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3 - Herege

Os sacerdotes, ao que lhe pareciam, havia a levado para um quarto pequeno, sem mobília e o chão coberto de palha.

Pela pequena janela, Amanda notou que o dia havia se transformado em noite. Ela se abraçou com a pele fria e pegajosa, tremendo na escuridão do quarto. O calor insuportável que estivera sentindo apenas uma hora antes, virou um frio horripilante. E seu estômago começava a roncar de fome.

Enquanto sentia uma lágrima escorregar, se perguntava o que diabos estava acontecendo. Tudo era muito confuso. Até sua visão estava perfeita, assim como sentia-se forte como nunca se sentiu em toda sua vida. . Do nada.

Para bem da verdade, nada parecia real! Sem dúvida, era o sonho que sempre tinha. Ter uma saúde e visão perfeitas.

Mas ao mesmo tempo que pensava naquilo como sonho, quanto mais pensava nos pais preocupados ao não encontrá-la em seu quarto, as lágrimas continuavam fluindo.

Seus pais ficariam preocupados? O que aconteceria quando percebessem que ela sumiu? Seria considerada desaparecida ou morta?

Se não estivesse sonhando, onde é que estava?

Ninguém havia dito muito a Amanda, exceto que era uma herege. Alguns dos sacerdotes até mesmo bateu em sua cabeça com força no caminho até aquele quarto, como se levassem uma bruxa para ser queimada durante uma inquisição. Doeu muito para ser um sonho.

Outros monges, o que fossem, apareciam nos corredores falando palavras que ela não conhecia, cuspindo no chão onde passava, outros arranhavam os ombros como se fossem garras de gatos.

Amanda havia achado curioso o movimento, tendo ela visto estátuas de gatos ao redor, em pequenos altares. Ela lembrou-se do Ensino Médio, e das aulas de História sobre culturas antigas, como o Egito. Mas aquele lugar não parecia o Egito. Tudo era tão novo, recente e havia tecnologia. Percebeu vários lustres em forma de orbes presos nos pilares, alimentados por eletricidade.

Onde ela havia ido parar? E como?

Será que ela havia sido abduzida por aquela luz prismática?

A sua cabeça conseguia lembrar apenas das pontes de arco-íris de Heimdall, da mitologia nórdica; às vezes, aparecia em sua mente um disco voador lançando um raio extrator.

Chorou um pouco mais, sentindo os olhos começarem a inchar. Havia passado todo o dia naquela sala, chorando, encolhida. Nenhuma vez pensou em fugir, ou procurar um caminho para fora daquele lugar. Seu corpo inteiro estava entorpecido com a repentina situação.

Enquanto fungava, tremendo-se com aquela ideia de envolver marcianos em tudo aquilo, ouviu um estampido de fechaduras e rangido de dobradiças velhas. Espiou por cima do ombro, notando a entrada de pessoas que falavam alto e ao mesmo tempo.

Assim que as vozes pararam, Amanda conseguiu ver um dos monges depositar um orbe de luz num nicho perto da porta e ajustou a luminosidade com algum mecanismo da lâmpada.

A luz iluminou a presença de três homens. Um ela viu durante o que lhe parece uma manhã turbulenta; o outro não conhecia, porém, atentou-se a sua aparência de monge, com cabelos raspados, maquiagem escuras nos olhos e trajando um manto de penas escuras.

Mas foi a pessoa que vinha à frente, que chamou muito a atenção de Amanda.

Ela soltou um berro, tentando encontrar um lugar para se esconder.

Amanda não tinha ideia do que estava vendo. Sua aparência tinha traços humanos, mas o tom de sua pele era puramente branco — como se tivesse se coberto com pó de arroz, ou algo parecido. Os olhos eram prateados, e mudavam para outra cor feito de um gato. Vestia uma túnica branca de seda, que mostravam suas partes íntimas, assim como a composição magra. Adornos dourados cobriam seus braços, e o cinto que colava sua túnica em sua cintura brilhava feito ouro.

— Que recepção calorosa — sorriu o humanoide, e dentes brancos com caninos longos surgiram.

Amanda sentiu o coração estrondar no peito. Aquela pessoa não era humana.

— Alertaram-me ainda cedo da manhã, sobre uma situação acontecendo no Templo — disse com a voz mais áspera do que os monges que vira mais cedo. — Um ankham foi enviado do mundo dos deuses através do Portão do Herói, sem qualquer ritual sagrado.

Ninguém se moveu, após seu sussurro final. Amanda sentiu a dor de cabeça piorar. Ela não tinha ideia se aquilo era uma acusação, só que não entendia nada do que ele estava falando.

A pessoa olhou para trás. Espiou para seus companheiros, erguendo a mão.

— Deixe-nos a sós! — exigiu com um tom mais sombrio.

