- Mamãe, o que é a morte?
- Por que me perguntas isso, filho?
- Não sei. Tenho dúvidas, muitas, muitas mesmo.
- Morte é quando você vai para o céu ou, se for um menino mal, para o inferno.
- É só isso, mamãe? Mas... o tio César me disse que...
- Não importa. Eu já não lhe disse para não ouvir coisas de seu tio? Ele não sabe o que fala, apenas diz blasfêmias!
★★★
Eram, provavelmente, umas 15h25m da tarde. A sala em que estavam possuía uma sensação friorenta, mesmo com a lareira localizada em seu âmago. Em geral, podia-se considerar o cômodo como modesto; as paredes davam-se cobertas por um pano verde preenchido ordenadamente por crisântemos de coloração roxa; os móveis, por sua vez, construídos todos de madeira nobre.
Quanto ao clima, este era eventualmente convidativo: a lareira ressoava como única partícula sonora favorável, já que o mexer das folhas causava uma relativa agonia, mas nada a se preocupar. Assim, após alguns minutos de constrangimento, J. segurou uma caneta, agarrou o caderno com a outra mão, cruzou as pernas e, em tom calmo, sussurrou ao seu convidado:
-O que é a morte? Este conceito sempre me chamou atenção. Pensadores, cientistas, religiosos e diversas outras classes tentaram, durante milênios, defini-la. Contudo, todos fracassaram, e só disponibilizaram explicações puramente medíocres. Ainda assim, a filosofia é, para mim, uma área que deve ter chegado perto da resposta. Como? Deixe-me lhe explicar.
Existe um termo chamado qualia, que diz respeito à aspectos individuais que sentimos em nosso interior - sejam as sensações, as angústias ou os desejos – todos eles são definidos como pessoais, e não transponíveis ao exterior.
Em meus pensamentos, quais já considero mesmo um universo utópico, ao contrário do caos da sociedade física, cheguei a conclusão de que a morte está assim, pertinho, quietinha e, sobretudo, em um estado parecido a um abraço, particular para cada um.
De certo modo, isso não seria emocionante? Você teria uma companheira para a vida toda, desde o seu nascimento. Ela seria como uma mãe de verdade, a qual guardaria um lugar ao seu lado até o último suspiro realizado.
Aliás, agora notei que... nem mesmo sei o seu nome, sei...?
- Não, nem você me disse o seu.
- Chame-me de J., é só isso que precisa saber. Agora, permita-me saber...?
- Parvo. Costumam chamar-me de parvo.
- Ora... Parvo não seria alguém imbecil, ou mentalmente debilitado?
- ...
- Entendo, entendo. É, sim, não precisa responder a tudo que eu disser! Sinta-se à vontade, o objetivo, aqui, não é constrangê-lo.
- ...Sobre o que você quer falar comigo, J.?
- Na verdade, será sobre aquilo que você quer falar comigo. Pense nisso como uma... hum... como uma simples conversa, você já foi a um psicólogo?
- Psicólogo? Não, eu nunca fui a um, nunca.
- Sim, sim, você terá apenas que responder a algumas perguntas que eu fizer. Devemos começar, então? Quantos anos você tem?
- Eu nasci em... 8 de setembro de 78, logo devo ter 17 anos.
- Ora... você é bem jovem, não é? O que o levou a tal situação? – J. olhou fixamente para o garoto, dando ênfase em suas características físicas: sua roupa, que fugia totalmente dos padrões da época, estava completamente suja; o cabelo, maltratado; seus pés, descalços e em mal tom; o corpo apresentava um semblante magro e deprimido.
- Não é nada. Continue.
- Você mora por aqui...? – Por algum motivo, após realizar esta pergunta, ambos se olharam de maneira confusa. O tom desta, apesar de simples, parecia causar um desconforto físico e emocional aos dois, mas sem força o suficiente para impulsionar alguma reação.
