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As Crônicas de Ravena - A ascensão da quimera

Ravena e as Províncias Mágicas enfrenta um inimigo aparentemente invencível: Rogath, um híbrido determinado a assumir o trono e garantir a supremacia de sua espécie. O rei, Markus, sente que está fracassando na tarefa de proteger seus súditos e convence o Senado a libertar uma prisioneira perigosíssima da prisão de segurança máxima Silver Coast. Atalya, a prisioneira, faz um trato aparentemente "simples" com Markus: em troca do perdão de todos os seus crimes, ela tem que achar o esconderijo de Rogath e eliminá-lo. Contudo, a missão sofre uma reviravolta: um golpe tira Markus do trono e coloca Atalya em um dilema. A garota agora precisa decidir qual caminho seguir: apoiar o novo governo que defende princípios iguais aos seus - embora que de forma distorcida-, ou lutar pela sua liberdade.

arialblack16 · Fantasie
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Capítulo III

Era como se eu emergisse de um lago escuro, depois de ficar muito tempo prendendo a respiração. Como um dia de sol depois de semanas de chuva. Respirar o ar puro depois de cem anos respirando o ar de Silver Coast era como a lubrificação nova para uma máquina. Era tudo muito novo para mim, e muito diferente. Cem anos haviam se passado e com certeza o mundo estava totalmente distinto do que era quando fui presa. Seria como uma criança que conhece o mundo pela primeira vez. Reaprender a andar, a viver.

Havia uma carruagem à minha espera. O homem que acompanhou Markus, que eu não lembrava o nome, desceu dela e manteve a porta aberta para mim. Havia dois guardas junto a ela, com suas balestras apontadas para o meu pescoço.

— Por que não usamos o limbo? — Perguntei confusa.

O homem me olhou com certo desprezo.

— Graças a você, Markus e o senado proibiram esse meio de transporte — vociferou ele.

Ergui as sobrancelhas, mais surpresa pelo impacto que eu causei do que com a grosseria do militar. Qual era o nome dele mesmo? Subi na carruagem e me ajeitei no assento defronte ao homem. Ele parecia estar odiando manter-se no mesmo recinto que eu.

— Você vai chegar no castelo e vai direto para a ala médica — informou ele, usando o mesmo tom ríspido.

— Não estou doente — retorqui.

— Vamos retirar a poção do seu corpo, quimera — rugiu ele. — Ela limita seus dons e o rei quer que você esteja em seu melhor estado.

— Obrigada, Jarbas — respondi, apenas.

Ele fechou a cara mais ainda. Será que eu errei o nome dele ou ele simplesmente odiava falar comigo?

Jarbas, ou algo parecido, não falou comigo pelo restante do caminho. A carruagem era totalmente fechada, não me permitindo admirar a paisagem. Passei um século sem poder admirar a paisagem, um dia a mais não iria me matar.

Meu coração batia com força, descontroladamente. Livre finalmente! Tudo bem que ainda tinha de caçar o inimigo do governo, mas eu só conseguia pensar na minha tão esperada liberdade.

Depois do que pareceram horas, a carruagem parou. Um guarda abriu a porta, informando que havíamos chegado. O homem militar desceu primeiro e eu o segui. Os guardas mantiveram suas balestras apontadas para mim, mas o que me chamou a atenção foi a cidade que se estendia diante de mim.

Na verdade, as sombras do que um dia foi a imponente capital Ravena. Conforme fui adentrando a cidade, cada vez mais parecia a grandeza da cidade tinha ido embora. Ravena, a capital do poder e a cidade da união agora era um território formado por grupos de casas, alguns edifícios com claros sinais de abandono (inclusive uma das casas abandonadas tinha a frase "vida curta ao rei" pichada com tinta vermelha), outros agrupamentos com belas casas e poucos comércios.

Eu lembrava claramente de existir quilômetros de ruas, casas simples e mansões, grandes lojas e lojinhas e todo o tipo de estabelecimento que pudesse existir. Ravena parecia mais um acampamento de guerra do que uma cidade. As pessoas que circulavam vestiam de forma muito simples e não havia mais as jardineiras cheias de flores e as feiras cheias de produtos frescos. Nada do aroma sempre presente de comida recém servida. Apenas um clima lúgubre.

