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A Crônica do Contador de Histórias

Após uma vida de poucas conquistas e repleta de arrependimentos, Vanitas recebe uma segunda chance ao reencarnar como um bebê em um mundo onde magia e espadas fazem parte do cotidiano. Determinado a deixar seu passado para trás, ele abraça essa nova chance, vivendo com uma trupe itinerante de artistas da corte. Entre apresentações e jornadas por novas terras, Vanitas aprimora seu talento nato para o alaúde, mas é na magia que seu verdadeiro poder desperta. Sob a tutela da poderosa Arcanista Marceline, ele mergulha nos segredos da simpatia, a arte mágica que, desde o início, acendeu seu desejo de invocar o vento. No entanto, o destino de Vanitas toma um rumo inesperado quando cruza caminho com o enigmático grupo Sombraim, cujos segredos ocultos trazem à tona verdades sombrias sobre o mundo e sobre sua própria reencarnação. Em busca de respostas, Vanitas parte em uma jornada por terras desconhecidas, onde cada nova descoberta o arrasta ainda mais profundamente para os segredos esquecidos da história. Ao longo do caminho ele encontra aliados improváveis, constrói amizades inquebráveis e se apaixona... mas o que realmente aguarda em seu destino é algo que supera tudo isso. Com a chance de mudar o mundo em suas mãos, Vanitas precisa decidir entre seguir o caminho das revelações ou se perder nos laços do amor e da amizade. O peso dessa escolha pode mudar para sempre o curso de sua vida — e a de todos ao seu redor.

porep · Fantasía
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108 Chs

IV. ARCANISTA

— Meio lumen por cabeça. Isso mesmo. Quem não tiver cabeça entra de graça. Agradecemos, senhor.

Stap se dedicava a garantir que todos pagassem para assistir à peça. Com um olhar perspicaz e uma língua afiada como nenhuma outra, ele mantinha a ordem com destreza:

— Meio lumen por cabeça. Mas, pela cor rosada nas bochechas da sua dama, eu deveria cobrar uma cabeça e meia. Não que isso seja da minha conta, entenda bem.

Stap, vestido com seu colorido traje de bobo da corte, tinha o talento de dizer praticamente qualquer coisa sem sofrer consequências. Era a pessoa ideal para garantir que ninguém tentasse usar conversa fiada ou intimidação para evitar o pagamento.

— Olá, madame, o bebê não paga, mas se ele começar a chorar, é melhor você dar-lhe o seio rapidamente ou levá-lo para fora — dizia Stap, continuando com seu discurso interminável. — Isso mesmo, meio lumen. Sim, senhor, cabeça oca ainda paga inteira.

Embora sempre fosse divertido assistir ao trabalho de Stap, quase toda a minha atenção estava voltada para uma carroça que havia entrado na cidade há cerca de um quarto de hora.

O prefeito estava discutindo com a moça que a conduzia e, em seguida, se afastou abruptamente. Logo depois, o vi retornar à carroça, acompanhado por um homem alto, armado com um porrete, que claramente era um guarda da cidade, a menos que eu estivesse enganado.

Impulsionado pela curiosidade, aproximei-me, tentando ser o mais discreto possível. O prefeito e a moça estavam novamente discutindo quando cheguei perto o suficiente para ouvir:

— ...lhe disse. Não tenho licença. Não preciso de licença. Vendedor ambulante precisa de licença? Criaferro precisa de licença?

— A senhorita não é criaferro — retrucou o prefeito. — Não tente se fazer passar por um deles.

— Não estou tentando me fazer passar por coisa alguma — respondeu a moça, com um tom desafiador. — Sou criaferro e vendedora ambulante, e sou mais do que ambos. Sou arcanista, seu imbecil trapalhão.

— É exatamente o que estou tentando dizer — insistiu o prefeito, obstinado. — Somos pessoas tementes a Deus aqui nestas paragens. Não queremos nos envolver com o que é obscuro e melhor deixado em paz. Não queremos as complicações que gente como a senhorita pode trazer.

— Gente como eu? — replicou a moça. — O que o senhor sabe sobre gente como eu? É provável que nenhum arcanista tenha passado por aqui nos últimos 50 anos.

— É assim que nós gostamos. Dê meia-volta e retorne ao lugar de onde veio.

— Raios me partam se vou passar a noite na chuva por causa da sua cabeça dura! — exclamou a moça, exasperada. — Não preciso da sua permissão para alugar um quarto nem para fazer negócios na rua. Agora afaste-se de mim, ou eu lhe mostrarei em primeira mão o tipo de encrenca que gente como eu é capaz de criar.

O medo passou pelo rosto do prefeito, mas logo foi substituído pela indignação. Ele fez um gesto para o guarda, que se aproximou, o semblante severo e a postura ameaçadora.

— Nesse caso, você passará a noite na cadeia, por vadiagem e conduta ameaçadora. Deixaremos você seguir seu caminho pela manhã, se tiver aprendido a manter uma língua civilizada nessa sua cabeça.

