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AS ALMAS NEGRAS DOS DEUSES

Quando deixamos de acreditar nos sonhos prometidos, eles se transformam em pesadelos.

Os grandes seres se moveram lentamente, se aproximando com grande majestade da massa que girava lentamente, parecendo hipnotizada e imperturbável nos giros contínuos. Lentamente os gigantes de sombras foram se posicionando num anel em torno da massa, magnânimos, em profunda concentração como monges em transe, exercendo sobre a massa um poder tal que a mantinha tranquila e pacífica.

Tudo o que se via era idílico, parecendo destinado a durar para sempre. Mas era tudo uma ilusão, uma perigosa ilusão que vivia dentro de um turbilhão disfarçado. Subitamente, quando os corações estavam calmos e satisfeitos, tudo se perdeu assim que o último gigante se posicionou.

Num passe de mágica as caudas desapareceram enquanto o cinza daqueles corpos adensava-se. Repentinamente os sombras avançaram sobre os mantas e, tomando um após outro, com grande facilidade os giravam e lançavam com selvageria contra a passagem da porta.

Horrorizadas e apavoradas as últimas pessoas que estavam sentadas se levantaram num salto, os olhos indo de um lado para o outro à procura de algum esclarecimento, se juntando à multidão que recuava receosa. Então, se acotovelando e gritando, muitos debandaram, o horror estampado nas faces lívidas.

Mas muitos outros, na maioria simpatizantes do velho sábio sacrificado, sentiram raiva e revolta dominando seus corações. Vencendo o terrível medo avançaram, gritando enfurecidos contra os sacerdotes e a porta. Em meio a uma ladainha sagrada os desesperados revoltosos empurraram os sacerdotes e vários de seus seguidores e tentaram fechar a porta, buscando meios mágicos para destravá-la daquele mundo. Em desespero chamaram por outros mundos e invocaram seus velhos e esquecidos deuses. Os gritos, lamentos e encantamentos recrudesceram cada vez mais fortemente, até que a visão do estranho mundo começou a esvanecer e a tornar-se oculto, porque o portal se destravara. Os revoltosos gritaram de alegria ao verem que haviam conseguido e, aumentando o poder de seus encantamentos, forçaram a porta a girar ainda mais, afastando-a do mundo estranho. A paisagem cinza e obscurecida desapareceu de vez e ficou apenas o negro imenso e absurdo dentro do pórtico, aonde as estrelas iam girando muito lentamente, desaparecendo na moldura direita do portal.

Vendo o que acontecia, aos berros o jovem sacerdote comandou um violento contra-ataque em volta da porta, que a muito custo retomou seu controle.

Suavemente a porta começou a emitir um brilho fugaz.

Massas e pedras e facas eram usadas com furor por ambos os lados. Sacerdotes e revoltosos tombavam, os corpos quebrados e arruinados, ensanguentados os vivos e os mortos. Apesar de ficarem cercados de encontro ao portal, o sacerdote e seu grupo tomaram posição sob o pórtico, distribuindo porretadas, socos e estocadas com as facas de pedra.

Em seus olhos injetados a terrível e absurda dominação.

Temendo que tudo ficasse perdido o jovem sacerdote levantou a face e os braços ao céu que se tornava cada vez mais negro e tenebroso, enquanto gritava invocações numa estranha língua que ninguém nunca tinha ouvido antes.

O cerco apertou-se.

Uma pedrada acertou o jovem sacerdote, e um filete grosso e vermelho desceu pelo seu rosto. Com as mãos na cabeça caiu de joelhos no meio do portal, o sangue escorrendo pela face. Com a dor estampada no rosto esticou as mãos para o alto enquanto soltava um grito pungente de ódio e revolta. Como que possuído, com os olhos desmesuradamente abertos levantou o rosto, os músculos e fibras do pescoço retesados ao máximo. Num lamento terrível pediu ajuda aos seus deuses demônios. Ainda lamentando, desesperado se encolheu enquanto os que o protegiam iam sendo vencidos. Então ele foi alcançado e imobilizado pelos rebeldes, entre gritos e imprecações.

O portal, agora, emitia uma luz vermelho ambarina.

No momento em que os revoltosos se preparavam para arrastar o sacerdote para longe do portal se ouviu, para horror dos revoltosos, um clanck seco e poderoso.

Tudo parou, silenciou, os olhos voltados para o portal.

Em choque os atacantes viram que, com extrema lentidão, a porta começava a girar de volta ao ponto em que estivera, e o mundo estranho ia lentamente surgindo pelo lado direito.

