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As Crônicas de Ravena - A ascensão da quimera

Ravena e as Províncias Mágicas enfrenta um inimigo aparentemente invencível: Rogath, um híbrido determinado a assumir o trono e garantir a supremacia de sua espécie. O rei, Markus, sente que está fracassando na tarefa de proteger seus súditos e convence o Senado a libertar uma prisioneira perigosíssima da prisão de segurança máxima Silver Coast. Atalya, a prisioneira, faz um trato aparentemente "simples" com Markus: em troca do perdão de todos os seus crimes, ela tem que achar o esconderijo de Rogath e eliminá-lo. Contudo, a missão sofre uma reviravolta: um golpe tira Markus do trono e coloca Atalya em um dilema. A garota agora precisa decidir qual caminho seguir: apoiar o novo governo que defende princípios iguais aos seus - embora que de forma distorcida-, ou lutar pela sua liberdade.

arialblack16 · Fantasie
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Capítulo I

Eu estava correndo. Minhas pernas se moviam como se estivessem mergulhadas em algo viscoso e, por mais que eu tentasse ir mais rápido, elas simplesmente não me obedeciam. Meus pulmões queimavam com o esforço, meu rosto estava molhado e eu sentia como se meu coração estivesse se desfazendo em pedacinhos. Uma cena macabra se repetia em minha cabeça e, por mais que eu tentasse reprimi-la, ela insistia em ficar ali, como em um looping macabro.

Eu ouvia os passos atrás de mim, o som de várias pessoas me perseguindo. Eles iam me pegar, iam me enganar, iam me machucar. Virei em um corredor escuro, subi escadas. Entrei em salas desconhecidas, atravessei portas que me lançavam em corredores cada vez mais escuros e assustadores. Tranquei algumas das portas na esperança de que eles não me pegassem. Era inútil. Eles iam me pegar.

Um jorro de luz veio na minha direção, fazendo eu perder o controle sobre minhas pernas e logo senti o chão gelado contra o meu rosto. Tentei me levantar, mas eu estava presa por algo invisível. Eu não conseguia me mexer. Os passos estavam perto. Eles iam me pegar. Meu corpo doía, ia explodir de dor.

Tinha acabado. Eu estava morta. Comecei a chorar mais intensamente. Eu quero morrer, me deixe morrer.

Passos cada vez mais próximos.

Eu quero morrer. Deixe-me morrer.

Mais um dia começava em Silver Coast. Os gritos, choros e murmúrios faziam parte da rotina diária da prisão. Cada um aqui tinha uma história, uma trajetória que sempre acabava da mesma forma: um crime, por descontrole ou desespero, de cabeça quente ou arquitetado, que culminava na sentença de passar o resto da existência trancafiado em uma cela fria, com guardas que odiavam o próprio trabalho e os clamores dos que estavam aqui há tanto tempo que já tinham perdido a noção de dia e noite.

Hoje a prisão estava especialmente barulhenta. A bruxa que fica na cela à minha frente, condenada por sequestrar crianças e comê-las, gritava sem parar, rogando praga a todos que passavam. Um híbrido de duende e sereia arranhava o metal da cela com suas longas unhas, fazendo um som de estourar os tímpanos. Os guardas corriam para todos os lados, munidos de seringas com a famosa Poção Infirmi, inventada para anular os poderes de qualquer peculiaris, híbrido ou sangue puro, e deixá-los tranquilos como um bebê.

Tentei ao máximo me concentrar para conseguir um pouco de paz interior. Hoje completava o centésimo ano dentro de Silver Coast. Um século dentro da cadeia sem ver o tempo passar. Era também meu aniversário. Cento e vinte e um anos existindo. Sim, eu era uma garota de vinte e um anos presa há cem anos nesta cela e nesta aparência. Não, eu não sei explicar isso. Apenas aceitei, para estressar menos.

O metal da porta da minha cela tremeu quando algo pesado se chocou contra ele repetidas vezes. Realmente, eu poderia dar adeus a tentativa de meditar. Virei a cabeça com certa relutância na direção do som e os olhinhos de porco do guarda me encaravam com desprezo.

— Quimera, você tem visitas — vociferou ele, educado como um javali selvagem.

— Não recebo visitas — respondi de volta, entediada.