Seus companheiros se entreolharam, então, saíram do quarto sem contestar. A porta bateu com estrépito quando se foram.

Amanda sentiu um grande terror, sentindo suas pernas tremendo quando olhava para expressão aterrorizante no rosto da coisa humanoide. O medo era ainda maior quando ele se aproximou, olhando-lhe por cima de seu nariz aquilino de narinas profundas.

— Pediu para alguém abrir o portão das estrelas apontando em sua direção, garota? — sua voz saiu fria como ar que rondava o quarto.

— E-eu não! — Amanda gaguejou, chocada. — Não sei nem sequer onde estou... Eu estava olhando o céu, e de repente veio essa luz igual um prisma...

— Alega que ninguém abriu o portão para você — disse a pessoa —, mas diz sobre a Luz, daqueles que perdem suas vidas e renascem em Tammera?

Amanda inclinou a cabeça. Afastando uma lágrima, não tinha ideia do que ele estava perguntando.

— Eu não morri — protestou.

Ela despertou uma expressão de curiosidade na face perolada da criatura. Ele simplesmente abaixou-se e sentou de pernas cruzadas no chão.

— Não morreu — ele repetiu, suavemente. — Interessante. Conte-me o que aconteceu antes de sair do Portão do Herói?

A moça lançou em seu rosto uma olhadela ansiosa. Não havia parado para traçar uma linha cronológica, e a lógica sempre caminhava para o surreal.

— Como disse, estava olhando as estrelas e vi uma luz prismática surgir no céu — respondeu ela. — Essa luz me puxou e, quando abrir os olhos, estava no chão, no fundo do que me parecia um templo.

— Oh, sim, claro. Este é o Templo de Tathra. Reduto do Culto de Herói — respondeu o homem. Ele sorriu, repousando a mão fechada e escorada em seu joelho no queixo longo. — Cultuamos aos grandes heróis do Aaru, o mundo dos deuses que está atrás dos portões das estrelas. Lugar de onde você veio.

Novamente, Amanda inclinou a cabeça.

— É comum que, viajantes que atravessaram os portões das estrelas espalhados pelo mundo, não acreditem que morreram — prosseguiu o homem. — Mas quando suas vidas chegam ao fim, são reencarnados neste mundo pré-paraíso. Não são todos, mas é dito que pessoas que tiveram uma vida de pouco aprendizado, vem a nosso planeta para preparem suas almas para Ascender aos Grandes Juncos, onde reside o prazer da vida por toda a eternidade.

Na visão cristã de Amanda, pareceu uma breve explicação sobre ter ido parar no purgatório após sua morte. Mas ela tinha certeza: não estava morta!

— Esse é o nascimento de um cidadão comum. O que difere pessoas que atravessam o Seba en Ankham, porém, é que esse tipo de pessoas são enviados direto do mundo dos deuses — ele a espiou por todos os lados, pausadamente.

Amanda engoliu em seco.

— Todos nós passamos pelos portões das estrelas em algum momento em nossa vida — prosseguiu o monge. — Vim há uns duzentos anos, atravessando um portão que nada era especial. Chamado para me tornar Parceiro das Estrelas de uma fêmea zoph. Mas a minha vocação, apesar de meu dever sagrado, sempre foi o sacerdócio.

A menina franziu as sobrancelhas.

— Meu nome é Ayi — continuou o homem. — Sinistre en Seba en Ankham. Acredito que nos novos termos usados na Capital, sou o Sumo Sacerdote do Templo do Herói.

Ayi olhou para trás, como se fitasse para algo atrás dele além da porta e das paredes de pedras cores de trigo.

— Poucas pessoas são especiais, garota — voltou o rosto em direção a Amanda. — Há mais de quatrocentos anos, nenhuma pessoa atravessou o Portão do Herói. O que a torna especial.

Amanda engoliu em seco, pensando que seria repreendida por ter feito algo errado.

— Porém, o modo como está aqui, não é comum. — Os olhos de Ayi tornaram-se escuros como besouros. — O mundo está em paz. Os portões das estrelas deste templo são abertos, apenas quando esse mundo está à beira do caos. Quando os demônios do Abismo marcham para destruir nossa terra amada.

Por um segundo, seus olhos frios e escuros estudaram Amanda em silêncio.

— Ankham é o que você se tornou, que no atual temmerata corresponde algo como "iluminados", "abençoados" — continuou. — Mas, em temmerata cóptio, essa demonização tornou-se "Herói".

— Herói? — Amanda disse, sentindo a voz raspar em sua garganta.

— Sim — sorriu Ayi. — Esse é um termo moderno, usado há quinhentos anos. Nossa terra amada passou por um período de grande intercâmbio cultural. Alguns rastros ficaram para sempre na cultura mesmo após a queda do grande Império Alexanthra; embora, aqui em Tathra, preferimos usar velhos nomes e costumes.