Os sacerdotes, passado o estupor inicial, tornaram-se mais raivosos e reagiram. Resistindo aos empurrões e agressões avançaram e conseguiram recuperar o jovem sacerdote que, junto com eles, começaram a entoar seus encantos, mais alto que os revoltosos. Os revoltosos, ainda esperançosos da vitória, elevaram mais suas vozes, seus gritos e invocações, suplantando os sacerdotes. Uma pequena parte do povo, como que liberto de uma hipnose, também foi avançando sobre a massa que lutava estranha luta, cantando a ladainha dos revoltosos.

Corpos caiam ao chão, secos e sem energia, enquanto a luz no portal se encorpava.

A batalha estava renhida e nenhum dos lados tinha esperança definitiva de vitória, até que um som explodiu e provocou um baque violento, que fez tremer a terra e a porta.

Um silêncio calou a batalha, a atenção de todos fixa sobre o portal. Ao terem certeza do que acontecera foi que os revoltosos viram toda a extensão de sua derrota e de sua perdição.

O portal agora girava suave novamente na direção do mundo de sombras e medos, e a força que fizera a sorte pender para o lado sombrio vinha de sete seres medonhos e esfumaçados, iguais aos que estavam se batendo do outro lado do portal. Dois deles, os maiores, os únicos dentre eles que mostravam a forma de homens, tinham a altura do portal. Os olhos vermelhos das criaturas faiscavam perigosamente, e as caras mostravam-se estranhamente felizes. Eles estavam postados um de cada lado da porta à qual o jovem sacerdote se agarrava alucinadamente. Outros três, aparentando serem tão cruéis quanto os dois primeiros, flutuavam ameaçadores sobre o portal. E, mais avançados, postados ao lado dos sacerdotes, um menor e mais claro e um outro, grande e poderoso, os observavam com malícia.

Os revoltosos gritaram e recuaram.

Com horror viram o jovem sacerdote, coberto de sangue e com os olhos alucinados, se postar de pé com os braços abertos à frente do pórtico, as terríveis criaturas parecendo ainda maiores no brilho do portal que agora se tornara mais intenso.

Foi então que um dos revoltosos gritou, dizendo que haviam sido usados, que a batalha fora incitada pelos demônios, que precisavam de sua energia de raiva e medo para aumentar a força sobre o pontal. E, enquanto gritava isso, apontava para os corpos espalhados no chão, secos e sem energia. Com pavor viram os últimos mortos, de onde finas faixas de luz partiam para o portal, onde sumia na luz que se fortalecia.

Os sete demônios, encurvados como caçadores, encaravam a multidão ao mesmo tempo em que emitiam ruídos estranhos que pareciam convulsionar o próprio ar e tomar as almas e acorrentá-las.

Houve uma concussão que pareceu inchar o ar e queimá-lo, quando o portal mostrou o mundo penumbroso em sua quase totalidade.

Os sombras do outro lado, vendo que o portal estava para se ligar novamente, recomeçaram a atirar mantas contra ele, enchendo o ar com os sons de poderosos impactos e gritos medonhos.

Um grito ecoou acima da balburdia. Os sombras estacaram, mantas imobilizados em suas garras. O demônio que gritara se aproximou e observou o portal. Parecendo satisfeito gritou novamente ao perceber os sete voadores do outro lado.

Ao se afastar com um grunhido os sombras soltaram os mantas, que se afastaram depressa e novamente se recolheram sonambúlicos e alheados em seu giro.

Os sombras sentiam, sabiam que algo extremamente importante estava para acontecer.

Trevas e Escuridão finalmente haviam sido recompensados por todos os séculos de espera. A adoração desesperada dos dominados e a dura batalha que empreenderam os libertara de vez.

Trevas, emitindo estalidos de satisfação, projetou uma linha escura e esfumaçada para o peito do sacerdote, cujos olhos pareceram imediatamente ficar sem vida.

Os Thiahus revoltosos, que buscaram impedir a abertura da porta, recuaram ainda mais assim que, num tranco seco, ela definitivamente se fixou no mundo dos sombras. Atrás do jovem sacerdote, que estava preso em profundo transe, a imensa nuvem ainda girava sob a vigília dos grandes sombras, que aguardavam junto às bordas. Um urro ensurdecedor se elevou da massa do outro lado do portal assim que os sete voadores se elevaram e cercaram os thiahus, empurrando-os de encontro ao portal.

A um sinal de Escuridão, que guardava a esquerda do portal, quatro sombras velozmente tomaram quatro pessoas da multidão e as levantaram no ar. Com total indiferença circularam rapidamente o portal e as lançaram para dentro dos quatro nichos esculpidos no alto, na outra face do portal. Então dois deles voltaram e tomaram mais dois seres, que jogaram dentro dos dois nichos maiores também às costas do portal, poucos centímetros acima do chão.

