A fogueira era a principal fonte de luz na caverna, e nos lugares mais distantes das chamas tochas foram colocadas estrategicamente. O espaço dentro da caverna comportaria facilmente cento e cinquenta pessoas, não era profundo se perdendo dentro do paredão de pedra, lembrava um bolsão de água gigante. Almofadas estavam espalhadas pelo chão esperando pelos integrantes da gangue que iriam se banquetear em breve.
Gabriel estava sentado ao lado da entrada do local, olhava o céu noturno cheio de estrelas, ouviu em sua época de treinamento para ser um Corvo que os Antigos poluíram tanto o planeta a ponto de ser impossível ver todas as estrelas como ele, os pontos brilhantes enchiam a vista não importava para onde olhasse, e a lua estava cheia fazendo a noite ficar clara.
Ajeitou as costas que doíam contra a pedra, o anel símbolo dos Corvos estava escondido na sola de seu tênis, e diferente das habituais roupas pretas, usava as mesmas que os membros da gangue usavam, ou seja, qualquer coisa que ele quisesse. Foi enviado em uma missão para se infiltrar em um grupo que estava atacando caravanas com frequência, isto foi há seis meses. Ele junto a Otto, e Wesley estavam encarregados de pôr um fim nisto.
Dois meses estudando o grupo, e então se juntaram a eles passando por pessoas insatisfeitas como a vida que tinham. No começo faziam trabalhos sem importância, como cuidar das roupas ou limpar os banheiros, uma lembrança que o rapaz lutava com todas as forças para esquecer. Ao perceber que ganhara confiança ele entrou em contato com a cidade que vivia a Cova Trinta e Quatro usando pombos, o modo de comunicação mais prático e rápido naquele tempo, dando o sinal para os outros Corvos da cidade preparassem um comboio falso, e usando esta informação a gangue fez sua jogava roubando-o quase na mesma hora, precisou de somente mais dois saques para serem considerados um achado para o grupo.
Aquela era a noite para celebrar tudo o que conseguiram roubar, dariam um banquete para todo o grupo, os três estavam esperando por uma oportunidade desta. Otto e Wesley, seu parceiro, ajudavam na cozinha, já Gabriel somente esperava pacientemente os acontecimentos da noite começarem. Movimentos no escuro chamaram a atenção dele, que viu as primeiras pessoas indo em direção ao local que estava, mais se juntavam a eles fazendo o grupo somente aumentar.
— Boa noite Gabriel — Disse uma mulher baixa na frente dos outros. — Noite agradável para uma festa não é mesmo?
— Noite! — Respondeu o Corvo que não fazia ideia de quem era a mulher. — Exato, vou te falar, estou ansioso para que todo mundo chegue logo. Falando nisso você viu o Patrick?
Patrick era o líder da gangue, um homem jovem de temperamento estourado e cabeça quente, não era muito inteligente, compensando este defeito com ousadia, que chegava a ser estúpida em algumas situações. Com o passar do tempo o rapaz se apegou bastante a Gabriel, afinal o Corvo estava dando muito lucro para ele.
— Sabe como ele é — respondeu a mulher que não parou de andar em nenhum momento enquanto entrava na caverna junto aos outros. — Deve estar se arrumando, e vai fazer questão de ser um dos últimos a chegar.
— Espero que não demore muito — disse Gabriel com um tom de brincadeira. — Estou morrendo de fome.
— Nem me diga, esta noite quero me matar de tanto comer!
Gabriel sorriu de volta a outra que entrou no lugar que seria realizado a festa, e quando não a viu mais seu sorriso ficou mórbido. Mesmo conhecendo aquelas pessoas a quatro meses, passando o dia e noite com elas, ele não sentia a menor empatia por nenhum, era um Corvo do círculo do Infiltrador, e estava realizando seu trabalho sem maiores problemas.
Os Corvos tinham três círculos, que nada mais era onde seu treinamento iria ser focado, os Infiltradores eram sociais e conseguiam se passar por outra pessoa muito fácil, tendo aulas de teatro e improviso junto as de assassinato. Os Ponta de Lança eram aqueles que nasceram para o combate corpo a corpo, sendo mortais armados ou com as mãos nuas. E finalmente Sombra, que eram assassinos silenciosos, usavam lâminas ocultas e venenos, eram bons em passar despercebidos na multidão.