Guardas estavam por todos os lugares, observando os habitantes. Eles bateram continência a Jarbas (ou algo parecido) e o povo me olhou com curiosidade quando passei. Mais à frente, estava a ponte de pedra que conectava o castelo à cidade. Atravessei ela seguindo os guardas, sentindo as muralhas do castelo avultarem-se sobre mim.

Havia guaritas sobre a muralha, com guardas fazendo vigias. Nos portões havia mais guardas, que conversaram com Jarbas (ou algo parecido) baixinho, quase sussurrando. Como a poção ainda corria pelas minhas veias, eu tinha uma audição básica, nível comuna. Senti falta dos meus dons. Poucos minutos de conversa e eles logo abriram os portões.

Desviei de uma carruagem que saia do palácio e segui em direção aos portões da construção, sempre acompanhada de perto pelos guardas e por Jarbas (ou algo parecido).

Imediatamente, o cheiro das flores silvestres do jardim do castelo invadiu minhas narinas. O jardim do castelo de Ravena, a sede do poder do rei, era a menina dos olhos da rainha. A rainha adorava colocar dezenas, senão centenas, de jardineiros cuidando das mais variadas espécies de flores, dispostas em desenhos geométricos. Lembrei com prazer do dia em que ateei fogo as flores, pouco antes de ser presa. A rainha chorava, desesperada, enquanto suas plantinhas viravam cinzas. Bons tempos.

O castelo continuava imponente, como sempre foi há milênios, e, provavelmente, continuará assim pelas próximas eras. No entanto, não emanava mais poder. Os mastros com o brasão da família real não estavam mais hasteados. Havia apenas uma bandeira preta a meio mastro. Não havia mais a habitual balburdia de pessoas entrando e saindo, seja para negociar seus produtos, seja para fazer pedidos aos políticos que trabalhavam ali. Nem se ouvia mais o barulho distante do treino das tropas e dos jovens peculiaris em combate.

Os guardas que vigiavam as portas do castelo ergueram as varinhas aos nos ver. Inconscientemente, ergui as duas mãos. Jarbas se adiantou aos guardas, que não baixaram as varinhas.

— Diga seu nome — ordenou um dos guardas.

— Jeras Steveren, Ministro da Justiça e da Guerra, barão da nobre casa de Steveren.

Ah, o nome dele era Jeras. Deve ter sido por isso que ele ficou bravo.

— Objetivo? — A voz grossa do guarda não exprimia nenhuma emoção.

— Escoltar a prisioneira de Silver Coast, liberta por ordens diretas de Vossa Majestade, até o castelo de Ravena — respondeu Jeras, entregando alguns papeis ao guarda inquisidor.

O guarda examinou os papeis, dando leves toques com a varinha. O outro guarda se aproximou, também examinou o documento e os dois trocaram algumas palavras. Assim que pareceram bastante convictos, devolveram os documentos e abriram os portões, rapidamente se tornando extremamente afáveis com Jeras, mas nem sequer me olharam.

Assim que ultrapassei o portal, meus ouvidos foram invadidos por várias máquinas de escrever trabalhando avidamente. Dos dois lados do enorme hall, havia mesas com recepcionistas digitando febrilmente, o som alternando-se com os toques intermitentes de telefones. Algumas pessoas circulavam nos andares de cima, saiam de elevadores ao fundo, mantinham-se sentadas nos bancos esperando ou se debruçavam nos balcões para falar com as recepcionistas. No fundo do hall, na frente da enorme escadaria de mármore que levava aos andares superiores, havia outra mesa, maior que a das outras secretárias, com uma mulher bem mais velha falando ao telefone.

Assim que dei meu primeiro passo no interior do castelo, o ambiente caiu em um silêncio sepulcral e todos os olhares caíram em mim. Os guardas que estavam dentro do palácio ergueram suas varinhas e balestras e miraram nas minhas regiões vitais. Algumas recepcionistas trocaram sussurros chocados entre elas e, mais uma vez, eu não conseguia ouvir. As pessoas que estavam a pelos menos dez metros de distância, se afastaram sem nem disfarçar. Uma presa de extremo perigo estava circulando dentro do castelo em Ravena. Salve-se quem puder.

