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Hinderman (POR)

Urban
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    UNTERSTÜTZEN
Zusammenfassung

Zumbis, vampiros e lobisomens. Criaturas mórbidas de todos os tipos estão se concentrando na cidade de Sproustown e fazendo-se passar por cidadãos comuns. Henry Dotson é um tenente da divisão de casos especiais da polícia, encarregado de investigar ocorrências relacionadas a estas criaturas. No entanto, quando se descobre que estes seres paranormais estão sendo empregados como mercenários violentos pelos líderes do tráfico de drogas para seu próprio benefício, lidar com eles torna-se um problema de natureza política e territorial, envolvendo não só a divisão de Dotson como o departamento de drogas e a prefeitura da cidade vizinha. Tudo vira ainda mais de cabeça para baixo quando as circunstâncias começam a afetar a vida pessoal dos envolvidos do departamento: como quando sua secretária é hospitalizada, recebe ameaças de morte e há suspeitas de envolvimento de dentro da central com os representantes do comércio ilícito. Com a ajuda de seus subordinados Joey Meyers e da detetive interina Ewalyn Lowe, Dotson agora tem que encontrar o balanço entre resolver seus casos, disputar a jurisdição dos mesmos e ainda aguentar as demandas de sua atual esposa, Jane Dotson em um relacionamento esfriado.

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Chapter 1Capítulo 1

"Zumbis".

A maioria das pessoas a ouvir esta palavra imagina seres humanoides semi-esverdeados, andando de forma bizarra e vagarosa, com a língua de fora, à procura de carne ou cérebro humano para satisfazer a sua fome.

Antes de começar eu quero apagar um pouco esta imagem da sua cabeça. Os "zumbis", ou também chamados "ghouls" em sua forma antiga de nomenclatura, não diferem muito de um humano normal. É claro, o nome que lhes foi dado é baseado na imagem caricata atribuída ao significado original da palavra. E isto se deve ao fato de haver uma semelhança vital entre o real e o imaginário: o fato de que eles realmente se alimentam de carne humana. Entretanto não da forma desenfreada com que a maioria das pessoas acreditam. Eles comem muito menos que um ser humano por dia. Na realidade não é incomum um zumbi chegar a ingerir pedaços de comida de verdade (verduras, cafezinho, etc.) de modo a tentar esconder sua identidade e fazer apenas uma boquinha de carniça de noite, quando todos dormem. Contudo quando um zumbi come comida no lugar de carne humana ele não está se alimentando; é como se fosse um ser humano comendo madeira ou pedaços de papel. Se ele continuar assim irá ficar cada vez com mais fome e terá que se alimentar de verdade eventualmente para saciar-se.

Se a alimentação é a semelhança vital entre a lenda e a realidade, a diferença vital seria a forma de propagação. Na lenda urbana quem for mordido por um zumbi será transformado em outro zumbi e assim sucessivamente até a chegar a um estágio incontrolável da epidemia. Normalmente atribui-se o primeiro nascimento a um vírus ou algo do tipo, em algumas crenças há uma cura para o vírus, em outras não.

Contudo, na realidade a razão pela qual um zumbi nasce é atualmente desconhecida. Tudo o que se sabe é que acontece em algum ponto entre a morte do corpo humano e sua decomposição. Às vezes leva algumas horas, às vezes leva alguns dias, mas antes que a carne esteja totalmente decomposta, um ser humano pode simplesmente ressurgir como zumbi. Cientistas têm tentado traçar perfis e fazer relações familiares, tabelas de raças, elevar características de propensão, porém tudo sem sucesso. Tudo leva a crer que acontece simplesmente de forma aleatória. Uma solução definitiva seria manter todo corpo morto em estado de vigilância até o final da sua decomposição, para ver se ele se tornaria zumbi ou não. No entanto, devido à baixíssima taxa de acontecimento, somado ao fato de que o governo não quer reconhecer publicamente a existência do ser sobrenatural, prefere-se evitar o gasto desnecessário e manter tal existência em segredo.