— Não dê uma de espertinha, desça daí que estão vindo te buscar.

Revirei os olhos. Nem tinha tomado café e o guarda não tinha trocado meu acervo de livros semanal, mas queriam que eu estivesse disposta a ver alguém que, com certeza, pioraria o meu dia. Francamente. Desdobrei minhas pernas e deixei meu corpo descer delicadamente. Apesar da poção, eu ainda conseguia usar levitação. Não era de grande utilidade, mas era melhor que meditar com a bunda no chão gelado da cela. Ou no colchão duro.

Os guardas não tardaram a chegar, impacientes como sempre. Dois deles mantiveram-se parados à porta com as balestras apontadas para mim, enquanto os outros se aproximavam para executar os rituais de retirada de um detento da cadeia. Primeiro a poção, para garantir que eu não usaria meus poderes. Depois as luvas de metal, que envolviam minhas mãos totalmente. Os grilhões nos pés e, por último, a mordaça de ferro, para evitar que eu mordesse alguém. Ou cuspisse veneno. Ou ambos.

Um guarda me arrastou para fora da cela e os outros fizeram uma formação para me conduzir até a visita desconhecida. O corredor estava extremamente barulhento. Os prisioneiros se jogavam contra as portas de suas celas, estendiam os braços, um inclusive puxou meu cabelo. Eu não entendia o porquê de tanta agitação e já estava ficando com raiva. Mais uma leva de guardas passaram rapidamente, prontos para injetar poção no pessoal fazendo algazarra.

— Vocês viram aquela família morta em Salem? — perguntou um dos guardas, tentando sobrepor sua voz a algazarra vinda das celas.

— Dizem que tiveram que catar as tripas com pás — comentou outro, que era uma mulher, quase aos gritos.

— Eu ouvi dizer que foi um lobisomem.

— Ah, qual é?! Vocês acham que um lobisomem ia fazer uma lambança daquelas? Tinha tripas até no teto! — o guarda atrás de mim estava até rindo.

— Aposto que foi um híbrido. Aquelas escórias têm cara de que fazem esse tipo de coisa — sugeriu a guarda mulher.

Eu soltei um suspiro. O ar passou pela máscara de ferro e me fez parecer um asmático no meio de uma crise. Eu me arrastava sem muita vontade, já desejando voltar para minha cela.

— Conhecemos híbridos que fazem estragos piores, não é, quimera?

O guarda atrás de mim me cutucou e todos começaram a rir. Tentei me distrair da conversa dos guardas, mas era difícil com eles falando tão perto dos meus ouvidos. Andei de forma obediente, passando por celas e mais celas, a mesma lamentação emitida de forma diferente por cada um dos presos. Os presos daqui gostavam de achar que eram pessoas boas que fizeram uma coisa errada e estavam aqui por injustiça. Talvez, em prisões que abrigavam presos acusados de delitos mais leves, essa história até colasse. Já aqui, não havia uma pessoa inocente. Havia abuso de autoridade, falsificação de fichas criminais e deslizes judiciários, mas não havia pessoas inocentes.

Fui enfiada em uma salinha minúscula, com a iluminação fraca, repleta de guardas com armamento bem ameaçador. No centro do aposento pequeno estavam dois homens, um em pé, outro sentado. O que estava em pé era grande como um armário, cada bíceps tinha o mesmo diâmetro da minha coxa e trajava um uniforme repleto de medalhas e condecorações. Seu cabelo era cortado bem curto, quase careca, claramente alguém do alto escalão militar.

O segundo homem estava sentado, de braços cruzados e expressão neutra. Seu ar remetia a quem pertencia a realeza, mas sua expressão era de quem não dormia há dias. Os cabelos eram brancos na região próximas as orelhas e as rugas já dominavam o canto dos olhos e a área ao redor da boca. Vestia-se como quem ia se reunir com membros importantes da sociedade, não com uma prisioneira.

Eu nunca tinha recebido visitas. Na verdade, em Silver Coast era muito raro alguém receber visitas, pois todos aqui eram párias da sociedade, encarcerados e destinados a morrer dentro das celas. Alguns não tinham família, enquanto os que tinham foram rejeitados. Um prisioneiro de Silver Coast é incapaz de conviver com os outros, até mesmo dividir a cela com outro prisioneiro.