O guarda avançou para a carroça, segurando o porrete com cautela junto ao corpo.

A moça permaneceu firme e levantou uma das mãos. Uma luz vermelho-escura surgiu nos quatro cantos de sua carroça.

— Já chega — disse com um tom sinistro. — Caso contrário, as coisas podem piorar.

Após um momento de surpresa, percebi que a luz estranha emanava de um par de lamparinas de simpatia montadas na carroça da moça. Eu só havia visto uma delas na biblioteca de lorde Greenweed. Elas eram mais brilhantes que os lampiões a gás, mais estáveis que velas ou candeeiros, e duravam quase para sempre. Eram também extremamente caras.

Certamente, naquela cidadezinha, ninguém havia ouvido falar delas, muito menos visto uma.

O guarda parou abruptamente quando a luz começou a se intensificar. No entanto, sem que nada mais acontecesse, ele ergueu o queixo e prosseguiu em direção à carroça.

A moça assumiu uma expressão aflita:

— Ora, espere um instante — disse, enquanto a luz vermelha da carroça começava a se esmaecer. — Não queremos...

— Feche a matraca, sua mulher desafiadora — ordenou o guarda, estendendo a mão para agarrar o braço da arcanista, como se tentasse tocar um forno quente. Ao perceber que nada acontecia, sorriu, confiando mais na situação. — Não pense que eu não lhe dou uma boa lição, para não deixar você fazer suas bruxarias.

— Isso mesmo, Tim — disse o prefeito, aliviado. — Leve-a com você e vamos mandar buscar a carroça.

O guarda sorriu e torceu o braço da moça, fazendo-a curvar-se e soltar um gemido de dor.

De onde eu me escondia, observei seu rosto transformar-se de aflito para sofrido e, em seguida, raivoso, tudo em um instante.

Seus lábios se moveram...

Então, uma rajada furiosa de vento surgiu do nada, como se uma tempestade tivesse eclodido sem aviso. O vento atingiu a carroça da moça, que se inclinou sobre duas rodas antes de voltar a se assentar com um estrondo.

Arregalei os olhos. A arcanista havia feito a mesma coisa que minha mãe anos antes: chamara o vento, e ele obedecera. Era a segunda vez que via algo assim na vida. Senti o entusiasmo tomar conta de meu corpo.

O guarda cambaleou e caiu, como se tivesse sido golpeado por uma força divina. Mesmo a quase 10 metros de distância, o vento foi tão intenso que me obrigou a dar um passo à frente, como se tivesse recebido um forte empurrão.

— Vão-se embora! — gritou a moça, furiosa. — Não me incomodem mais! Incendiarei seu sangue e os encherei com um pavor igual ao gelo e ao ferro!

Havia algo familiar em suas palavras, mas eu não conseguia identificar exatamente o quê. O prefeito e o guarda deram meia-volta e correram, com os olhos revirados e em desvario, como cavalos assustados.

O vento cessou com a mesma rapidez com que surgiu, durando não mais que cinco segundos. Com quase toda a população reunida nas imediações da taberna, duvidei que alguém além de mim, do prefeito, do guarda e dos burros da moça tivesse sentido a rajada. Os burricos, atrelados e imperturbáveis, permaneciam tranquilos.

— Livrem este lugar de sua repugnante presença — resmungou a arcanista para si mesma, observando-os se afastarem. — Pelo poder do meu nome, ordeno que assim seja.

Finalmente entendi por que suas palavras me pareciam familiares: ela estava citando trechos da cena de exorcismo de "Samata", uma peça pouco conhecida.

A moça voltou-se para a carroça e continuou a improvisar:

— Vou transformá-los em manteiga num dia de sol. Farei de vocês poetas com alma de padres. Vou enchê-los de creme de baunilha e jogá-los pela janela — vociferou. — Canalhas.

Sua irritação dissipou-se, e ela soltou um longo suspiro cansado.

— Bem, acho que não poderia ter sido pior — murmurou, friccionando o ombro machucado pelo guarda. — Vocês acham que eles vão voltar com reforços?

Por um instante, pensei que falasse comigo, mas logo percebi a verdade. Ela falava com seus burros.

— Também acho que não — respondeu-lhes. — Mas já me enganei antes. Vamos ficar perto dos limites da cidade e ver o que sobrou da aveia, certo?

Com esforço, subiu na traseira da carroça e desceu com um balde grande e um saco de estopa quase vazio. Virou o saco no balde, parecendo desanimada com o resultado. Tirou um punhado para si antes de empurrar o balde aos burros.

— Não olhem para mim desse jeito — disse. — A ração anda escassa por toda parte. Além disso, vocês podem pastar.

Ela fez carinho em um dos burros enquanto comia seu punhado de aveia crua, parando de vez em quando para cuspir uma casca.

Parecia-me triste ver aquela mulher sozinha na estrada, sem ninguém além de seus animais para conversar. A vida era difícil para nós, os Therion, mas pelo menos tínhamos uns aos outros. Aquela moça não tinha ninguém.