Após o nascimento, ou melhor; o renascimento, apesar de ter o mesmo corpo do humano morto, o zumbi agora é um ser totalmente diferente. Existem raros casos de vaga lembrança da vida humana, mas acontece pouquíssimas vezes e em escala muito pequena. Porém devo admitir que o ser renascido se desenvolve mentalmente muito mais rápido que o ser humano. Ele consegue facilmente identificar que os humanos que o cercam são diferentes e detectam o desprezo pela diferença quase que de imediato, o que os leva a rapidamente tentar esconder-se entre os humanos para evitar a perseguição. Seria isto o que eles dizem que é o instinto? Talvez uma característica que foi passada com o tempo, como uma forma de evolução, uma tentativa de se adaptar ao ambiente? Misturar-se à sociedade sem ser detectado? Nada se sabe. Sobre a natureza e a biologia do zumbi, nada se sabe. E para dizer bem a verdade, não é o foco desta história.

Embora estes seres se assemelhem muito com o ser humano, há algumas formas clássicas de detectá-los entre nós. A primeira seria pelo hábito alimentar, obviamente. Não se pode negar que algo há de muito estranho entre comer um ser humano, de modo que avistando algo que aparenta ser uma pessoa comendo outra, o melhor a se fazer é clamar pelas autoridades, independente de se o predador é de fato um zumbi ou não.

A segunda forma seria pelo olfato. Por surgirem da decomposição humana eles têm um cheiro intrínseco de corpo decomposto, alguns mais, outros menos, aparentemente variando de acordo com o tempo necessário para sua ressurreição. Um zumbi pode tentar disfarçar seu cheiro usando colônias e perfumes, mas se você estiver morando com um, dificilmente não perceberá a diferença quando este tiver acabado de sair do banho, por exemplo.

A Terceira forma seria aproveitar o fato de que eles não se lembram da sua vida humana. Se alguém que o viu durante a vida tentar instigar memórias de quando aquele corpo era o de um ser humano não obterá resposta satisfatória. Ainda mais fácil será a identificação se a pessoa sabe que o dono daquele corpo já deveria estar morto para começo de conversa, já que humanos não simplesmente voltam à vida e saem andando por aí após sua morte.

A vantagem de um zumbi sobre um ser humano é que eles são naturalmente mais fortes. Aliás, são mais fisicamente fortes do que todos os outros animais conhecidos.

Para matar um zumbi tudo o que você precisa fazer é matá-lo uma segunda vez. Apenas uma ferida letal, como se estivesse matando um ser humano. É muito difícil a doença, vírus, ou seja lá qual for a razão de sua nascença se manifestar de novo no mesmo corpo. Para dizer a verdade, creio que até hoje houve apenas dois casos registrados de que um deles voltou à vida uma segunda vez, e nenhum caso de que voltou a terceira. Então basicamente uma vez morto, o zumbi está morto para valer. No final das contas a condição de zumbi é como se fosse uma reencarnação, uma segunda vida, e nada muito mais do que isto. A única diferença é a fome, o físico e o fedor de podre.

Apenas algumas pessoas sabem disso então, por favor, não saia contando: mas o fato é que existe uma divisão de polícia especializada em casos de assassinatos relacionados a estes seres fantásticos. O propósito da existência desta divisão deve ser prezado em segredo, visto que se viesse à tona revelaria a própria existência destas criaturas, assustando a população. Eu comento sobre os zumbis porque os casos destes são uma das coisas com as quais devemos lidar nesta divisão. O nosso trabalho não apenas é o de capturar zumbis (visto que eles são criminosos aos olhos da sociedade, por causa de seu hábito alimentar), mas também prezar por deixar sua existência desconhecida, afinal não queremos preocupar os civis com monstros querendo devorá-los perambulando por aí. Por isso quando há casos em que há alguma ação por parte da nossa divisão, estes geralmente seguem com um longo dia mentindo/negociando com jornais locais para tentar explicar os acontecimentos ocorridos no dia anterior de forma publicável. Este é o trabalho da divisão de casos especiais, ou DCAE.

Falando em jornais locais, em Sproustown existe uma espécie de acordo entre o jornal diário e o DCAE onde eles atrasam o lançamento das notícias que podem ter alguma relação com estes casos especiais para que possamos investigar livremente e verificar se realmente há alguma conexão ou não com algo de natureza paranormal antes de tornar os acontecimentos públicos. É o que estava acontecendo naquela tarde durante o momento em que eu estava no meu escritório do DCAE escutando a secretária relatar o acontecido.