O visitante sentado me olhou com expectativa, mas eu só fiz uma careta de desagrado. Os guardas que me trouxeram tiraram a mordaça de ferro, sendo vigiados com muita atenção pelos outros, que mantinham suas armas apontadas na minha direção. Em seguida, curvaram-se para o homem sentado, me empurraram até a cadeira, impelindo meus ombros para que eu sentasse.

— Olá, Atalya — cumprimentou o homem sentado.

Ergui um canto do lábio, exprimindo minha aversão em estar ali.

— Majestade — resmunguei, antes que alguém me cutucasse e me obrigasse a falar.

— Como você tem andado?

— Com as pernas — retruquei.

— Detenta, mais educação — ralhou a guarda mulher.

As correntes tilintaram quando me ajeitei na cadeira.

— O que você quer? — rosnei.

— Detenta...

— Majestade — corrigi-me entre os dentes.

— Me deixem a sós com ela — disse o rei, para os guardas que me trouxeram. — Deixem os artilheiros aqui, mas não se envolvam até eu mandar.

Os guardas semiocultos pelas sombras deixaram suas balestras a postos. A comitiva saiu, batendo a porta.

— Você também, Jeras — o rei falou para o homem em pé.

Jeras nem sequer pestanejou e também abandonou o recinto. Quando Jeras fechou a porta, o rei abriu um grande sorriso caloroso para mim, fazendo minha raiva borbulhar como lava quente em meu íntimo.

— Como tem passado? — perguntou ele.

Eu continuei fitando-o em silêncio, em parte chocada com a cara de pau dele em me perguntar como eu estava. Uma pequena parte do meu íntimo estava com medo. Não era um bom sinal receber a visita do rei de Ravena. Alguns detentos receberam a visita dele e havia sido a última coisa que fizeram em vida.

Se bem que, no meu caso, a morte era uma alternativa muito melhor que esse limbo em que eu vivia.

— Markus, eu não estou no clima para papo furado. O que você quer?

— Vim lhe pedir um favor.

Essa eu não esperava. Ergui uma sobrancelha demonstrando surpresa, mas não falei nada.

— Estamos em guerra. E eu preciso de alguém como você.

— Você precisa rever o seu programa de recrutamento, meu caro — debochei.

— Estamos com um inimigo muito forte. Talvez até mais forte do que você. Precisamos de um programa de resposta antes que ele destrua o mundo que conhecemos.

Ergui uma sobrancelha. Ninguém era mais forte que eu.

— Você parece convicto, mostre suas cartas.

Markus pareceu se animar.

— Já tem alguns anos que Rogath demonstra um certo descontentamento com o meu governo. Achei que era apenas um jovem com ideias revolucionárias, mas esse era diferente — ele se calou, com uma expressão de pesar. — Ele reuniu seguidores e agora meu povo morre aos montes.

— Que história triste — comentei, sem me abalar. — Boa sorte com seu arqui-inimigo.

Fiz menção de me levantar.

— ESPERE! — Markus se lançou contra a mesa, fazendo eu me sentar de surpresa e as correntes tilintarem alto. — Se aceitasse a missão, você teria todo o arsenal que quisesse e três guerreiros para lhe auxiliar. E se obtivesse êxito, sua pena seria reduzida e você seria transferida para um presídio de segurança média. O que acha?

Desviei meus olhos da expressão esbaforida do rei para as algemas que encobriam minhas mãos. Qualquer preso daqui daria um braço para receber essas recompensas e não hesitaria em dizer sim ao rei. Só a sensação de estar fora de Silver Coast mesmo que fosse só por alguns dias, já me causava um arrepio de expectativa.

Valia a pena experimentar a liberdade, para depois voltar para a gaiola? Embora fosse uma gaiola melhor, prisões eram todas iguais. Eu não queria um prêmio de consolação.

— Desculpe, Majestade. Serei obrigada a recusar sua oferta.

— Preciso de você — implorou o rei.

— Uau... essa é uma mudança interessante de cenário — sorri malignamente.

— Meu reinado está ruindo.

— E você só percebeu agora? — ironizei.

— Pessoas inocentes estão morrendo nas mãos daquele patife híbrido.

