Gabriel foi o último a passar pela porta, se juntou aos outros três que tentavam, em vão, proteger os olhos da claridade matinal. O sol ainda nascia no horizonte, morno e aconchegante. Não foram os únicos a acordar tão cedo, diversos pedestres caminhavam frenéticos de um lado para o outro e sons de grades se abrindo deixava claro que a cidade estava começando a abrir suas lojas, mesmo tendo aquelas que não fechavam desde o dia anterior.
Uma garota passou apressada, levando nas costas uma sacola cheia de velas. Ela apagava as que ainda estavam acesas e repunha quando precisava.
— Espero que tenham dormido bem – falou Gabriel se esticando preguiçosamente. – O dia vai ser longo.
Entraram nas ruas indo de um lado para o outro, pegando desde ruas largas a algumas em que era preciso fazer fila para conseguir caminhar. Livya rapidamente não sabia mais como voltar.
A feira começava a abrir, os vendedores estavam apressados, e de um lado ao outro levavam as preciosas mercadorias em caixas de madeira, fazendo o máximo para que sua barraca fosse mais chamativa que a de seu vizinho.
— Livya, ensinam sobre a Vala no treino, certo? – indagou Naomi.
A jovem, que tinha sua atenção a uma mulher que amarrava com habilidade fenomenal o teto de sua barraca, virou-se demorando um pouco para responder.
— Sim, ensinaram que é para onde levam as pessoas que sofrem por radiação.
— Bem por aí – disse Michel. – Mas sabe o porquê desta separação, certo?
— Tentaram deixar as pessoas juntas antes – emendou a jovem.
— É o que dizem – caçoou Gabriel, com a voz claramente desacreditada.
— Mas houve muitos incidentes.
— Preconceito, Livya. – Foi Naomi que respondeu mantendo-se na dianteira do grupo e o guiando. — E desigualdade no tratamento. Isso criou muito ódio, e foi necessário mudar essas pessoas para um lugar diferente.
— Não devem ser tantas, certo? Quero dizer, um bairro, no máximo.
Os três veteranos quase pareceram pasmos, deixando até mesmo alguns risos escaparem. Livya não entendeu o porquê dessa reação e sentiu a bochecha arder de vergonha.
— Imagine – disse Michel. – A Vala é como se fosse uma sombra da Cova, tanto em tamanho quanto em população. – Vendo a surpresa na colega, continuou: – Os Transportadores passam pelo menos uma vez por semana para levar as crianças, não é mesmo?
— Relaxa, Michel – pontuou Gabriel. – Ela vai ver para crer logo, logo.
Atravessaram a feira se embrenhando ainda mais na cidade, decorrendo diversos minutos nessa longa caminhada desviando de outras pessoas. Até que, por fim, as casas começaram a diminuir em quantidade. Logo era somente eles e mais alguns andando por uma estrada de terra batida.
Naomi ficou ao lado de Gabriel enquanto andava. Não falavam nada um com o outro, mantendo os olhos sempre distantes. A novata reparou que eram somente eles andando naquele momento, e o que antes era uma estrada nítida de tanto uso, agora não passava de uma marca pouco visível no chão.
Foi então que o cheiro veio.
— O que é isso? – bradou Livya, levando a mão ao rosto para tentar proteger o nariz do odor que faziam seus olhos lacrimejarem.
— Estamos perto. – Foi a resposta de Michel, que igual aos outros dois, não aparentou se importar com o cheiro.
Cercas improvisadas ficaram visíveis. Nelas, animais rosas, marrons e pretos se banhavam em lama. Porcos de corpos inchados e cheios de calombos de tumores, com patas e pernas desproporcionais a seu tamanho e cabeça da mesma medida de quando nasceram, andavam no meio dos seus chiqueiros.
