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Capítulo Único

Babilônia, ano trinta e nove. Uma tarde como qualquer outra, soldados em fila nas paredes norte e sul da sala do trono fazem guarda para o rei Gilgamesh, um homem grande e imponente, com longos cabelos negros e barba grossa, que tem como rotina permanecer em seu trono por horas para receber relatórios, visitas e outros assuntos que lhe dizem respeito.

Ao seu lado sua braço direito, Ishtar. Sua general mais experiente, estando ao lado do rei desde seus dias como mercenário até o momento em que tomou o trono de Uruk para si. Uma mulher tão perigosa quanto bonita, longo cabelo castanho escuro e tatuagens por todo seu corpo, sempre empunhando uma lança em sua mão e uma espada em sua cintura.

Em uma das filas, uma soldado mantém o olhar fixado na direção de Gilgamesh e Ishtar, a soldado Siduri faz parte das forças do rei a cinco anos, sofrendo diversas lesões em batalha, a mais proeminente sendo a cicatriz de um corte que levou acima do olho direito. Cicatrizes sendo um troféu para guerreiros, a soldado não esconde sua marca com acessórios ou mesmo usando seu cabelo roxo. Sua indiscrição chama a atenção de seu companheiro de esquadrão, Enkidu, que mantém guarda ao seu lado. Discretamente ele tenta chamar a atenção de Siduri com pequenos toques e ruídos baixos, no entanto ela permanece a encarar o rei.

Às cinco horas da tarde o rei e a general se retiram para conversar em particular com um mensageiro que chegou ao palácio, deixando os soldados sozinhos até que retornassem. Enkidu aproveita a oportunidade e puxa com força o ombro de Siduri para repreender sua companheira.

— Pare de olhar para o Rei! Você vai acabar tendo problemas.

Siduri se enraivece mas antes de dizer algo, o próximo soldado de sua fila entra na conversa, para a surpresa dos dois.

— Não é para o rei que ela olha. É para a general Ishtar.

Enkidu abismado olha para o soldado à sua direita e logo volta a encarar Siduri a sua esquerda, curioso e confuso ele pergunta para sua companheira sem hesitar.

— A general? Não sabia que você era…

— Não seja besta! Não olho para ela desta forma.

— Então?

— Só não acho justo que apenas ela possa ficar ao lado de nosso rei. Nós nos arriscamos em cada batalha em nome dele. Também merecemos nossa glória.

Enkidu não se move em choque por alguns segundos, mas logo volta a si e com seu punho direito acerta um soco no ombro de sua companheira de esquadrão que não parece gostar do gesto.

— Quer parar com isso?! Já está me irritando!

— Pare você de dizer estas coisas! Se chegar aos ouvidos do rei você pode acabar perdendo a cabeça.

— Continue dizendo o que posso ou não fazer e quem vai perder a cabeça é você!

— Não, continuem discutindo e os dois vão perder a cabeça.

Fala outro dos soldados em guarda enquanto aponta com os olhos em direção à entrada do salão do trono. Siduri e Enkidu rapidamente voltam a posição ao perceberem que Gilgamesh e Ishtar voltam para o trono. Os dois caminham por entre as duas filas de soldados, passando pela Siduri que segue o rei com os olhos, se perdendo em pensamentos.

Em sua cabeça imagina um quarto do mais puro branco, do piso ao teto, da mobília aos lençóis. Dentro apenas ela e o Rei, um de cada lado do quarto, cruzando os olhares esbanjando desejo. Vestidos com roupões brancos, os dois lentamente se despem sem cortar o contato visual. Lentamente as vestimentas caem ao chão e os dois caminham passo por passo até se encontrarem em frente a cama. Siduri suavemente passa a mão direita no peitoral definido de Gilgamesh que em resposta coloca seu braço direito ao redor da cintura da mulher, a puxando para perto até que seus corpos sentissem o calor um do outro. Gilgamesh usa a força de seus grandes músculos e ergue Siduri para que seus rostos se encontrem. A respiração ofegante dos dois se cruzam enquanto seus lábios ficam cada vez mais próximos…

Enkidu volta a bater discretamente em Siduri com seu cotovelo, fazendo a mulher sair de sua fantasia e voltar à realidade. Os olhos de Siduri se estreitam e seus dentes rangem enquanto ela sai da formação e segura Enkidu pelo colarinho se seu uniforme, no entanto a fúria da mulher se desfaz ao notar o que está causando tumulto em frente ao rei, cercada por cinquenta soldados e a general Ishtar. Todas as pessoas no salão olham para a cena enquanto Siduri lentamente solta seu companheiro e olha mais uma vez para Gilgamesh, agora com medo em seus olhos.

