?
Apontando para as majestosas florestas aos pés das montanhas os grandes demônios ordenaram aos seus exércitos que as tomassem, e a todos os seres que nelas vivessem.
Determinados e confiantes urdiram planos e tramaram contra os povos das florestas. Seguindo pelo norte os contornos de uma grande e monstruosa serpente, que despencava para as florestas para se tornar o maior rio da terra, eles desceram em cascatas ameaçadoras.
Porém, os seres das florestas já sabiam que algo ignominioso acontecia sobre as montanhas desde a abertura do portal e que, em silêncio, tramava sua destruição.
Desejosos de saber exatamente o que teciam contra seus povos enviaram espiões alados e terrestres, que lhes contaram que estava para acontecer uma grande invasão, porque o grande objetivo não eram as florestas, mas toda a terra baixa.
Também disseram que os povos das montanhas estavam subjugados, sombras do que tinham sido. Relataram que seus corpos se reformaram, como se outras raças tivessem se formado sob o jugo dos demônios, que passaram a procriar com algumas pessoas demônios que lá existiam. Mas, o mais terrível, foi quando lhes disseram que boa parte da população era usada como alimento, sacrifícios e reserva de energia para o portal. E essa era a razão para a iminente guerra: eles queriam aumentar a força do portal para abrir de vez esse mundo.
Também disseram que procuraram os revoltosos, o que não foi fácil, porque eles estavam muito bem ocultos e quase os perderam várias vezes. Mas, por fim, conseguiram contatá-los. Os rebelados eram homens e pessoas dos mais estranhos tipos e poderes. Eles já haviam tentado, em outras ocasiões, expulsar os demônios, que chamavam de "os invasores voadores", e destruir o portal. Sofreram pesadas baixas nessas tentativas, sempre infrutíferas. Desconfiados e arredios a princípio, logo ficaram esperançosos assim que souberam da natureza da missão que os espiões desempenhavam. Então lhes contaram tudo desde o início, e disseram que havia muitos descontentes entre o povo, porque aquele povo fora um povo bom e correto antes de terem sido dominados e corrompidos. Insistiram que muitos mais se juntariam a eles se lhes fosse mostrado que havia possibilidades e lhes fosse dada uma luz que os guiasse para fora da escuridão que os oprimia.
Alianças foram urdidas entre os revoltosos e os espiões, que se tomaram de ânimo com a guerra iminente.
Por fim, contaram que souberam que os portais do interior estavam bloqueados e inativos, fora do alcance dos demônios, informação que fora conseguida por seus feiticeiros, tendo em vista que não haviam conseguido localizar nenhum deles, pois que os anjos impediam que fossem colocados à vista.
Mehrarin observou Aidanua e Zeban, que seguiam o relato com grande atenção.
- Temos que formar um conselho de guerra – disse Anu naqueles dias.
Sabedores da invasão, em silêncio os seres das terras baixas, presididos pelo conselho de guerra, porque para a guerra haviam se juntado, reuniram imenso exército para opor-lhes a sua vontade, e se denominaram de danatuás, o "ajuntamento dos poderosos", e se prepararam para a guerra.
Atentos, os danatuás aguardaram. Bem sabiam que não conseguiriam passar pela floresta, porque a floresta não permitiria, e porque os povos que lá moravam eram arredios e bravos demais para serem dominados. Eles acabariam tendo que evitar as florestas e acabariam descendo pelo passo central.
Num dia especialmente frio de inverno, sob um céu inigualavelmente azul, a invasão teve início e uma grande guerra começou, a maior guerra à qual os vivos se esforçariam em sobreviver; uma guerra tão grande, vasta e terrível que seria chamada por todos de a guerra dosvivos, que dizimou incontáveis vidas de várias espécies de seres e envolveu todas as terras conhecidas.
Por quase 20 ciclos do sol os seres empreenderam uns contra os outros, e muitos lugares se tornaram lugares vazios por longo tempo.
Lentamente os thianahus, porque era assim que os dominados passaram a se chamar, foram recuando, até que, finalmente, abandonaram as terras baixas, deixando apenas seres duros e uma terra arruinada e cheia de chagas para trás. Sob seu domínio mantiveram apenas uma base no meio da densa floresta do extremo norte, no sopé das montanhas, que chamavam de base do inferno.
Provavelmente, ao que se saiba, nunca tantas espécies diferentes uniram seus esforços por algo, se lançando em campanha de tal envergadura. Inimigos se tornaram fieis companheiros, pessoas se submeteram às decisões até mesmo de homens, e devoradores de homens e seres passaram a se alimentar apenas dos inimigos que caçavam.
Talvez tenha sido isso, essa renovação de atitudes de seres antes não afeitos, mergulhando todos em uma poderosa e vibrante energia, que tenha feito os povos livres prevalecerem.
Foi no final de outono, quando as montanhas estavam se embranquecendo, que os povos livres surgiram e tomaram a direção do lago sagrado.