Quatro homens arrastavam uma carroça com dois tonéis cheios de destilado de maça, um dos espólios do último ataque que Gabriel armou. Era possível ver as veias no pescoço de um, e outro com os olhos estufados, mas não desistiam, continuando em direção a festa. Praguejavam entre si quando algum errava o ritmo dos passos fazendo toda a estrutura de madeira sacudir. Por fim, um deles levantou os olhos que antes estavam focados no chão e esfregando a testa suada no tecido da camisa em seu antebraço se dirige a Gabriel.
— Gabriel! — Gritou aquele de olhos estufados pelo esforço. — Para de ficar olhando para o nada e vem ajudar!
— Como vocês são moles — falou ele que se levantou com um pulo e correu para acudir os quatro.
Correu para a parte traseira do veículo, empurrando a madeira fazendo a carroça se mover. Entendeu o porquê de eles estarem sofrendo, era extremamente pesado, obrigando o rapaz a cerrar os dentes, não demorou para outros dois se juntarem a ele, e esse grupo somente aumentava com o decorrer do tempo, afinal não era sempre que tinham tal bebida em suas refeições, e era uma noite de comemoração. Com a ajuda extra o carro foi levado sem dificuldades até a entrada da caverna, onde outros que já estavam por lá ficaram encarregados de descarregar a bebida e duas caixas com copos de ferro.
— Preciso molhar a garganta — falou o homem que estava com as veias do pescoço estufadas. — Não quero passar por isso tão cedo de novo.
— Achei que sua cabeça fosse estourar de tão vermelha que estava ficando, parecia um tomate. Um tomate bem podre pelo cheiro — brincou um dos outros que se juntaram à procissão de levar a bebida morro acima.
— Engraçadinho — respondeu o homem de forma rabugenta. — Se não calar essa boca eu que vou estourar sua cabeça igual se pisa em um tomate!
Todo o alvoroço não durou muito tempo, enquanto as bebidas eram descarregadas e as canecas eram levadas em caixas de madeira para dentro, as pessoas que assistiam ou ajudaram antes, entravam brincando uma com a outra ou escutando a troca de insultos dos dois homens que ainda se dirigiam a cabeça do outro como tomate podre.
O som ecoava dentro da caverna enquanto as pessoas se colocavam preguiçosas em cima das almofadas. Gabriel olhou para todos com um olhar sem vida por um breve momento quando uma brisa cheia de areia bateu contra seu rosto o fazendo semicerrar seus olhos pretos. Patrick estava de parabéns em relação ao lugar que escolheu para esconder seu grupo, no deserto que vinha depois da Cova Trinta e Quatro o homem teve o feito de achar um local entre três cavernas que se ligavam dando em um local aberto ao céu, lembrando bastante uma ravina.
Gabriel teve a impressão na primeira vez que foi para o esconderijo que o teto sofreu erosão pelo tempo caindo, assim dando diretamente para o céu apinhado de estrelas logo acima de sua cabeça. E que não eram três cavernas como todos no local gostavam de chamar, mas sim somente uma grande com diversas saídas. Resolveu guardar o pensamento para si, e percebeu mais tarde que foi o mais sábio a se fazer, pois viu Otto comentar sobre com outros e no dia seguinte ficou encarregado pelas latrinas por uma semana.
No corredor de pedra que ficava à sua direita, uma casa foi construída contra as paredes. Chamar de casa era quase um elogio para o quadrado de madeira, pensava Gabriel. As paredes foram feitas por tábuas de madeira mal cortadas deixando uma discrepância enorme entre elas, e as janelas e entrada sofriam do mesmo mal, sendo tortas. Luzes escapavam pelos espaços entre as tábuas junto a vozes animadas, vez ou outra um dos feixes de luz desaparecia quando alguém do lado de dentro do cômodo passava, mas logo voltava a reaparecer.