— Nos afastamos demais da civilização, meninos. Os que precisam de mim não confiam em mim, e os que confiam em mim não podem me pagar — disse a moça, espiando sua bolsinha de moedas. — Temos um lumen e meio, de modo que nossas opções são limitadas. Preferimos ficar molhados hoje ou com fome amanhã? Não faremos nenhum negócio, então é provável que seja uma coisa ou outra.

Contornei a parede do prédio até conseguir ler o que estava escrito na lateral de sua carroça. Dizia:

MARCELINE. ARCANISTA FANTÁSTICA.

Escriba. Rabdomante. Farmacêutica e Dentista.

Produtos raros encontrados. Sofredores de maléstias curados.

Objetos perdidos, achados. Objetos quebrados, consertados.

Nada de horóscopos. Nada de poções do amor. Nada de malefícios.

Marceline notou minha presença assim que saí de onde me escondia atrás do prédio.

— Olá. Posso ajudá-lo em alguma coisa?

— Você escreveu "moléstias" errado — assinalei.

Ela fez uma expressão surpresa e explicou:

— É uma brincadeira, na verdade. Eu fermento umas bebidinhas.

— Ah, cerveja ale. Entendi — disse eu, balançando a cabeça. Tirei a mão do bolso. — Pode me vender alguma coisa por um lumen?

Ela pareceu intrigada e divertida ao mesmo tempo.

— O que você está procurando?

— Eu gostaria de uma poção de lasilo — respondi. Havíamos feito umas catorze apresentações de Sylphie, O Extraordinário no mês anterior, e a peça havia enchido minha cabeça juvenil de intrigas e assassinatos.

— Você está esperando que alguém o envenene? — indagou ela, meio assustada.

— Na verdade, não. Mas acho que, se a pessoa esperar até saber que precisa de um antídoto, provavelmente será tarde demais para arranjar algum.

— Creio que eu poderia te vender a porção correspondente a um lumen — disse ela. — Seria mais ou menos a dose necessária para uma pessoa do seu tamanho. Mas é um produto perigoso, a seu modo. Só cura alguns tipos de venenos e pode fazer mal se tomá-lo na hora errada.

— Ah, eu não sabia — comentei. Na peça, o lasilo era mostrado como um recurso infalível.

Marceline deu um tapinha nos lábios, pensativa.

— Enquanto isso, pode me responder uma pergunta? — indagou, e fiz que sim. — De quem é aquela trupe?

— De certo modo, é minha. Mas de outro, é do meu pai, porque ele dirige o espetáculo e decide o rumo das carroças. Mas também é do barão Greenweed, porque ele é o nosso mecenas. Somos vassalos de Lorde Greenweed.

A moça me olhou de forma divertida.

— Ouvi falar de vocês. Boa trupe. Boa reputação.

Fiz que sim com a cabeça, não vendo sentido em falsa modéstia.

— Você acha que seu pai se interessaria em um ajudante? Não diria que sou grande coisa como atriz, mas é útil ter alguém como eu por perto. Eu poderia fazer corantes faciais e rouge para vocês, sem chumbo, mercúrio ou arsênico. Também sei fazer fontes de luz rápidas, limpas e brilhantes. De cores diferentes, se assim quiserem.

Não precisei pensar muito; as velas eram caras e vulneráveis às correntes de ar, as tochas eram sujas e perigosas. E todos da trupe conheciam os perigos dos cosméticos desde cedo. Era difícil se tornar um artista velho e tarimbado quando se pintava com veneno a cada três dias e acabava doido varrido aos vinte e cinco anos.

— Pode ser que eu esteja agindo precocemente — afirmei, estendendo-lhe a mão para um aperto firme —, mas permita-me ser o primeiro a dar boas-vindas à trupe.

Sinto-me no dever de mencionar que minhas razões para convidar Marceline a ingressar em nossa trupe não foram inteiramente altruístas.

É verdade que os cosméticos de boa qualidade e a iluminação límpida eram um acréscimo bem-vindo ao nosso grupo. Também é verdade que fiquei com pena de ver a anciã sozinha na estrada.

Por trás disso tudo, no entanto, fui movido pela minha curiosidade. Vi Marceline fazer algo que eu não sabia explicar, algo estranho e maravilhoso. Não foi seu truque com as lamparinas de simpatia; aquilo eu reconhecera pelo que era: um toque habilidoso de dramaticidade, um blefe para impressionar a população ignorante.

O que ela fez depois foi totalmente diferente. Ela havia chamado o vento, e o vento viera. Magia de verdade. O tipo de magia que não existia em meu antigo mundo e do qual eu ouvira falar apenas nas histórias do Grande Valoran na biblioteca de Greenweed. O tipo de magia que eu nunca poderia imaginar que existia antes de vê-la com meus próprios olhos — duas vezes.

Assim, convidei-a para nossa trupe, na esperança de descobrir respostas para minhas perguntas. Embora não soubesse na época, eu estava buscando pelo vento.