"O dono da loja reportou às 12:11. A câmera captou o que parecia ser um roubo impossível, enquanto o dono da loja estava cuidando do estoque. Características do suspeito: trinta e muitos anos, caucasiano, cerca de dois e dez de altura, tatuagem reconhecível em seu ombro esquerdo. O suspeito chegou e quebrou o vidro ao lado da porta, apanhou grande parte do conteúdo com suas mãos nuas, sem se dar o trabalho de acobertar as digitais e escapou com o conteúdo no meio tempo entre o dono ouvir o estilhaço e o tempo de ele se locomover entre a sala do estoque e a loja. As razões de suspeita de ser um caso especial destinado ao DCAE são: o fato de que o vidro era temperado, aguentando até quatro marteladas, e mesmo assim foi quebrado a mãos nuas e também o fato de que o tempo entre o golpe no vidro e a escapada, totalizaram vinte e dois segundos. O dono da loja, Steven Wolf, reportou ter apenas visto as costas do suspeito correndo rua afora após sua chegada na parte frontal da loja. Os guardas locais foram avisados porém não conseguiram pegar o suspeito a tempo." - É o relato.

A pessoa que estava de pé do outro lado de minha mesa, lendo o relato de forma impassível, vestindo um casaquinho preto impecável enquanto cutucava seus óculos de lente grossa se chamava Emma Crane. Era a minha secretária, ou melhor, a secretária do DCAE, e quem havia recebido o relato do assalto naquela tarde de terça-feira.

- Vinte e dois segundos… - Balbuciei. - E sem a ajuda de nenhum instrumento, hm? Agora sim este parece um caso.

Eu estava sentado na minha cadeira giratória grande de rodinhas, levantando a parte da frente da mesma do chão enquanto fumava um cigarro, como que de costume.

- Ele devia estar com pressa.

- A delegacia de roubos recebeu o relatório quando? Há umas Três horas atrás?

- Parece que sim.

- E o sujeito não foi identificado até então?

- Não.

- Eles tiraram as digitais?

- Tiraram. E disseram que iam enviar ao DCAE quando estivessem terminadas.

- Está bem, obrigado. – Obrigado era o código para Crane se retirar da sala e me deixar em paz. Não me leve a mal, eu gosto do meu pessoal, mas minha cabeça trabalha melhor quando eles não estão parados na minha frente, ou o que é pior: perambulando.

Creio que esqueci de me apresentar. Eu sou o tenente Henry Dotson, ou só Dotson (ou às vezes só tenente) do departamento de casos especiais, e dos que vêm regularmente (isto é, presencialmente) ao trabalho eu sou o segundo cargo mais alto. Como eu já disse, lidar com zumbis é uma das especialidades do DCAE e parte de meu trabalho, e como você já deve ter adivinhado, o incidente daquela tarde estava relacionado a um desses seres horrorosos. Até porque eu tive todo o trabalho de começar com uma introdução à natureza da sua espécie.

O DCAE de Sproustown consistia basicamente da capitã, de mim, da secretária, Joey (o detetive) e também do detetive Cole Chapman que é mais uma espécie de agente secreto pelo qual eu não ponho minha mão no fogo de forma alguma. É claro, há muito mais suporte de pessoal, mas os que investigam e têm capacidade para lidar com os casos mais difíceis são basicamente esses. E sim, a secretária Emma Crane, dos óculos e do casaquinho está inclusa.

Eu levei mais uns minutos para terminar meu cigarro e depois chamei o Joey e contei a ele a situação.

Contrastando com meu físico preparado e arduamente merecido, aquele que parecia ser um garoto de dezessete anos, magro e para as mulheres, provavelmente bonito, era o meu parceiro em trabalho: Joey Meyers. Como tenente eu posso chamar qualquer um para me ajudar quando vou à cena, mas em geral eu chamo o Joey e deixo para Crane lidar com o Chapman.

Mais tarde naquela manhã nós dois descemos até o local do crime, a joalheria "Club Jewel", no centro de Sproustown. Havíamos saído da central para conversar com o tal Steven Wolf, o dono da loja e também cidadão que fez o relato.

Uma vez no local do crime ouvimos basicamente a mesma história de novo, exceto que da boca de Wolf. Apesar de ele tê-la contado para a divisão de furtos não parecia particularmente exausto por sua repetição.

A cena toda estava interditada. Eu me aproximei do vidro quebrado para checar o dano causado ao vidro com o golpe. Foi um direto de direita, limpando uns cinco centímetros de grossura de vidro temperado de alta qualidade. E pensar que uma joalheriazinha daquelas protege os produtos com vidro desse tipo...