Gabriel continuou olhando para o cômodo, onde as carnes eram preparadas para serem levadas ao local que seria realizada a comemoração pelo saque bem-sucedido. O rapaz continuou prestando atenção ao lugar, cumprimentando distraído alguns poucos que passavam por ele para se juntarem aos outros nas almofadas. Quando pisou pela primeira vez no local Gabriel ficou surpreso com o descaso de Patrick sobre manter guardas nas entradas, agora com os quatro longos meses que passou junto ao grupo entendia perfeitamente o porquê. Os túneis de pedra não deixavam o menor ruído passar batido fazendo-o ecoar em todas as direções. Descobriu isso em sua primeira noite, quando um grupo de morcegos que viviam nas cavernas levantaram voo durante a madrugada, o que fez com que Gabriel saísse desesperado de sua tenda. Todos o atormentavam por isso até hoje.
Finalmente alguém saiu da casa, não foi Otto ou Wesley percebeu Gabriel. Era um homem baixo que levava nos braços uma bandeja de ferro com vários nacos de carne, mais outros quatro rapazes se juntaram ao primeiro, e igual a ele todos levavam bandejas, o grupo esperou por uma garota que saiu segurando um balde com espetos de ferro que seriam usados para assar a refeição. Subiram em direção ao local que os demais esperavam, brincando e fazendo piadas um com os outros, quando a garota viu Gabriel o cumprimenta.
Era uma mulher com seus vinte e oito, sendo um ano mais velha que Gabriel, se juntou ao grupo fazia já algum tempo junto a namorado, que era o homem ao seu lado segurando uma das bandejas de carnes. Se chamavam Bruna e Mike, e viviam se atracando pelos cantos, o próprio Gabriel já os pegou no flagra pelo menos duas vezes, e suspeitava que Wesley espionava os dois pela frequência que acontecia essas "coincidências" com o colega.
— Que noite mais linda, não é mesmo Gabriel? — cumprimentou Bruna com as bochechas vermelhas pelo esforço por carregar tantos espetos.
— Realmente — retribuiu Gabriel. — Quer ajuda com esses espetos?
Bruna fez que não com a cabeça, ajeitando os baldes sobre seus braços.
— Essa aí é osso duro Gabriel — falou Mike, que vinha ao lado de sua parceira. — Sabe disso muito bem.
— Pois é, tem muita coisa para trazer ainda?
— Não, era isso — respondeu o rapaz passando pelo outro e rumando em direção ao grupo.
— Se estiver procurando por Otto ou Wesley, eles estão ajudando a limpar a bagunça que ficou — comentou Bruna que seguiu Mike entrando logo em seguida.
Com um aceno Gabriel cumprimentou os outros que passaram, e se viu novamente sozinho, discretamente enfiou a mão no bolso onde guardava uma Pílula de Carvão, uma droga que ficava no estômago e absorvia qualquer substância nociva, à enfiando na boca no mesmo momento, precisou guardar saliva na boca para fazer a droga descer sem problemas, fazendo careta quando conseguiu.
Era melhor estar preparado, pensou. Ia descer para juntos dos dois parceiros quando sentiu um leve toque em seu ombro direito, soube de imediato quem era, somente Patrick tinha aquela estranha mania de chegar por trás. Na primeira vez Gabriel quase virou, mirando a faca que leva escondido sobre a camisa em direção a garganta dele.
— Onde pensa que vai? — falou Patrick que esperou Gabriel se virar.
Com um olhar controlado Gabriel se virou fitando o homem diante de si. Patrick era baixo com seus um metro e quarenta e tinha acabado de entrar na casa dos trinta, era muito magro, não por falta de comida, pois comia sem vergonha nenhuma, e extremamente bronzeado pelo sol, com cabelos curtos pretos iguais a seus olhos, um sorriso com dois dentes faltando estava escancarado em sua cara.
— Indo ver se precisavam de ajuda — respondeu Gabriel indiferente. — Quanto antes eles acabarem lá, mais rápido poderão se juntar a nós.