Quando essas seis pessoas se levantaram apavoradas e tentaram sair viram que estavam aprisionadas nos nichos, e que era impossível escapar. De súbito suas faces foram congeladas em dor e pânico enquanto lentamente o portal se iluminava em definitivo, fazendo surgir um forte halo acobreado em toda sua volta.

Um zumbido poderoso, vindo das bordas de centenas de milhares de voadores dentro do portal, se somou aos zumbidos que os sete voadores produziam. Os homens e as pessoas que estavam no pátio da praça de repente não conseguiam mais se mexer, nem ao menos pensar de forma clara porque, de forma traiçoeira, haviam sido definitivamente aprisionadas. Só os revoltosos haviam conseguido escapar, porque haviam se colocado a uma distância segura antes que os voadores de ambos os lados do portal iniciassem o ritual de dominação.

Os revoltosos, temendo o poder daquela dominação que viam atingir o povo da cidade, taparam os ouvidos e se afastaram ainda mais, só parando sobre o monte do puma de onde, assustados e incapazes de qualquer reação, ficaram observando a destruição do seu povo.

Revigorados pelo suprimento de energia um novo som se levantou como uma onda da massa sonambúlica e ela inteira, girando lentamente, se moveu contra a porta. Novamente miríades de gritos de dor se fizeram ouvir ao se baterem e se espremerem contra a proteção do portal. Então, num crescendo, mais urros e impactos, como se milhões de golpes fossem disparados em sequência e rebatidos, como marretadas cada vez mais rápidas disparadas por um ferreiro alucinado, cada vez mais rápidas, e mais rápidas, até que uma última pancada ribombou poderosa. O impacto foi tão forte e violento que chacoalhou as árvores em volta e pôs abaixo várias paredes das casas e derrubou ao chão muitos thiahus. A onda de concussão levantou espessa coluna de poeira do chão, num círculo que rapidamente se distanciava do centro que era o portal.

Um silêncio estranho imperou por algum tempo até que um som foi se levantando, homogêneo e ameaçador, tomando o ar com zumbidos e sussurros. Os revoltosos ao longe viram o jovem sacerdote ser tomado por uma terrível agonia, bem como puderam ver a dor e o desespero imensos nas faces dos prisioneiros. Linhas cinzas agora ligavam todos eles ao portal, que nitidamente se fortalecia com essa nova energia. A luz acobreada cada vez refulgia mais, até se parecer com um metal em brasa.

Foi nesse momento que, apavorados, os revoltosos viram que seu mundo nunca mais seria o mesmo, e ficaram se perguntando se não deveriam ter sido mais determinados em sua defesa.

Antevendo o momento preciso Trevas deu um estalido curto, que soou como o som de um chicote cortando o ar e a carne do mundo. Em atendimento à ordem do outro demônio, num impulso súbito Escuridão saltou para dentro do portal, passando pelo peito do sacerdote, que estremeceu horrivelmente, e sumiu na grande massa que ainda tentava forçar a passagem, que logo se aquietou e pareceu se acomodar ao vê-lo ante eles. Satisfeito, Escuridão os deixou e seguiu seu voo rápido em direção a vários grupos de sombras que observavam e aguardavam. Após algum tempo, partiu num voo veloz para o interior do planeta.

Repentinamente, como se houvesse uma combinação prévia, tudo se precipitou. Os sombras avançaram para o centro do portal e o tomaram, impedindo qualquer passagem dos pequenos mantas. Houve um rápido embate que resultou na destruição de muitos mantas. Com medo esses se afastaram e ficaram vigiando de longe enquanto os sombras, os verdadeiros dominantes, tomavam posse do portal do lado sombrio.

Escuridão surgiu ao longe, e não estava sozinho, confirmou Trevas satisfeito. Ao seu lado vinha um sombra gigantesco, parecendo ser extremamente poderoso. Eles se aproximaram do portal, e todos, até mesmo os mais ferozes, lhes abriram caminho.

Escuridão, exultante com a rápida evolução dos acontecimentos, junto com o companheiro trespassou como um bólido o peito do sacerdote em transe, retornando para o altiplano. O jovem sacerdote estremeceu violentamente os braços e o tronco.

De súbito todos os que estavam presos às linhas cinzas começaram a estremecer a cada vez que eram usados para a transposição de um sombra, porque estavam sugando perigosamente suas energias ao entrarem nesse mundo.

Um estampido seco, como a abertura de nova fase, e os voadores do mundo das sombras começaram a atravessar o portal através dos corpos dos prisioneiros, que forneciam mais energia enquanto iam sendo destruídos.

Os revoltosos gemeram de desespero, não sabendo o que mais poderiam ter feito, porque entendiam agora que até mesmo o ato de atacar o portal fora induzido, com o único objetivo de fornecer energia e de trazer mais pessoas, para serem usadas para abrir o portal. As pessoas, na verdade, não se sabiam prisioneiras, até que se mostrou tarde demais.