Naquela mesma noite, após todos os soldados voltarem aos seus postos, Siduri e Enkidu permanecem no palácio varrendo o chão como punição ao comportamento inapropriado que demonstraram em frente ao rei. Enkidu segura a vassoura com força, reprimindo a vontade de usá-la como arma contra Siduri que lentamente varria a poeira de um lado para o outro sem parecer se importar em cumprir sua punição. De tão irritado ele mantém as costas viradas para sua companheira.

— Inacreditável! Isso que ganho por tentar ser um bom amigo.

— A culpa é toda sua. Não sei porquê reclama. Se não tivesse me irritado, não estaríamos aqui agora.

— Você não pode estar falando sério. Invejando a general, cobiçando o rei e se enfurecendo por nada, tudo no meio de sua guarda. Mesmo assim ainda tem a audácia de dizer que a culpa foi minha!

— Sou um idiota mesmo. Deveria ter deixado que fosse pega e punida por encarar a general. Não sei porque sempre pulo para defender você.

— Ao menos pode largar de preguiça e varrer direito esse…

Enkidu se vira para chamar novamente a atenção de Siduri, no entanto se enfurece ao ver apenas a vassoura escorada na parede ao lado da porta de saída. O homem enfurecido respira fundo para manter a compostura e voltar para sua tarefa, agora que Siduri o largou sem cerimônias ele tem que terminar sozinho ou sofrer mais uma punição.

A lua desaparece por trás das casas feitas de tijolos de pedra e barro, enquanto o sol surge do outro lado. Enkidu caminha pelas ruas de terra batida, arrastando os pés e com a expressão séria, suas olheiras indicam a noite em claro que passou varrendo toda a extensão do palácio sem ajuda. Seus olhos encontram a placa de madeira com o símbolo de uma garrafa pendurada sobre a porta de uma das casas, sem hesitar ele segue para dentro do local.

O local em questão é o bar de Siris, um local bastante frequentado por soldados do rei e o único bar na Babilônia com a fama de permanecer aberto vinte e quatro horas por dia. O local não era grande, apenas meia dúzia de mesas e o balcão com a mesma quantidade de cadeiras, em dias de grande movimento é comum ver a rua em frente ao bar tomada por soldados, moradores e turistas.

Enkidu entra pela porta e após uma simples inspeção ele avista Siduri debruçada sobre o balcão. O homem dá passos pesados em direção à sua companheira, chegando ao seu lado notando o sono em que ela se encontra, ele então se vira para o vendedor atrás do balcão que o atende eficientemente ao pedir um copo de cerveja. O vendedor coloca o copo sobre o balcão em sua frente e cobra uma moeda de prata pela bebida. Enkidu pega de sua cintura uma pequena bolsa de couro de onde ele retira duas moedas de prata, colocando elas sobre o balcão e pegando o copo de cerveja. O homem bebe um grande gole deixando apenas metade da bebida no copo, o qual ele vira sobre a cabeça de Siduri que pula para longe do balcão em resposta.

Furiosa a mulher limpa o rosto sujo de cerveja com a mão e encara Enkidu com os punhos cerrados.

— O que foi isso?! Se está querendo arrumar briga era só pedir, já estava com vontade de quebrar a sua cara mesmo!

Enkidu permanece calmo, voltando a colocar o copo sobre a mesa, se desculpando com o vendedor antes de se virar para sua companheira enfurecida.

— Sinto muito pela sujeira, espero que a moeda de prata pague pelo inconveniente.

— Hey! Não me escutou!

— Você passou a noite bebendo enquanto eu limpava a sua sujeira. Desta vez não vou relevar.

— Pra mim está ótimo! Vamos lá pra fora resolver isso!

— Não vim aqui para começar uma luta. Só queria avisar que não irei mais cobrir você. Vou ir para minha casa dormir um pouco antes de voltar ao meu posto. Passar bem, Siduri.

Enkidu passa por Siduri em direção à porta do bar sem olhar em seu rosto, o que faz o sangue da mulher ferver. Siduri agarra a gola de Enkidu e o joga contra o balcão com tanta força que o faz cair sentado pelo choque. Dois soldados que acompanhavam a cena se levantam da mesa em que estavam e tentam segurar a mulher descontrolada.

O primeiro soldado segura seu braço esquerdo, mas Siduri reage rapidamente com uma joelhada em seu estômago, o soldado se curva para frente pelo impacto e Siduri aproveita para acertar um gancho com seu punho direito direto no queixo do homem que cai desacordado.