— Pessoas inocentes estão apodrecendo na cadeia, condenadas a uma morte lenta, e não vejo você se estressar com isso — provoquei-o.

— Isso não se resume a você — grunhiu ele. — Minha única esperança é a sua colaboração.

— É extremamente tocante ver você implorando pela minha ajuda, prazeroso também. Só que eu espero que Ravena exploda com você e todos aqueles velhos decrépitos — sibilei de forma venenosa. — E agora, porque você não vai achar o que fazer e me deixa cumprir minha sentença em paz?

— Ouça a razão, Atalya. Está deixando uma grande chance escapar pelos seus dedos. Por pura teimosia.

Soltei uma risada sem humor.

— Teimosia? Ora Markus, você não é o rei? O Intocável? Você sempre se gabou de como seu governo era forte e à prova de perdas. Incrível como, na prática, suas palavras não prestam para nada. Enfrente Rogath sozinho, você sempre disse a todos como era um baita rei.

Ele apertou a ponte do nariz com o indicador e o polegar.

— Eu sei que não fiz coisas corretas, mas não sou eu que estou preso por assassinar pessoas inocentes.

— Jamais neguei a situação em que me encontro. Eu tenho consciência do que fiz e não fico bancando a garotinha injustiçada.

Markus revirou os olhos.

— E a história das pessoas inocentes apodrecendo na cadeia?

— Jamais disse que se referia a mim, majestade.

— Todos temos nossos pecados a pagar e que cada um pague da maneira certa — disse Markus, com firmeza.

— E quando você vai pagar os seus pecados da forma correta, hein? — minha voz era carregada de desprezo. — Você assumiu o trono dizendo ao povo que lutava pela verdade, pela justiça, pelo o que era certo — continuei, impiedosa. — Só não disse para elas que era a sua verdade, a sua justiça, pelo o que era certo para você. Jogou pessoas inocentes na cadeia só para manter a fantasia de que você era o rei que Ravena precisava.

— Não vim até aqui para discutir a sua visão distorcida das coisas. O fato é que Rogath é uma força bem poderosa e que não se intimida por barreiras morais para conseguir o que quer. Eu preciso de alguém como ele e preciso saber se você aceita.

— Não, Markus. Minha resposta é não. Você diz saber que não fez coisas corretas, majestade, — eu já estava de pé e a expressão do Rei não me parecia mais tão abalada, sua feição beirava o descontrole, sem abandonar a elegância — mas não teve capacidade de aprender com seus erros do passado. Não estou disposta a colaborar com seus planos, sejam eles quais forem.

— O fato, Atalya, é que sem mim você irá apodrecer nesse buraco — desdenhou Markus, abandonando sua simpatia. — Cedo ou tarde você irá se arrepender dessa desfeita.

— Não vai me faltar tempo para reflexão, não é mesmo?

Me dirigi à porta da cela, chamando pelos guardas, que reagiram com espanto. Não era comum que o prisioneiro determinasse o fim de uma reunião com o próprio rei de Ravena.

— Levem-na de volta para a cela — Markus havia retornado ao seu ar austero de governante. — Certifiquem-se de que estará confortável.

Aquela instrução só poderia significar, no idioma próprio dos guardas, algo muito próximo de "fiquem à vontade para fazê-la se arrepender". Novamente os rituais de transporte, não apenas impacientes dessa vez, além disso mais ríspidos e sem cuidado algum.

Aparentemente o Rei poderia ser muito persuasivo, principalmente estando no comando.

Jeras entrou com ar confuso na pequena cela onde havia ocorrido a breve reunião com a quimera. A garota tinha sido levada há pouco e não parecia estar muito satisfeita.

— E então, majestade? Seu "plano infalível" está saindo dos trilhos?

O rei parecia pensativo, como se não apenas tivesse esperança, como uma absoluta segurança de que poderia contar com a prisioneira em breve.

— Não seja tão apressado, Jeras. Tudo a seu tempo, meu velho.

— Majestade, você não percebe a insanidade disso? Lembra do quanto demoramos para capturar essa garota, o quanto ela riu às nossas custas?

— Eram outros tempos. Agora temos que usar todas as armas que temos.

— Espero que saiba o que está fazendo.

Markus deu uma risada sem humor.

Ele também esperava que soubesse.