Jeras se adiantou até a mesa principal, de onde a recepcionista me olhava como se eu estivesse do avesso. Eles discutiram de forma intensa, mas aos sussurros e, pela forma como os olhos arregalados dela rolavam para mim volta e meia, o assunto era eu. Ele pareceu bastante contrariado ao se afastar da mesa e me olhou com mais desprezo ainda.

— O doutor vai te ver agora — rosnou o ministro.

O senado todo silenciou quando eu entrei. Todo o desprezo e a aversão dos presentes me atingiu como uma lufada de ar quente. A tensão do ambiente podia ser cortada a faca. Entrei, ignorando a birra dos senadores, caminhei até a frente das bancadas e me sentei em um banco destinado a convidados especiais. Os pensamentos turbulentos dos senadores causavam um zumbido irritante dentro da minha cabeça e eu não conseguia me concentrar em nada. Encarei cada um dos presentes, sorrindo malignamente. Todos desviavam o olhar quando nossos olhares se encontravam. Era bom ver que eu ainda tinha certo poder.

Fazia tanto tempo que Markus estava falando, que estava cogitando seriamente a hipótese de sair correndo. Eu estava sentada na mesma posição há horas, ouvindo o rei e os senadores discutirem incansavelmente sobre a guerra que se desenrolava. No entanto, não era o chá de cadeira que me incomodava. Era a sede.

O médico havia drenado a poção das minhas veias, despertando meus poderes novamente. Só que os cem anos de inatividade fizeram com que algumas coisas ficassem extremamente intensas, e minha sede de sangue era a principal delas. Assim como eu tinha que manter minha parte humana alimentada com comida normal, eu também tinha que manter minhas partes que consumiam sangue. Com a poção em minhas veias, apenas meu lado humano estava desperto e precisava ser mantido funcionando.

E não era apenas a sede. Meu cérebro estava bastante agitado, querendo sentir todos os cheiros, olhar todas as coisas e ler a mente de todos. Levaria dias até eu conseguir entrar em sincronia comigo mesma e conseguir controlar minha mente barulhenta. O Senado de Ravena era dividido por bancadas, cada uma representando uma província ou um povo. Havia bancadas que tinham maior relevância, geralmente aquelas que apoiaram o rei em sua eleição, consequentemente suas questões tinham mais prioridade. No reinado de Markus, a bancada de Raven's Gumble (dos bruxos) e de Bloodmonger (dos vampiros) possuíam maior prestígio e, consequentemente, também tinham as bancadas com mais senadores. Também havia bancadas com menos prestígio, chamadas de bancadas representativas: para manter a democracia, o rei permitia a existência destas bancadas, mas elas geralmente não tinham voz ou possuíam poucos representantes. Era o caso da bancada de Moonwatcher (dos lobisomens) e de Whitehart (das fadas). Ambos eram contrários ao governo de Markus e, antes de eu ser presa, eram constantemente acusados de gerar híbridos, algo proibido pelo governo.

As bancadas medianas, como a bancadas da província de Wavecarver, das regiões subaquáticas e Goldraker, das florestas do Norte, por exemplo, geralmente eram neutros em relação ao apoio de soberanos, mas se posicionavam fortemente em questões sociais. Não sei se ainda era assim nos dias de hoje, mas há cem anos, quem quisesse sancionar qualquer lei, precisava do apoio das bancadas medianas. Se você conseguisse o apoio da maioria, podia contar com a vitória. As bancadas com maior prestígio perdiam em quantidade no senado.

Minha garganta queimava como se eu tivesse engolido uma fogueira. O palpitar de centenas de corações não facilitava em nada. Eu conseguia ouvir individualmente cada pulsar de veias, como uma doce canção, seduzindo meus ouvidos e, principalmente, meus instintos de assassina.