- Não, acho que não.
- Como é a relação com seus pais?
- O meu pai morreu quando eu tinha apenas 7 anos, então não tenho muitas lembranças significativas dele. Sobre mamãe, diria que é um caso complicado, mas não quero comentar agora.
- Está bem... Agora, se você fosse um animal, qual seria?
- Isso é mesmo necessário?
- Certo, certo. Então, diga-me o nome de um obra, por favor.
- Acho que O Auto da Barca do Inferno*, eu gosto desse.
*Referência a "O Auto da Barca do Inferno", peça de Gil Vicente.
- Interessante... Inocência.
- Como assim, inocênc- Antes que P. pudesse responder, a voz do anfitrião soou sobre sua fala.
- Explique-me o porquê.
- Bom, a história é, de certa forma, intrigante. Eu fico me imaginando no lugar dos passageiros, pensando que... sei lá, a morte pode ser muito mais misteriosa do que parece.
- Continue. Desejo ouvir um pouco mais.
- Quê? Por quê?
- Ora, estamos aqui para isso, não estamos?
- Sim, mas eu já lhe disse o que penso. Não há necessidade de mais.
- Por que você parece estar incomodado com isso? Será que lhe traz... algumas lembranças incômodas?
- Você não precisa saber disso.
- Sim, P., eu preciso. Sem isso, não conseguirei te ajudar.
- Mas... – Neste momento, P. abaixou sua cabeça, como se estivesse em coma, deixando o seu exterior à mercê do próprio tempo. O seu interior, do contrário, parecia contorcer-se, à medida em que pensava consigo mesmo.
-Eu ganhei esta peça em um livro, de meu tio César, quando tinha apenas 14 anos. A princípio, não sabia do que se tratava, afinal nunca me aventurei muito em livros clássicos, muito menos em textos teatrais. Porém, mesmo sendo pequeno, ainda gastei muito tempo para lê-lo, principalmente por questões pessoais.
Mamãe não gostava que eu utilizasse coisas dadas por meu tio, muito menos gostava dele. A questão é que... ele era a única pessoa com quem eu poderia conversar sobre o que eu gostava, com quem eu poderia fazer diversas perguntas, sem nunca irritá-lo. Mais do que isso, era meu único amigo.
Esta palavra, amigo, sempre se personificou como difícil para mim. Desde o fundamental, nunca tive muitos e, os poucos que tive, lentamente se distanciavam. Assim, a leitura, além de meu tio, acabou sendo um suporte, como se apenas eles me entendessem.
- Você estava satisfeito com esta situação?
- Eu era uma criança, como poderia estar bem isolando-me, enquanto, na escola, todos pareciam tão contentes?
- Por que não fez algo?
- Eu não poderia.
P. levantou-se da poltrona, de modo sutilmente energizado, e começou a rodeá-la, sem parecer, contudo, mover sua atenção do tópico principal da conversa.
- O meu colégio era categoricamente religioso, e todos nós éramos controlados de forma rígida. Aquilo que estudávamos e fazíamos deveria passar por ordens superiores, tudo. Desta forma, como você mesmo deve pensar, se eu conversasse sobre alguém lá dentro sobre meus gostos, minha mãe...
- Está certo, está certo, acho que compreendi. Bom, já que puxou o assunto deste livro, tenho uma pergunta nova a você, que, aliás, acabei de pensar.
- Pois diga – P., agora, localizava-se a frente da lareira, apoiando-se sobre os tijolos que compunham-na – não sei o que pode vir de interessante disso.
- Se você tivesse de ser julgado por um Anjo e um Diabo e, assim, escolher para onde desejaria ir, à barca dos céus ou à barca das trevas... Iria entrar em qual barca...?
O silêncio automaticamente pôs-se. J. e P. começaram a se encarar de forma sublime, como se, além de a resposta ser óbvia, ninguém tivesse coragem de proferi-la.
Continua...