Livya já aceitava melhor o cheiro e sabia a origem. Entre os animais, pessoas andavam cuidando deles, alguns com mutações pequenas, como um braço menor que outro, gengiva superior tão grande que saia da boca, a algo mais sério, como uma cabeça ainda em formação nascendo diretamente do meio da barriga.
A Corva teve que manter a concentração para não olhar as figuras que os encarava fixamente. Percebeu que os outros não se importavam, Gabriel mesmo olhava de volta.
— Tem aquela lenda de que os Antigos comiam porcos – disse Livya tentando se distrair e não encarar de volta. – É verdade?
— Pelo que nos ensinaram – respondeu Naomi, indiferente –, a radiação Pós Terceira Guerra dos Antigos mudou drasticamente diversos animais, então, talvez.
Formações que antes pareciam pequenos morros, agora se mostravam como casas feitas de argila ou barro, dando a impressão de serem cavernas, pois nem todas tinham janelas. Era como andar dentro de um formigueiro gigante. Pessoas saíam e voltavam às suas casas, muitas vezes precisando se abaixar para conseguir passar pela abertura pequena. Algumas outras casas eram feitas de madeira, mas de forma precária.
Uma multidão à frente enchia um grande ciclo, onde cinco fogueiras fritavam carne e porcos empalados. Livya ligou os pontos ao ver que os animais eram a principal fonte de alimentos do lugar.
Em cada uma das fogueiras, uma pessoa cortava nacos de carne e passava para as mãos que se esticavam para ela da multidão.
Novamente, Naomi estava à frente os guiando, e um misto de emoções seguia a comitiva por onde ia, desde medo, raiva, desconfiança e até mesmo inveja.
Logo que viraram para a direita, uma construção diferente do resto crescia. Era uma casa feita de madeira, com muitas janelas. O lado direito era cercado com algumas vacas ordenadas por uma mulher que tinha um grande calombo saindo do meio de suas costas.
Diversas outras mulheres andavam na entrada. Vestiam grandes vestes brancas e seguravam embrulhos. Na entrada principal que não havia uma porta, uma mulher com os braços que desciam até as canelas e extremamente musculosa, observava tudo com muita seriedade. Ela tinha uma grande faca pendurada ao lado do corpo.
Livya deu uma rápida espiada assim que passaram diante da porta. O chão era completamente coberto por colchões onde bebês e crianças pequenas ou de colo brincavam e eram amamentadas.
Do lado oposto ao das vacas, era possível ver os carrinhos de mão dos Transportadores. Livya prestou atenção.
— Então é para cá que trazem as crianças – resmungou baixo e não obteve nenhuma resposta dos outros.
Adentraram ainda mais a cidade, fazendo a casa sumir. Dessa vez, os gritos de vendedores à frente chamaram a atenção deles. Poucas barracas, com produtos escassos e vendedores que não esboçaram o mínimo de reação ao ver os Corvos.
— Moedas são moedas – disse Michel a Livya. – Não importa onde.
Uma mulher com um dos lados do corpo caído mais do que o outro, como se estivesse derretendo, saiu de uma das casas de madeira, e com uma bolsa que aparentava estar repleta de moedas, comprou um belo pedaço de carne.
Logo viram a grande construção. Uma gigantesca casa feita de pedra, com uma escadaria de mármore flanqueada por vigas de concreto. Ela chamaria a atenção em qualquer lugar, mas ali era quase como se fosse algo de outro mundo. Pela grande movimentação de pessoas, ficou muito claro que estavam no centro nervoso principal da cidade.
— Chegamos – disse Naomi.
Subiram as escadas que tinham em seu final dois brutamontes, parecidos com a mulher que guardava as crianças, ambos levavam longas facas presas no cinto. Naomi se adiantou falando:
— Viemos ver Thomas. – Vendo que os dois não demonstraram reação, completou mostrando o anel. – Somos Corvos.
Os trogloditas trocaram rápidas palavras e abriram caminho para o grupo.
— Está na hora – disse Naomi se virando aos três.