— ... e assim, senhores, acredito que nossa quimera pode ser efetiva no ataque a Rogath — disse Markus, apontando para mim.

Pisquei, surpresa, porque não prestei atenção em nada da reunião. Os senadores pareciam contrariados, alguns surpresos e outros com olhar ambicioso de quem deseja ganhar a guerra. De certa forma, parecia até uma visão otimista.

Markus convocou uma pausa de trinta minutos e os senadores rapidamente se levantaram, alguns se reunindo em grupinhos, outros se aproximaram para puxar o saco do rei e pouquíssimos saíram do recinto. Continuei sentada, tentando alinhar minha mente e evitar saltar no pescoço de alguém.

— Quimera — disse uma voz desconhecida, me fazendo levantar a cabeça.

Era um senador. Ele era igual a todos os outros senadores, um homem de aspecto nobre que achava que sabia de todos os assuntos do mundo. A única diferença era que suas orelhas eram pontudas, seu cabelo era branco como a neve e seus olhos não possuíam íris, apenas uma pupila fina. Um elfo.

— Sim? — Perguntei.

— Não pense que você é desejada aqui nesse castelo ou em qualquer lugar fora de Silver Coast. Você é um ser descartável para nós e só aceitamos te libertar porque o destino das províncias está em nossas mãos. Não ouse bancar a espertinha e fugir. Iremos caçá-la e matá-la com prazer.

Ergui a sobrancelha. O Orelhudo realmente estava falando sério.

— Não precisa se preocupar comigo. Serei um anjinho — cantarolei, sarcástica.

O elfo semicerrou os olhos, tentando avaliar se eu fui sincera ou não e sem chegar a uma resposta definitiva, e se afastou.

— Atalya! — Exclamou Markus, surgindo do meu lado.

Engoli em seco. Seu coração batia mais alto do que o coração do senador élfico e senti a saliva se acumular na minha boca.

— Sim? — Respondi, entredentes.

— Peço que não saia do recinto, faremos o juramento da sua missão.

— Juramento? — Repeti, confusa.

— É uma garantia de que o acordo será cumprido — Markus sorriu como se estivesse anunciando que íamos tomar sorvete no parque.

Sorri sem humor. Eu só queria um copo de sangue.

A reunião recomeçou com uma batida de martelo do relator.

— Caros senadores, prosseguiremos a sessão. Quimera, aproxime-se da bancada de Vossa Majestade — disse o relator.

Levantei, suspirando satisfeita ao sentir o meu sangue circulando para as áreas dormentes. A bancada de Markus ficava defronte as demais. Ao seu lado sentavam-se os ministros, o conselheiro da coroa e a rainha, mas os dois últimos estavam ausentes.

Markus se ergueu, enquanto um dos ministros trazia um saco preto de tecido, contendo um objeto grande retangular, mas que batia contra algo metálico lá dentro. Parei diante do rei, com a bancada nos separando, e olhei para os objetos que o ministro havia colocado entre nós. Havia um tabuleiro de pedra, que emanava uma sutil luz roxa, com vários símbolos gravados na pedra. Ao lado do tabuleiro havia uma adaga de prata e duas taças de ouro, cravejadas de rubis.

— Estenda a mão — disse o ministro que trouxera os objetos.

Estendi a mão, ao que o ministro agarrou meu pulso e fez um corte na palma. Não senti dor, apenas um leve desconforto. O homem fechou-a em punho e usou uma das taças para captar o liquido vermelho. A adaga parecia ter alguma espécie de encantamento ou poção, porque minha mão só parou de sangrar quando o sangue encheu metade do cálice, fazendo o corte cicatrizar em segundos.

Ele fez o mesmo com o rei. Prendi a respiração e desviei o olhar, de repente extremamente interessada na bainha da minha blusa.

— O Juramento de Sangue sobre a Tábua Sagrada garantirá que a prisioneira cumprirá com o combinado. Em contrapartida, também assegurará as promessas feitas pelo rei — explicou o relator da sessão.

Meu olhar percorreu os ministros, todos com a mesma expressão ambiciosa e ansiosa.

Começava a nova operação militar contra Rogath.