- Isso foi feito com socos, você disse. Com socos no plural ou com apenas um soco?

- Foi um só soco, senhor. Ele pegou e bum! – Wolf imitou o gesto com a mão. – E pá! Estava quebrado.

- A câmera captou tudo, acredito?

- Sim senhor, eu enviei o filme para a polícia mais cedo, o senhor deve ter visto...

Ausentei-me de explicar que a divisão de furtos e o DCAE não são a mesma coisa. Ao invés disto apenas confirmei com um aceno de cabeça. Depois fizemos mais algumas perguntas de rotina, mas quanto mais eu via aquela cena mais a ideia que eu tive inicialmente fazia sentido na minha cabeça: tinha que ser um trabalho de zumbi.

Quero deixar isto claro desde o princípio, lidar com seres canibais ressurretos não é nem de longe a única função do DCAE. A bem da verdade zumbis são apenas uma dentre dez categorias distintas conhecidas de seres ameaçadores da humanidade e que são mantidos desconhecidos pelo trabalho de nosso departamento. Então embora eu tenha começado com aquela longa introdução sobre o renascimento após a decomposição da carne, não havia nada em particular que ditasse que era realmente com um zumbi que estávamos lidando naquela tarde. Entretanto existe algo que se chama experiência que se pode utilizar nessas horas. O Joey vai insistir que o que eu direi pode ser considerado preconceito de espécie, mas sim: eu associo a burrice com o zumbi. E não há nada aparentemente mais retardado do que no meio da tarde aparecer numa joalheriazinha meia boca, quebrar o vidro com a força bruta e roubar o conteúdo. O que é isso? Um ser paranormal quer chamar a atenção da polícia para ser caçado? "Olhe para mim, eu existo." "Eu sou um zumbi." Foi a impressão que eu tive desde que Crane leu o relato na minha frente. E eu não disse nada em voz alta para o Joey porque ele ia inventar uma discussão sobre como eu estava sendo tendencioso quanto ao comentário sobre a espécie dos zumbis, mas foi porque eu adiantava que seria um ser deste tipo que eu já havia colocado os cachorros no carro quando viemos até o Club Jewel.

Os cachorros são realmente úteis. O perfume e o desodorante podem enganar o olfato humano, mas o cheiro de decomposição será perseguido pelos cães até os confins da terra. Com o auxílio deles os zumbis não podem escapar da polícia.

Minha última pergunta para Wolf foi de natureza retórica:

-Você não chegou a sentir nenhum odor quando ele saiu, sr. Wolf?

- Odor? Hmm agora que você diz… - Wolf ia dizer alguma coisa, mas Joey tinha chegado do carro com um dos cachorros. Wolf ficou meio sem jeito ao ver os cães adentrando a loja, mas acabou cedendo. O farejador conseguiu captar alguma coisa no vidro.

- Haha! Bingo, tenente! – Disse Joey e começou a segui-lo.

Não tem por que duas pessoas seguirem os cachorros, então eu acendi um cigarro e fiquei esperando encostado ao carro, até Joey me contatar por meio de uma ligação. Não importa para onde o suspeito tenha corrido ou o quão longe ele esteja, como seu fedor vem do estado de decomposição de um corpo e não de algo temporário como suor ou qualquer outra coisa do tipo, ele nunca some. Se meu palpite estivesse certo Joey alcançaria o alvo mais cedo ou mais tarde.

Cachorros são maravilhosos.

Contudo parece que o suspeito havia corrido um bocado após ter conseguido as joias porque o cachorro só parou muito depois e em um lugar muito distante. Não é que fosse um local isolado ou abandonado, pelo contrário, era no meio de Marshmoore, que era uma área movimentada. Mas digo longe no sentido de que Marshmoore ficava muito longe do Club Jewel, o que faz o assalto ainda mais esquisito. O que um zumbi ganharia roubando aquela loja em particular? Por que não escolheu uma mais perto de onde se escondia? E se planejava ir tão longe por que foi a pé? Se tivesse ido de carro era capaz de o cachorro não ter conseguido farejá-lo... Como eu disse: burrice igual a zumbi.