Arrastando os pés pela areia do chão, Patrick se colocou ao lado do outro, e passou seu braço pelo ombro de Gabriel, o que fez ele ficar um pouco torto pela diferença de tamanho entre ambos.
— Vamos lá Gabriel! Não tem por que você também ir ajudar, afinal esta comemoração é por sua causa.
— Bom — respondeu Gabriel fingindo ficar sem jeito. — Eu realmente gostaria de ver tudo desde o começo, mais cedo vi o Ronaldo com aquele violão dele, então já sabe né!
Revirando os olhos Patrick somente concordou, às vezes tinha vontade de destruir o instrumento, mas em meio a bebedeira e comida o som animava ainda mais as coisas. Principalmente para aqueles que viviam em meio ao deserto podendo morrer no próximo saque.
— Pense assim Patrick — emendou Gabriel. — No pior dos casos é só beber até a música ficar boa!
— Este é um bom pensamento — concordou. — Que assim seja então meu amigo, vamos?
— Não vejo o porquê demorarmos mais!
A dupla enfim adentrou o local empurrando o tapete que usavam como cortina para não entrar areia. O cheiro de carne inundou Gabriel no mesmo momento, junto ao som de risos e conversas, o grupo de cinquenta e quatro pessoas estava quase todo no local faltando somente três que ficaram junto a Otto e Wesley para ajudar a arrumar as coisas. Uma fogueira grande foi acesa no centro onde a comida era assada, os pedaços suculentos de carne estavam embalados pelos espetos.
Todos levaram suas almofadas mais para perto das chamas, exceto por Bruna e Mike que ficaram em um lugar mais escuro trocando beijos vorazes, e era bom eles aproveitarem aquele momento pensou Gabriel. Os barris com destilado já estavam abertos a algum tempo, e canecas cheias de líquido rodavam de mão em mão, não demorou para os recém-chegados ganharem uma cada. Pelo canto dos olhos Gabriel viu Patrick dar um longo gole, virando todo o conteúdo da caneca de uma única vez, respirando junto ele segue o exemplo do outro.
O líquido fez sua boca e garganta arderem por um breve momento enquanto engolia, mas a sensação de quando chegou em seu estômago foi no mínimo peculiar. Por causa da Pílula de Carvão, o álcool era absolvido fazendo a droga inchar dentro do rapaz, que arrotou sonoramente ao esvaziar sua caneca. Vivas e aplausos animados percorreram a multidão.
Duas almofadas verde lodo estavam desocupadas em um canto, Gabriel foi até elas as trazendo para junto dos outros que somente seguiam ele com os olhos, se acomodou de frente para Patrick que tinha um lugar especial para si.
— A música já vai começar, ou não? — Questionou Gabriel, que soltou as almofadas e foi até o barril de destilado aberto, já pela metade. Enfiou a caneca no líquido transparente a enchendo.
— Ronaldo disse que precisava afinar as notas — falou um senhor calvo com olhos grandes e agitados. — O que é uma lorota! Ele fica dia e noite mexendo naquele instrumento.
— Sim — concordou Gabriel sentado em seu lugar junto aos outros. — Para falar a verdade eu nunca o vi ajudar em nada, ou conseguir afinar o violão.
— Como se atrevem — Censurou rispidamente Ronaldo, que estava um pouco afastado do grupo enquanto dedilhava as cordas do violão. — Não se deve apressar a arte, e para a informação não só dos dois, mas de todos desse bando, eu sou o músico desse grupo.
— Um brinde a nosso músico então! — brandou Gabriel, que foi seguido por uma salva de gritos cheios de elogios exagerados ao músico junto a obscenidades que fariam até mesmo um trabalhador noturno ficar sem jeito, e levaram quase ao mesmo tempo as canecas a boca. Gabriel somente encostou a boca no objeto não engolindo, pois a sensação em sua barriga era incômoda, mas seguiu o fluxo da multidão fazendo o possível para não deixar o líquido escorrer pelo canto da boca.