Durante a marcha em direção à cidade o exército se dividiu em três, os dois menores se dirigindo para os flancos das montanhas, onde ficariam escondidos, prontos para atacar de surpresa e dividir o inimigo, barrando a subida dos que retornavam escorraçados das terras baixas.
Após muitas horas de caminhada os danatuás avistaram, ao longe, um grande ajuntamento de pedras, e entenderam que era a cidade mágica onde ficava o portal. A caminhada até a cidade não foi fácil, com várias emboscadas e escaramuças testando suas vontades sob aquele frio intenso e terrível. Muitos guerreiros foram perdidos, compensados em parte pelos revoltosos que iam se juntando às centenas, trazidos pelas notícias que se espalhavam de que os libertadores prometidos por suas velhas lendas haviam surgido da borda das montanhas.
Anu, o grande general, o formidável lobisomem guerreiro, cercado por alguns espiões e pelos chefes dos revoltosos, ouvia-os acerca do terreno e dos inimigos enquanto examinava as cercanias.
A cidade estava assentada dentro do que parecia ser um largo leito de um velho rio há muito seco, numa ponta seca do lago. De seu lado direito via-se uma larga e ampla plataforma sobre um platô, para onde levou seu exército. Encontrando pouca resistência rapidamente lá armaram acampamento. A caminhada fora extremamente dolorosa naquele ar rarefeito; muitos fraquejavam pelo caminho, e tiveram que ser carregados. Uma chuva de flocos brancos precipitava-se do céu cinza, que a tudo ia cobrindo de branco solitário. Os sons ficaram pesados e pareceram mais ocos naquele ar.
Anu aproximou-se da borda do platô e olhou para a cidade e para o lago, aninhados na tarde que morria. O dia ia findando, vermelho sangue envolvendo o sol; um vento frio corria raivoso sobre os exércitos, fazendo redemoinhos dos flocos de neve.
Havia solidão naquele vento.
Como poderosa muralha o imenso exército dos thianahus cingia a cidade. Acima dela, condores, sombras e mantas estavam em vigília. E, lá ao longe, favorecido pela sua visão acurada, identificou o local mais protegido, um imenso e grosso portal escavado na pedra.
O céu ainda estava longe de clarear quando o exército começou a acordar. A neve parara durante a madrugada e sumira do chão. Após uma refeição reforçada e rápida a todos foi fornecida uma provisão de folhas entregue pelos revoltosos, que rapidamente se puseram a mascar. O alívio foi imenso quando as respirações se tornaram mais fáceis.
Nem bem o sol nasceu no leste e tocou o topo do platô os danatuás já estavam preparados. O exército, num perigoso silêncio de predador, se posicionou na borda do platô, olhando para a cidade que despertava.
O poderoso e gigantesco Anu, os pelos arrepiados, parecendo tê-lo tornado ainda maior, ergueu-se à frente do imenso exército dos danatuás.
- Ali – apontou para baixo, – estão os que querem destruir nossas vontades. Esses são dominados por demônios, aqueles que vimos como trapos flutuando no vento. Que nossas vontades os queimem, que nossas maldições e nossas lanças e flechas os destruam, porque não permitiremos nem mesmo que voltem para seu mundo – gritou com as garras da pata direita estiradas para o céu vermelho.
Com os olhos estreitos virou-se para a cidade.
- Nós... – gritou, tomado de profunda ira, – nós somos os danatuás, e vocês nos despertaram, e não permitiremos que vivam mais.
Em resposta uma onda de gritos e urros poderosos explodiu no exército danatuá, os olhos famintos dos seres fixos na cidade que os observava em silêncio.
A um sinal de Anu uma nova onda, agora de grunhidos de caçadores preparando o bote, percorreu o exército dos danatuás, iluminado pelo sol matutino e frio.
Então Anu, num gesto seco, levantou um braço e o desceu num movimento abrupto na direção da cidade. Com um brado despejou toda sua energia e se lançou encosta abaixo.
Como se liberados de uma pressão violenta, lobisomens, anaqueras, arranca-línguas, homens, curupiras, ellos e todos os outros alistados começaram a descer atrás de Anu em desabalada carreira, seguidos no ar pelas majestosas harpias e coris-caririns, anaxauras e velhos grumas. A poeira se levantou, os corações cresceram, o vento ficou mais veloz.
Na cidade aninhada no vale, ainda na penumbra que se enfraquecia cada vez mais, o exército dos thianahus aguardava, armas em prontidão tanto no céu quanto na terra, olhos fixos no exército que descia o platô na companhia da luz do dia.
Dos muros e pátios, e em toda a volta da cidade os thianahus fizeram alvoroço, gritaram imprecações e ameaças, enquanto no céu, acima deles, grandes e pequenas aves nunca antes vistas naquelas terras se batiam com os condores, sombras e mantas.