Joey me ligou passando o endereço e eu alcancei-o de carro. Descemos em um lugar menos movimentado, um beco, e como era quase perto da hora do fim de serviço da maioria dos estabelecimentos locais já não havia quase ninguém na rua. Havia só uma pessoa. Ou melhor, um resto de pessoa. Era um homem de cerca de quarenta anos, ou pelo menos a metade da frente dele: as costas haviam sido arrancadas por alguma coisa, como se um animal gigantesco tivesse mordido e arrancado um pedaço. Havia também sangue espalhado por toda a parte. Respingos de jatos jorrados na parede, uma poça concentrada na calçada, um rastro vermelho mais vivo escorrendo pelo meio fio até ser drenada pelo ralo... Ele estava deitado com o resto das costas para cima, deixando exposto que sua coluna tinha um pedaço do meio faltando, como se tivesse sido arrancada junto com a mordida. Parte de sua carne vazava para fora do lugar, esparramando-se sobre sua lateral.

Com tanta carne faltando e tanto vermelho sangue compondo aquela imagem grotesca, não preciso dizer que aquele homem estava morto.

E esta era a prova definitiva de que estávamos lidando com um zumbi. Já não se tratava mais de especulação.

- O que foi isso...?

- Um zumbi... Você estava certo... Eles se alimentam de... – Joey não terminou a frase.

- É... Eu sei...

Mesmo assim... Esses ataques nunca deixam de surpreender.

- Uau. Tem sangue escorrendo até o bueiro... Parece que pintaram o chão de vermelho. E olhe esses bichos pousando nele... Que nojento. – Joey tocou em um deles levemente.

- ...

A grotesca imagem indigesta sugeria que alguém atacou o sujeito pelas costas, ele se debateu enquanto era devorado na área da calçada coberta de sangue, e após certo tempo caiu e se arrastou até o meio fio, vindo a perecer provavelmente por falta de sangue.

A parte ruim de nosso trabalho era ter que presenciar esse tipo de coisa.

- Os cães acharam mais alguma coisa? – Perguntei após colocar a cabeça no lugar.

- O cheiro pára aqui, mas parecia que eles queriam entrar – Joey apontou com a cabeça para um estabelecimento fechado com uma porta de ferro, a qual provavelmente ligava ao segundo andar do pequeno prédio de dois andares. Um dos cachorros estava parado olhando para nós e o outro ainda farejava uns respingos de sangue perto da porta. Joey comentou:

- É incrível que ninguém tenha passado por aqui, quer dizer... Normalmente já deveria ter uma multidão aqui em volta.

- Você chamou ajuda?

- Chamei o pessoal da perícia e uma viatura do hospital para eles levarem o corpo embora. Eles devem chegar daqui a pouco. O que vamos fazer? Vamos entrar?

Entrar era a ideia correta, mas deveria ser pensada com cuidado. Se o suspeito estivesse lá seria perigoso. Mais correto seria entrar após o reforço chegar, mas algo dentro de mim me dizia que o suspeito não teria ficado parado esperando dentro do prédio após cometer o assassinato, então havia noventa e nove por cento de chance de ele já não estar lá dentro, o que reduzia o perigo a zero. Decidi que entraríamos para averiguar o local.

Uma escadaria subia até o segundo andar do estabelecimento fechado, que dava para um corredor com duas portas: Cada uma delas parecia ser a porta de uma residência, de forma que havia duas moradias: provavelmente uma delas era alugada e outra era do dono do estabelecimento. Pela precariedade da condição era o tipo de dono que deixava qualquer um ser o locatário, então provavelmente se o dono fosse interrogado ele diria que não sabia de nada e nem ouviu nada. Empurramos a porta da moradia alugada à força – e tínhamos força – de modo que ela cedeu.

O interior estava uma bagunça: diversas coisas atiradas no chão, desde utensílios de cozinha até meias, roupas de baixo e diversos objetos de porte pequeno que poderiam ser guardados em gavetas ou separadas em caixas de forma organizada.

- Parece meu quarto – Disse calmamente Joey em tom normal, mas eu já o conhecia o suficiente para separar a ironia da realidade.

O lugar todo consistia de um cômodo grande logo na frente e havia uma separação apenas para um corredor que tinha duas portas: uma para um quarto e uma para um banheiro, o restante era aglomerado no grande cômodo principal: havia um espaço para o sofá, o televisor e as demais coisas da sala, e depois tanto a cozinha como a mesa de jantar ficavam à direita, pouco mais adiante, mas sem separação. A mesa da cozinha estava tombada, o que explicava porque havia tantos objetos de cozinha no meio da bagunça. Todos aqueles objetos deviam estar primariamente sobre a mesa. Outros objetos haviam sido revirados: O armário debaixo do televisor tinha todas as gavetas escancaradas e vazias e havia um buraco na tv.