Horrorizados e derrotados ficaram observando. Os ombros caíram e os olhos ficaram mortiços ao verem que vários voadores atravessavam para o seu mundo, passando pelo portal através dos corpos dos prisioneiros. Uma nuvem rala de seres foi se formando sobre a Porta do Sol. Um som reverberava do lado da cidade tomando o ar, as montanhas e as vontades da maioria das pessoas e homens que ainda estavam livres. Era um som terrível que cravava uma vontade estranha nas mentes, lutando para destruir toda vontade de não aceitar.

Mas muitos homens e entes, conseguindo na dor do desespero romper a dominação, fugiram apressados em direção às montanhas onde, na companhia dos revoltosos, trataram de desaparecer, tal como haviam feito os antigos moradores de Thiahuanaco há muitas eras passadas. Se daquela vez a força para abrir de vez a porta e permitir a passagem dos outros fora negada a quem o desejava, o que condenara os dois poderosos demônios a uma amarga espera, agora nada mais havia que pudesse impedi-los de conquistar o que por tanto tempo sonhavam.

Então, de modo súbito, tudo cessou.

Do outro lado, gigantescos sombras montavam guarda ao portal, atentos à nuvem de mantas que girava lentamente à frente.

O sacerdote e os prisioneiros tremeram violentamente antes que, como gravetos secos e sem vida, fossem deslizando lentamente, até não serem mais que borrões coloridos no chão, diferente dos que estavam colocados nos nichos atrás do portal, que iriam ceder muito lentamente suas forças. Esses seriam mantidos vivos, muito vagarosamente sendo consumidos, porque suas energias é que iriam manter o portal ativo e fixo no mundo medonho.

Um silêncio pesado a tudo enchia.

Havia agora um vazio de sons e seres na cidade, e nada mais podia ser ouvido, com exceção de um sussurro que vinha dos sombras e mantas que haviam transposto o portal.

Após satisfazerem suas curiosidades acerca do novo mundo os sombras e mantas reuniram-se em torno dos dois primordiais. Trevas se elevou, os olhos faiscando de prazer.

- Essas terras estão povoadas por esses vermes – disse para os outros. - Vão e tome-os, e traga-os para cá, pois precisamos trazer muitos mais, porque há anjos por aqui. Vão e tomem, porque tudo aqui nos pertence, porque tudo aqui é nosso para usarmos como bem entendermos. Vão agora! – ordenou.

Os sombras e mantas se viraram para a larga planície e para as faces dos morros e montanhas, as garras cinzas e negras se projetando por debaixo dos mantos.

Num impulso violento nada mais havia ali, a não ser os dois demônios.

Fortalecidos, os voadores revoaram e, com terrível determinação, procuraram dominar todos os que viviam na cidade e nela se escondiam, e também nos arredores e além.

Multidões de seres ouviram os zumbidos e os chamamentos e foram dominados. Acreditando que os deuses haviam decidido vir para o mundo de seus súditos, e que muitos mártires haviam se sacrificado para trazê-los, grande número de seres se prostrou em estado de adoração em frente ao portal, o corpo lançado para frente, os joelhos fincados no chão, os braços estendidos à frente do corpo, as faces na terra seca, os olhos enevoados. Trevas e Escuridão, com um urro imenso e satisfeito ao perceberem que, finalmente, a porta não poderia ser fechada ou deslocada para outro mundo, se voltaram para os dominados, prostrados na terra. Com um estalido suave e malicioso Trevas fez descer alguns mantas, com os quais rapidamente dominou de vez todos os que estavam ali. Após, ele e Escuridão reuniram seis sombras e vários mantas e os despediu para as terras em torno, ordenando-lhes que trouxessem quantos encontrassem, buscando cada vez mais pessoas e homens, pois sabiam que era a única forma de adquirir poder e diminuir a resistência da porta, e assim trazer mais dos seus.

Os thiahus, agora com olhos que denunciavam a renúncia total de liberdade da alma, se postavam silenciosos e reverentes em frente à Porta do Sol.

Trevas flutuou ao lado de Escuridão.

- Ele não está aqui – falou, observando com cuidado os arredores do céu.

Escuridão examinou ao redor.

- Ele ficou muito tempo prisioneiro, afastado por eras. Mercator vai se recompor, e vai voltar – declarou com tranquilidade, o que fez Trevas dar de ombros, voltando novamente sua atenção para o portal.

Lentamente as imagens na porta foram se anuviando, até que sumiram. Trevas e Escuridão, juntamente com todos os outros, deram um urro longo e suave, e olharam famintos para o povo.