O segundo soldado reage ao ataque ao seu colega puxando a espada de sua cintura com a mão direita, Siduri percebe isso e em dois passos rápidos já está em frente ao outro homem, segurando seu braço direito com as duas mãos e usando o peso dele como arma, ela o joga por cima do ombro sobre a mesa de madeira que quebra em pedaços.

Enkidu recobra os sentidos a tempo de ver Siduri derrubar com facilidade os dois homens. Ele se levanta e avança contra a mulher na tentativa de segurá-la. Aproveitando que ela olhava para o soldado que acabou de derrubar, Enkidu a segura por trás em um abraço de urso.

— Pare com isso, Siduri!

A mulher não responde com palavras e sim com um pisão no pé de Enkidu, colocando seu peso no garrão direito e jogando toda essa força nos dedos do pé de seu companheiro, quebrando alguns deles. Enkidu perde a força em seus braços pela dor em seu pé e Siduri aproveita para acertar uma cotovelada nas costelas de Enkidu, se livrando do abraço indesejado. Enkidu dá um passo para trás, mas ao colocar o peso de seu corpo sobre o pé quebrado, a dor o força a cair de joelho. Siduri não hesita e com a perna direita chuta a cabeça de Enkidu, o jogando ao chão junto dos outros dois soldados.

Enquanto vários clientes correm para fora do bar e o vendedor se esconde atrás do balcão, Siduri grita para quem quiser ouvir.

— Alguém mais vai querer tentar a sorte comigo?!

— Posso me voluntariar?

A voz familiar vem da entrada do bar. Siduri vira o rosto na direção da porta e seus olhos dobram de tamanho ao ver Ishtar entrando no estabelecimento. Em vestimentas casuais, um vestido vermelho vinho, sem sua lança ou espada, era uma visão rara de se ter.

— Estava indo me encontrar com o rei, mas cruzei com alguns moradores que me reportaram uma de meus soldados causando tumulto. Prefiro que você me siga sem causar mais problemas até o palácio, onde irá passar um tempo na prisão.

— Hump! Você fala grande mas é só. A única razão para comandar os exércitos é porque Gilgamesh usa você como…

— Meça suas palavras. Posso tolerar o que diz a mim, mas não irei permitir que use o nome de nosso rei de forma tão vulgar. Este é o primeiro e último aviso que irei lhe dar.

Siduri dá as costas para Ishtar e anda até o balcão do bar, onde pega o copo que Enkidu usou antes com a mão direita e com a esquerda ela puxa o vendedor de trás do balcão.

— Encha meu copo com cerveja ou irei encher com seu sangue!

Ishtar permanece em guarda, não querendo colocar o vendedor em perigo ela acena com a cabeça para ele fazer o que a mulher pediu. O homem assustado enche o copo da mulher e enquanto ela bebe até a última gota ele pula o balcão e corre para fora do bar.

— Siduri, não é? Você é a soldado que foi punida ontem. O rei ordenou que você fosse levada à prisão, mas o convenci de lhe dar apenas uma punição leve. Parece que devo desculpas a ele.

Siduri termina de beber e ainda segurando o copo ela volta a olhar para Ishtar com olhos que poderiam matar. Ishtar ergue a guarda ao perceber que palavras não irão resolver.

— Você derrubou três soldados treinados sozinha, reconheço que é forte. Mas não pense que pode me derrotar no estado que está.

Siduri vira o rosto e cospe no chão. Ao voltar a cruzar o olhar com Ishtar, Siduri joga o copo contra a mulher e avança para cortar a distância. Ishtar se vira para a direita para desviar do copo, deixando sua esquerda desprotegida para Siduri que tenta conectar um soco com seu punho direito, mas Ishtar acerta o queixo da soldado primeiro com seu punho esquerdo.

Siduri não recua pelo golpe e segura o braço esquerdo de Ishtar com as duas mãos, Ishtar gira o corpo para a direita, ficando de costas para Siduri que por utilizar as duas mão para segurar a oponente se tornou incapaz de defender a cotovelada direita que Ishtar desferiu em suas costelas.

Com a força do golpe, Siduri solta o braço esquerdo de Ishtar que então o usa para acertar outra cotovelada na soldado, desta vez em seu rosto, a fazendo cair.

— Já é o bastante?

Ainda no chão, Siduri atende a provocação tentando chutar as pernas de Ishtar, que apenas se afasta. A soldado volta a ficar de pé e com a perna direita tenta chutar Ishtar, mas a general segura sua perna com as mãos e ao girar o corpo joga Siduri pela porta para fora do bar.