Fui até o quarto. Como eu imaginava tudo havia sido revirado lá também. As roupas de cama no chão. As gavetas do armário abertas. As peças de roupa de dentro do armário jogadas por toda a parte. A janela estava aberta. Passando os olhos pelo local dava a impressão que alguém tinha entrado, procurado alguma coisa de modo frenético e logo depois que encontrado tinha pulado a janela. Olhei pela janela afora e vi que ela dava para um pátio onde os moradores estacionavam os carros, e atrás do mesmo podia-se enxergar a rua de trás.

- Aqui também está tudo bagunçado... – Joey entrara no recinto observando o óbvio. – O que acha? Ele pulou a janela?

- É o que dá a entender. Corre lá fora e traz o cachorro para ele dar uma cheirada aqui nesse quarto?

- Ok.

Mas seja lá como for, o suspeito havia se livrado do cheiro. Os cães paravam de sentir o odor naquele quarto e depois não encontravam mais nada. Farejavam o parapeito da janela e depois ficavam me olhando como que se procurando uma explicação.

- Ele deve ter pegado um veículo. – Eu disse – Assim o cheiro ficaria dentro do veículo e não poderia ser detectado.

- Ele tinha um veículo na rua de trás, então? Ou será que ele roubou um?

- De qualquer forma o locador deve saber reconhecer algum veículo que sumiu. Vamos ter uma conversa com ele.

Ouvimos um barulho do lado de fora.

- O pessoal deve ter chegado. – Comentou Joey.

Após a chegada do carro da ambulância e dos peritos, o trabalho naquele local ficou mais com eles do que com nós investigadores do DCAE. Até porque não havia mais muito que pudéssemos fazer. Eu e Joey saímos dali e fomos ter uma conversa pessoal com o dono daquele estabelecimento, que morava na casa ao lado da que arrombamos. O dono era baixo, careca (quase) e gordo. Tinha um bigode preto e não aparentava muita confiança. Ele ficou parado em frente à porta durante todo o pequeno interrogatório.

- Sim? – Iniciou ele após abrir a porta em resposta a nossas batidas. Mostrei meu distintivo.

- Tenente Dotson e Detetive Meyers, o senhor poderia nos dar um tempo para algumas perguntas?

- Sim...? – Ele tornou a fazer em tom pouca coisa mais hesitante.

- É sobre seu locatário... Ele é atualmente suspeito de um roubo e um assassinato...

- Oh. – Ele não parecia necessariamente muito surpreso.

- Pode nos contar alguma coisa sobre ele?

- Eu... Não sei muito sobre ele... Ele alugou o local há apenas dois dias, sabe... Ele não tinha um histórico muito favorável se me entende... Disse que havia acabado de ser liberado da prisão ou algo assim, mas para falar a verdade não me importei muito então deixei ele ficar... Eu não pensei que ele estivesse... Em alguma atividade desse tipo.

- Entendo... O senhor deu falta de um Prestige 2010 de cor cinza? – Inventei uma marca de carro qualquer. Joey estava apenas olhando os arredores enquanto eu fazia as perguntas.

- Prestige? Eu...? Não... Não senhor...

Ele estava excessivamente cauteloso então meu instinto me dizia que ele e o suspeito poderiam ou estar trabalhando juntos ou ele poderia estar o acobertando. É claro, era apenas uma possibilidade. Eu tinha mencionado um carro aleatório para ver se ele comentava vagamente a marca de seu carro quando a resposta fosse negativa, como por exemplo "Prestigie? Ah não, meu carro é da marca x...". Sem saber do que se tratava poderia deixar escapar tal informação, porém se eu tivesse perguntado diretamente a marca de seu carro e se ele realmente trabalhasse junto com o suspeito então ele mentiria. Mas aparentemente minha tática não tinha dado certo.

- Um Prestige sumiu após bater no carro que estava lá na frente – Minha última deixa para ele achar que estava envolvido com o caso de alguma maneira e esboçar alguma reação.

- Eu não possuo carro, senhor... Estou pensando em pegar um, mas...

Então não houve reação...

- Entendo... E o locatário possuía algum? – No fim, a contragosto, tive que formular a pergunta de maneira direta. Se eles realmente estivessem juntos a resposta seria negativa de qualquer modo.