Se aproveitando do alvoroço, Gabriel desce a caneca quase cheia, derrubando o máximo da bebida que conseguiu, deixando sua mão completamente ensopada por álcool, mas pelo menos assim ninguém iria notar em seu copo que não esvaziava não importava o quanto ele tomava. Não que ele achasse que isso iria acontecer no meio daquela algazarra, mas antes prevenir do que remediar.
Novos brindes foram oferecidos para os mais diversos motivos, desde um falso aniversário que alguém jurava estar fazendo, até mesmo a pessoa com os dentes mais limpos do lugar, o que causou um certo furor por alguns instantes e quase uma troca de socos, pois também brindaram a boca mais desagradável, dando a uma jovem a alcunha de boca de cemitério.
Se levantando enquanto desviava dos cotovelos e canecas que iam para todos os lados Gabriel vai até um dos barris encher seu copo, já havia derrubado tudo e precisava manter a impressão de estar bebendo, passando rente a fogueira principal onde os espetos soltavam um cheiro maravilhoso, a lenha estalava no fogo sendo possível escutar este som somente perto, pois a poluição sonora era insana.
— Atenção de todos! — Gritou Mike, precisou repetir mais cinco vezes cada vez mais alto até enfim ter a atenção de todos.
Bruna se remexeu inquieta ao lado do parceiro, extremamente vermelha, enquanto dava tapinhas no braço do outro, que enfim havia conseguido a atenção desejada.
— Pessoal! — continuou Mike que pelo tom de sua voz já estava muito alterado. — Saibam que eu amo todos vocês, claro que muito menos do que amo meu passarinho! — falou enquanto raspava a ponta de seu nariz no de Bruna.
— Acho que vou vomitar! — brandou alguém na multidão, seguido por uma enxurrada de risos, e declarações espalhafatosas de amor, cada uma mais exagerada que a outra.
— Por conta disso — continuou Mike, não se importando com nada que acontecia à sua volta. — Vou anunciar a todos que em primeira mão! — se levantou colocando a parceira a seu lado. — Ela aceitou! Iremos nos casar!
Um longo segundo de silêncio se estendeu no ambiente, a notícia pegou todos de supetão, e como se nunca tivesse parado os gritos e brindes voltaram a inundar o local, todos os tipos de parabenizações. Gabriel que gritava e assobiava sem parar em meio ao grupo voltava a seu lugar com a caneca cheia, teve que conter o riso ao passar perto de dois homens que falavam baixo entre si.
— Ele acabou de destruir a própria vida — falou um dos homens.
— Meus pêsames — respondeu o outro.
Voltando a seu lugar junto a Patrick e um pequeno grupo que o rodeava, Gabriel acabou bebericando sem querer sua bebida, sentindo a boca inteira arder enquanto a sensação incômoda no estômago de estufamento piorava. Toda a comoção foi rapidamente esquecida, enquanto os noivos voltaram a trocar carícias em um dos cantos escuros do ambiente.
Ronaldo foi até um local mais iluminado, voltando a seu trabalho eterno de afinar as cordas, vendo que a calmaria retornara, mesmo que não muito, Patrick puxa de um dos bolsos uma caixinha de madeira, fazendo o seu conteúdo soltar um som fraco enquanto ele sacudia.
— Enquanto esperamos por Ronaldo — anunciou — Não seria bom um jogo de cartas?
— Não venha com essa — gritou Rosana, uma mulher mais velha e de pele muito curtida pelo sol. — Você rouba demais!
— Ela tem um ponto Patrick. — Concordou Gabriel. — Não só nisso que você rouba — zombou o rapaz que arrancou risadas escandalosas dos que prestavam atenção. — Lembro que me deixou sem nenhuma moeda por um bom tempo, e até hoje não sei de onde você tirou aquele sete, não tinha mais nenhum sete o baralho.
— Vocês me conhecem realmente! — respondeu Patrick rindo enquanto enchia sua caneca mais uma vez. — Vamos fazer assim, desta vez é só por diversão!
— Qual a graça se for desse jeito? — indagou um rapaz que estava ávido a participar da conversa, trazendo sua almofada para junto ao grupo.