Siduri sacode a poeira e se encontra cercada por soldados. Ela levanta e começa a encarar um por um, mas Ishtar sai do bar e chama a atenção de todos no local.

— Não quero que interfiram. Ela faz parte de meu exército, é minha obrigação lidar com seu comportamento inadequado.

Siduri ri ao encarar Ishtar.

— Palavras bonitas, mas no segundo que colocar você no chão todos vão pular em cima de mim.

— Palavras grandes para alguém que não acertou um único golpe ainda.

Siduri se enfurece, saltando com um chute giratório destinado ao rosto de Ishtar, que se inclina para trás, desviando sem dificuldade. Siduri aproveita o movimento do primeiro chute e liga um segundo, agora destinado às pernas da general, que pula para desviar. Siduri tenta pressionar sua oponente com seus socos, mas cada um só encontra o ar enquanto Ishtar com o mínimo esforço continua a desviar. Siduri em frustração se joga contra Ishtar com os braços abertos, tentando derrubar a general mas encontra uma joelhada no queixo no meio do caminho. Ishtar continua na ofensiva ao socar o estômago de Siduri, a fazendo curvar para frente e em seguida Ishtar junta as mãos acima da cabeça e golpeia Siduri nas costas, fazendo a soldado voltar ao chão.

Ishtar se afasta de Siduri que tenta recuperar o fôlego enquanto cambaleia para ficar de pé. Com a mão no estômago, ela volta a encarar a general. Salivando de raiva, e pelo soco que levou, a jovem soldado continua a manter a pose sem aceitar a derrota.

— Depois de tudo que fiz em nome do rei, tudo que recebo é humilhação em retorno.

— Não fale asneiras. Você causou isso a si mesma. Agora pare de se rebaixar e aceite sua punição. Não piore ainda mais as coisas.

Siduri limpa a boca com o braço e volta a cuspir no chão, agora na direção de Ishtar.

— Vou mostrar a você quem está se rebaixando. Vou limpar o chão com seu rostinho bonito e depois jogar sua cabeça nas mãos do Gilgamesh para mostrar o que ele perdeu ao me ignorar.

Ishtar não responde a provocação, no entanto o seu silêncio pesou o ar no local. A general se vira para os soldados que cercavam o local. Ela puxa a espada da cintura de um deles, depois volta para onde estava. Ishtar joga a espada aos pés de Siduri, que não tira os olhos da general.

— Vamos, pegue! Você vai precisar de uma lâmina se pretende arrancar minha cabeça.

Siduri se abaixa e pega a espada com a mão direita. Ela encara a si mesma no reflexo da lâmina antes de voltar o olhar para Ishtar que permanece parada, esperando que a soldado tome a iniciativa.

Siduri controla sua respiração e pela primeira vez durante a luta demonstra algo que pode ser considerado calma. Ela começa a caminhar, diminuindo a distância entre ela e Ishtar. Siduri para de caminhar, mantendo um braço de distância entre ela e a general. As duas continuam se encarando, esperando para ver quem daria o primeiro golpe. As duas mantêm os braços abaixados em uma postura relaxada enquanto a plateia que se reuniu para assistir não mexe um músculo ou faz um ruído.

Siduri quebra o silêncio dando o primeiro golpe, com o punho esquerdo ela tenta acertar o rosto de Ishtar que desvia o golpe com o braço direito. Siduri utiliza o primeiro golpe como distração e tenta apunhalar a general com a espada que segura na mão direita, mas Ishtar é rápida o bastante para virar o quadril para a esquerda e desviar do golpe. Sem dar tempo para a soldado se recuperar, Ishtar segura o pulso direito de Siduri com sua mão esquerda e com a direita acerta o pescoço da soldado, tornando difícil para ela respirar. Ishtar segue o ataque ao torcer o punho de Siduri com força e precisão o bastante para deslocar os ossos, fazendo a soldado gritar pela dor e soltar a espada que é pega por Ishtar e em um único movimento a lâmina faz a cabeça de Siduri cair ao chão, enquanto seu corpo segue em atraso.

Ishtar larga a espada ao chão, junto do corpo de Siduri. Ao mesmo tempo, Enkidu surge de dentro do bar e cai de joelhos enquanto é encarado pela cabeça decapitada de sua amiga. A general se vira para os soldados e começa a dar ordens.

— Limpem a rua imediatamente! Após isso, encontrem o dono do bar e digam que iremos pagar pelos estragos causados ao bar, já que o responsável foi um de nós.

Ishtar volta a olhar para Siduri e logo segue seu caminho em direção ao palácio, deixando para trás apenas a lembrança da soldado rebelde que sucumbiu aos seus pecados.