- Não, senhor. Ele não tinha veículo algum também.

Dito...

Tivemos apenas mais um pouco de conversa que não trouxe resultado algum. Perguntei se ele ouvira algum barulho, se escutara o suspeito chegar e depois pedimos para ele o fichário de locação do suspeito e fomos embora.

No caminho, Joey estava olhando para o papel confiscado com as informações sobre o sujeito.

- Acha que ele estava escondendo alguma coisa? – Perguntei a Joey enquanto ele examinava a ficha.

- Não... Parecia naturalmente abalado com a notícia repentina, então é natural que não fale muito.

- Ele parecia estar me evitando...

- Devia ser o fedor do seu cigarro, tenente. Até eu tive que desviar a cabeça. – Joey sempre desferia aquele tipo de comentário impertinente de forma casual e inexpressiva. Ele começou a murmurar enquanto examinava a ficha do locatário:

- Jeffrey Sprohic. Quarenta e dois, dois metros e sete de altura. Aparentemente ele é ex-detento de Silverbay. Estava procurando emprego após sua pena. Ou pelo menos é o que disse no documento. Tem o número da identidade dele aqui. Vou mandar para o DCAE.

- Faça isso. E depois vamos ter que esperar. Não tem mais nada que possamos fazer – Disse enquanto jogava meu cigarro no chão e amassava-o com o sapato. Estávamos agora na rua da frente onde os peritos estavam analisando a cena sanguinária. A multidão de curiosos que antecipamos outrora agora estava presente em dobro, todos aglomerados separados pela faixa amarela dando um trabalho insuportável para o pessoal do suporte. Estralei meu pescoço e prossegui:

- A perícia vai ver se acha alguma pista, os legistas vão chamar a família do corpo para fazer o reconhecimento e nós não conseguimos nenhum carro para seguir e o cheiro do cachorro sumiu... O melhor a fazer é ir para a casa.

- Já está anoitecendo mesmo. – Joey respondeu enquanto olhava o céu. Já estávamos há muito fazendo hora extra. Aquele incidente tomara muito de nosso tempo devido à distância que Joey teve de percorrer a pé.

Os curiosos quase que forçavam a faixa para ver o que havia acontecido. Quanto mais sangue, mais curiosos atraía. Eu odiaria ter que ser o pessoal do suporte.

Depois daquilo fomos para a casa. Isto é, Joey foi para a dele e eu para a minha.

A pessoa pequena que estava parada em minha frente usava ainda uma camisola não porque fosse dormir cedo, mas porque provavelmente não a tirava desde de manhã. Era ainda jovem, embora rugas e olheiras houvessem se apossado de seu rosto. Era ruiva e tinha longos cabelos encaracolados contrastando com a brancura de sua pele. Era anemicamente magra. A típica mulher que se vê que um dia já fora bastante atraente, mas que agora era um mero fantasma do que costumava ser.

- Henry? Onde você estava? Sabe que horas são? Te esperei o ano inteiro e você não chegava nunca.

Tirei meu casaco e joguei-o no sofá ao lado da porta.

- Eu tive trabalho extra...

- Você faz hora extra todo dia. Todo o santo dia! Eu ia preparar alguma coisa, mas você provavelmente já comeu fora.

- Já... – Menti.

- Está vendo? Você sempre come fora. Sempre chega tarde. Você nunca mais está aqui! Aposto que está saindo com mais uma amiga sua. Que nem da outra vez.

A nova moda de Jane era arranjar uma amiga imaginária para mim e inventar que eu a visitava, sempre que eu estava em serviço ou em outro lugar.

- Jane... Teve um caso de emergência... – Disse com uma virada de olhos enquanto ia em direção à geladeira, para ver se tinha alguma coisa que pudesse beber.

- E custava ligar!? Eu por outro lado liguei que nem uma louca e você não atendeu. Por que você deixa o celular desligado? Se fosse apenas trabalho você atendia!

Deixei escapar um suspiro enquanto fui até a geladeira e alcancei a última garrafa de cerveja que estava quase vazia.

- Não sei por que você nunca fala comigo! Você me deixa no escuro. Você me deixa no escuro para que você possa...

Jane parou seu argumento quando me viu bebendo direto da garrafa. Ela detestava que eu bebesse em casa, sem nenhum motivo específico.

- O que você está fazendo? Isso é hora de comemorar alguma coisa?