Todos trocaram olhares tentando achar uma solução. Gabriel passeou os olhos pelo local, e diversos outros grupos se juntavam por todo o lugar conversando entre si, mesmo estando no mesmo local era fácil distinguir aqueles que eram mais próximos um do que outro.
— Simples — disse Gabriel por fim chamando a atenção de todos para si. — Quem perder vira uma caneca cheia até a boca! — disse sacudindo a que segurava fazendo um pouco de destilado cair no chão de terra, e por consequência em sua almofada verde alga.
— Perfeito! — disse Patrick, com suas bochechas avermelhadas pelo álcool ingerido.
— Aqui! — falou Rosana tirando um baralho que sempre mantinha escondido por de baixo das roupas surradas. — Vamos usar o meu, porque no seu eu não confio jamais, o de sempre rapazes?
Patrick guardou sua caixinha de madeira novamente sob suas roupas um pouco sem graça, o que não incomodou nenhum pouco o Corvo, Gabriel igual a todos que iriam jogar sabiam muito bem que o baralho do rapaz era completamente marcado e viciado, ninguém duvidava nenhum pouco que Patrick chegou a decorar a parte traseira de cada carta.
Gabriel junto aos que iriam participar concordou com a mulher, e encheu sua caneca, voltou ao seu lugar. Iriam jogar vinte e um, um jogo dos Antigos que tinha poucas regras sendo elas as seguintes: cada um começa com duas cartas, podendo comprar quantas quiser, o objetivo era chegar em vinte e um pontos antes dos outros, e para fazer isso a soma dos números nas cartas precisava bater ou se aproximar o máximo possível de vinte e um, se passar perde no mesmo momento. Para comprar cartas era preciso pegar uma por vez, e sempre mostrar a todos o número que tirou.
O grupo se arrumou o mais próximo de um círculo que conseguiram e Rosana como a dona do baralho começou a passar duas cartas para cada um. Vozes animadas chamaram a atenção de Gabriel o fazendo olhar na direção onde alguns dos pedaços da carne eram cortados e começavam a ser distribuídos, continuou olhando até ver alguns pedaços serem mordidos e mastigados, não conseguiu esconder um sorriso cruel.
— Sua mão deve estar realmente muito boa — falou Patrick
— Oi? — respondeu o rapaz que havia se perdido totalmente em um devaneio cruel.
— Sua mão — repetiu Patrick apontando com o queijo as duas cartas na mão de Gabriel.
Descendo os olhos para os dois pedaços de papel velho Gabriel percebeu que havia aceito por puro reflexo, respirando junto se concentrou novamente naqueles a sua volta. Analisou as cartas, um dez e um quatro, não era das piores mãos, mas também nada demais.
— Vou querer uma! — disse o rapaz empolgado que entrou a pouco no grupo pois era o primeiro no sentido horário, e sempre começava por esse lado.
Rosana colocou a virada no meio da mesa um sete, todos olharam para o rapaz que fungou descendo as duas cartas na mesa ele tinha um dez e um cinco, com a nova carta foi a vinte e dois estourando e ficando assim fora do jogo. Gabriel olhou para aquele sete com desejo pois teria vencido com ele.
— Que bosta — comentou o rapaz virando a caneca com claro esforço, linhas de destilados lhe desceram pelo queixo. — Pronto — falou com uma careta mostrando a todos que a caneca estava vazia.
— Provavelmente até o fim da noite todos aqui vão estar desacordados! — brincou Patrick.
— Também acho — emendou Gabriel — Afinal essa é a ideia.
— Olha a carne, pessoal! — disse uma mulher que trazia uma bandeja cheia de fatias da carne esfumaçando-te.
— Claro — respondeu Patrick de imediato. — Pode deixar aqui. — falou apontando um local ao seu lado.
A bandeja mal foi colocada no chão e todos atacaram sem pudor o alimento, Gabriel só olhava calmamente. Em todas as direções os sons de conversas ficaram abafadas por bocas cheias de carne e bebida, até mesmo Bruna e Mike pararam de trocar beijos para comer e dar selinhos esporádicos
— Não vai comer Gabriel? — perguntou Patrick segurando um naco de carne em direção ao rapaz.