Amanda assentiu, observando a sutileza que o homem contava-lhe aquela história. Ela se sentiu como se estivesse sendo hipnotizada por sua voz.

— Heróis, garotas, são chamados por mim. O grande sacerdote, Sinistre, em termos antigos — ele falou suavemente. — E eu não a chamei. Muito raramente os portões das estrelas se abrirão sozinhos. A última vez que isso aconteceu, Xerces foi invocado. Tornando-se o pior e mais sombrio anti-herói da História. Alguém que se embebedou com o poder e levou para o abismo de seu sheut metade de uma civilização. O lugar onde hoje chamamos Duat. O Abismo.

Amanda engoliu a bile que subiu em sua garganta. Ela estava tremendo novamente. Vendo como se o olhar de Ayi estivesse perto do abismo.

— Muito bem — o homem se levantou. — Acredito que ninguém que conheça a história de Xerces, haveria de abrir um portão das estrelas sem passar pelos devidos rituais. Então, menina, quem abriu o portão para você? Quanto pagou para qualquer Hem-Neter chamar sua sheut para este lado do mundo?

Amanda sacudiu a cabeça, agitada, assustada.

— N-não pedi para estar aqui... — sua voz estremeceu, enquanto voltava a chorar. — Eu já disse: estava vendo as estrelas em meu quarto, e uma luz me puxou para este lugar. E-então, cai no chão... S-senti m-meu corpo se refazer no meio daquela luz, e-e senti que havia mais coisas tomando m-meu corpo. Co-como se mais do que sou, estivesse se refazendo em mim...

A testa de Ayi enrugou quando abriu os olhos. Amanda pensou que finalmente mostrou uma expressão completamente diferente da frieza e das promessas de queimá-la como uma bruxa.

— Entendo — disse aquela palavra curta e significativa.

Suas mãos, maiores que uma mão humana normal, agarrou a camisa do pijama de Amanda, erguendo-a. Por um segundo, seus pés deixaram o chão.

— Vejo a verdade em seus olhos — observou, encarando-a.

As irises peroladas mudaram para um vermelho como se ele fosse um scanner, que sondava o interior de sua alma. Amanda se sentiu invadida.

— Descreveu o que o último ankham sentiu ao atravessar os portões — sua voz flutuava para fora de sua boca como se estivesse saboreando as palavras, que por sua vez a faziam sentir um gosto ruim. — O Portão de Tathra está ligado ao Sekhet-Aaru, onde moram os grandes neteru, que espiam por nós e enviam pessoas como você quando o mundo está prestes a ser engolido pelas trevas. E segundo nossa liturgia, os deuses encontraram um meio de incorporar seus poderes divinos ao mundo material, possuindo pessoas que atravessam aqueles portões. Um ankham é uma carapaça do poder de antigos e valorosos neteru.

Amanda segurou o pulso dele, sem ideia do que eles estavam falando. Ankham, neteru? Sua cabeça, que já doía, estava ficando enrolada como uma corda cheia de nós.

— E-eu não sei nada sobre isso — respondeu, endurecendo a voz.

— Claro que não — Ayi sorriu com o canto da boca. — Só me resta saber quem a possuiu? Qual deles?

— N-ninguém! — Amanda balançou os pés no ar, tentando se soltar.

Notando sua tentativa pífia, Ayi a soltou fazendo-a bater duramente contra o chão. Em seguida, deixou uma gargalhada debochada fluir.

— Seja quem for, não deve ser um dos poderosos, e só posso supor que é tão inferior que não passa apenas de uma herege — sua voz se tornava fria no meio da risada. — É, suponho que essa é a melhor definição para você, garota. Nem ankhamret ou neteret, tampouco heroína. Apenas uma herege.

Ele sacudiu a cabeça, olhando-lhe com desprezo.

— Vou cuidar para que essa inconveniência não se espalhe pelas cidades, e jamais chegue aos ouvidos da Capital.

Ayi agora parecia não ter nenhum apreço para ela, virou-se em direção a porta.

— Sua existência em breve será esquecida. — Riu, erguendo a mão até a pesada maçaneta. — Para sempre.

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Glossário

Bifrost --- > Na mitologia nórdica, Heimdall é um deus, filho de Odin e nove mães, cuja missão é guardar a ponte Bifrost, um arco-íris ligando o céu à Terra, e de tocar o retumbante chifre Gjallarhorn, quando da aproximação do fim do mundo.

Zoph --- > é uma palavra inventa que significa: humanos.

Tammera = Terra Amada (Tam – Terra; Mera – Amar/Amada), a pronúncia é "Tãm + Mira;