— Ainda não — ele respondeu. — Preciso de espaço para a bebida, se quero deixar vocês todos caindo pelos cantos.
— Vai precisar de muito espaço então! — retrucou Patrick enfiando mais carne na boca.
— Veremos.
Antes que voltassem ao jogo de cartas, um som de violão encheu todo o aposento fazendo as conversas diminuírem rapidamente. Ronaldo finalmente estava dedilhando as cordas de seu instrumento, de forma quase teatral se levanta e limpando a garganta se prepara para uma de suas músicas indecentes.
Gabriel adorava as músicas do velho homem, ficava admirado com a quantidade obscena de absurdos que saíam dele, o que chegava a ser engraçado, afinal Ronaldo tinha a aparência de ser uma pessoa culta. Se Naomi, a parceira de Gabriel, estivesse em alguns dos shows do velho, iria fechar a cara. Pensar em Naomi fez o peso do seu estômago ficar pior, já fazia quatro meses que não tinha notícias dela, ainda mais após a última missão a cerca de um ano e meio que fora quase morta. Conhecia a parceira o bastante para saber que ela já estava preparada para outra. Quando algum tossindo o fez sair de seus devaneios.
— Nossa — falou uma mulher se sentando um pouco pálida. — Acho que a bebida realmente bateu.
Alguns outros seguiram o exemplo dela se esparramando pelos travesseiros. Gabriel somente observava taciturno, quando alguém puxa ele pelos braços fazendo ele ficar de frente a Rosana.
— Vamos dançar! — praticamente mandou a mulher.
— Não vejo o porquê recusar — respondeu Gabriel com um sorriso satisfeito.
Alguns casais rodopiavam alegres sendo movidos pela música de Ronaldo, uma canção divertida que falava sobre um homem que bebeu tanto a ponto de esquecer o caminho de casa, resolvendo beber mais para ver se lembrava.
As tosses ficavam cada vez mais aparente no grupo, e o número de pessoas sentadas quase dobrou. Gabriel prestou atenção em Rosana que ficava cada vez mais pálida diante de si, desviou o olhar para Patrick que por sua vez estava sentado, a música vacilava enquanto Ronaldo se esforçava para manter o ritmo. Quando um grito veio.
— Mike!!! Alguém, socorro, o Mike está passando mal!
Um silêncio ensurdecedor tomou o local, onde somente o farfalhar do fogo não se aquietou. Gabriel olhou em direção a Bruna no mesmo momento, vendo-a lutar para manter o parceiro em pé. Vômito escorria da boca com os lábios do homem começando a tomar um tom roxo pastoso, olhos de Mike se reviraram e todo seu corpo convulsionou.
Aconteceu tudo muito rápido, mesmo parecendo durar horas para aqueles que assistiram horrorizados. Bruna continuava a gritar, e seus berros se intensificaram quando seu companheiro passou a vomitar sangue, tossindo e chorando enquanto tentava em vão respirar, e assim como começou acabou, o som que Bruna soltou era algo que Gabriel não iria esquecer tão fácil.
— Mas que merda é essa — comentou alguém ao lado de Gabriel.
E então começou, por todos os lados as pessoas vomitavam e se contorcia em dor igual a Mike, o que antes era alegria agora transmitia sofrimento e morte. Corpos paravam de se mexer ou lutavam em vão pela vida enquanto se afogava em seu vômito ou sangue, cadáveres caíam em pequenas poças de fluidos humanos que começavam a se juntar deixando todo o solo empapado por vômito, um cheiro azedo impregnou todo o local. Bruna que antes gritava descontrolada sobre o corpo de seu parceiro agora estava caída sobre ele.
Mesmo na morte estavam grudados, pensou Gabriel com um sorriso frio.
— Demorou demais — falou Gabriel para si mesmo. — A dose do veneno estava baixa, ou será que foi o fogo? — se questionou o rapaz. — Preciso ver isso com o Otto depois.
— Gabriel — suplicou alguém, fazendo força para falar.
Sendo o único de pé, Gabriel se virou vendo Patrick se contorcendo em agonia enquanto estica uma das mãos em direção ao outro, como se fosse mudar em algo seu destino.
— Você é resistente mesmo Patrick — brincou Gabriel se abaixando perto do rosto do homem, mas não muito perto, afinal ele estava fedendo a vomito. — Sabe, eu acho que esse é um bom fim para vocês.
Sem entender nada Patrick somente olhava desesperado para o outro. Com um suspiro Gabriel tira seu tênis tomando cuidado com as poças de fluidos no chão e retira seu anel negro escondido na sola. Sem pressa coloca seu sapato novamente, e então mostra o objeto para Patrick.
— Você — o rosto dele se modificou no mesmo momento quando entendeu o que estava acontecendo. — Fez isso?
— Sim — respondeu Gabriel indiferente enquanto colocava o anel despreocupado.
— Monstro — as palavras saíram baixas dos lábios que estavam cada vez mais roxos do homem, falou novamente agora colocando todas as suas forças em uma única palavra. — Monstro!
— Errado Patrick — retrucou Gabriel se levantando, e sacudiu os dedos em direção ao outro fazendo o anel negro aparecer refletindo as chamas. — Sou um Corvo.
Patrick morreu com lágrimas de ódio escorrendo por seus olhos, e vômito pela boca. O Corvo simplesmente saiu desviando dos poucos que ainda estavam lutando pela vida, passou pelo tapete que estava sendo usado na entrada e respirou fundo o ar da noite.
Novamente aquela sensação amarga que sempre aparecia após uma missão deste tipo, sentia que precisava tomar um banho para tirar toda a podridão dele, repentinamente seu estômago se revirou o fazendo vomitar, havia bebido mais do que deveria. A Pílula de Carvão fez seu efeito e tudo o que era nocivo fora absorvido por ela, fazendo Gabriel vomitar pequenas bolotas parecidas com esponjas. Respirou fundo novamente para se estabilizar, quando viu uma figura subir em sua direção.
Otto, um Corvo mais novo vinha da pequena cabana, estava com seus cabelos pretos e curtos grudados contra a testa pelo suor, e trajava uma roupa cor de caqui. Trazia em sua mão direita uma faca que fazia o sangue reluzir contra a luz da lua.
— Estão todos mortos? — indagou o rapaz.
— Quase — disse Gabriel ainda olhando para o céu estrelado. — Mas logo devem estar.
— Desculpa Gabriel — falou sem jeito o rapaz — Não esperava que o veneno ia perder tanta potência assim quando colocado no fogo, da próxima vez preciso aumentar a quantia.
— Sim — respondeu Gabriel cuspindo para tirar o gosto da pílula da boca. — Mas foi um bom aprendizado pelo menos.
- Está irritado comigo pela demora do efeito, né?
— Não tem problema Otto — falou Gabriel indo até o parceiro. — Foi legal ouvir a última música do Ronaldo.
— Ah — suspirou o Corvo mais jovem. — Gostava das músicas dele.
— Mas mudando de assunto — cortou Gabriel que sinalizou para a faca na mão do rapaz. — O que aconteceu?
— Nem todos quiseram comer.
Teve que se segurar para não rir da simplicidade da resposta do outro. Usaram o velho truque da comida envenenada, algo que devia ser feito desde que o primeiro ser humano descobriu o veneno. Uma brisa entrou em uma das cavernas fazendo um som sinistro, e alguns morcegos voaram assustados.
— Wesley estava ocupado guardando os venenos — disse Otto olhando para a caverna distraído. — Vai demorar um pouco para sair ainda. Gabriel o que fizemos agora faz da gente heróis?
— Heróis — sussurrou para si mesmo o Corvo. — Otto vou te dizer uma coisa, os heróis morreram junto dos Antigos, vivemos em um mundo de monstros, e somos o pior deles.
Otto não disse nada, limpando a lâmina de sua arma sem pressa na cortina que servia de entrada para o que antes era uma festa e agora não passava de um abatedouro. Enfim havia acabado a missão, poderiam voltar para a casa. Não tardou para os três Corvos serem os únicos vivos na caverna.