Dei de ombros, e prossegui. Ela ficou sem reação por um instante.

- Você... Tudo bem. Me ignore. Beba sozinho! – Disse ela com uma desafinada amarga na voz. Ela apagou a luz da copa e voltou para o quarto.

Eu nem gosto de cerveja.

Mas é uma ótima maneira de fazê-la terminar sua recepção amorosa e ir para o quarto.

Após sua saída olhei fixamente para o sofá. O sofá era o lugar onde eu estava dormindo ultimamente. Todos meus pertences ficavam jogados em volta do sofá para ficar mais prático de pegá-los porque ela não gosta que eu entre no quarto de manhã. Somado à bagunça da cozinha e ao fato de que a luz frontal estava queimada passando uma impressão de precariedade, me veio à tona uma cena familiar que eu havia presenciado àquela tarde. Me lembrei da piada que Joey havia feito mais cedo.

"Parece o meu quarto."

Ele havia dito isso quando entrou na casa que havia sido revirada antes de o suspeito fugir. Mas ele provavelmente não imaginaria que aquela frase se encaixaria perfeitamente na descrição do meu quarto, ou melhor, ao sofá da sala onde eu passava minhas noites.

Não pude deixar de esboçar um sorriso.

Esta garota adorável é minha esposa: Jane Dotson. Lógico, ela nem sempre foi assim. Ninguém a aguentaria se ela fosse sempre assim. Mudanças de comportamento são feitas com o tempo, e são criadas a partir de interações com as outras pessoas. O que me diz que eu devo ter errado em algum lugar. É verdade que eu não falava muito com Jane há muito tempo. Eu nunca cheguei a dizer para ela sobre o DCAE ou até mesmo sobre os zumbis. Ela acha que eu sou um policial convencional. Para dizer a verdade não consigo conversar com ela coisa alguma, pois como você vê, não há espaço para conversa.

O correto seria arrumar a cozinha pelo menos e também organizar minhas coisas para que eu pudesse ao menos ter uma noite decente. Mas eu estava cansado... Quem se importa com a bagunça?

Tirei minha roupa ali mesmo e sem ao menos tomar um banho me deitei.

Às vezes me deparo pensando em meu estado. Se há dez anos atrás você me dissesse que eu estaria detestando a hora de voltar para casa e mais empolgado com a hora de voltar ao trabalho eu diria que você enlouqueceu. Mas se minhas noites significavam aquilo agora eu não tinha por que ansiá-las mais. Talvez eu realmente devesse começar a frequentar os bares e chegar mais tarde como Jane diz...

"Jeffrey Sprohic" ex-detento da vizinha Silverbay. Sua casa estava bagunçada do mesmo jeito, mas ele provavelmente não morava lá. Ele devia tê-la apenas alugado para se esconder de alguma coisa... Talvez para esconder alguma coisa. Ele deve estar dormindo em algum hotel com suíte agora... Nem mesmo o pior dos criminosos deve dormir em local parecido com esse ninho abominável de objetos aleatórios esparramados...

Naquele escuro minha mente começou a transitar de mim para Jeffrey Sprohic. Desesperado para fugir da polícia. Imaginei um ser de dois metros fedendo a carniça bagunçando as coisas e procurando não sei o quê e depois fugindo pela janela. Pudera, a polícia convencional estava atrás dele e depois também o DCAE...

"Mas antes de procurar e fugir pela janela com a pressa que estou, vou parar para fazer uma boquinha. Rapidinho vou comer um sujeito na frente da minha própria porta e só depois vou continuar a fuga. Não demoro nem dez minutos..."

Um pensamento irônico, mas algo que eu só havia me ocorrido agora. Aquela ação não fazia sentido algum. Mesmo para um zumbi.

O suspeito saiu correndo desde a Club Jewel até aquele beco remoto onde tinha alugado, com as joias na mão e a polícia correndo atrás. A polícia afirma tê-lo perdido de vista, mas ele continuou correndo até Marshmoore. Um ser mais esperto faria de tudo para se esconder em algum lugar, no entanto ele decidiu ir diretamente para o local onde morava. O que indica que ele optou por correr ao invés de se esconder.

Se queria correr, teve antes que passar em seu recinto original e pegar alguma coisa que fosse de valor para ele para só então sair dali. A desvantagem de deixar seu odor em Marshmoore é que agora o DCAE conhece sua identidade por causa do contrato com o locatário, no entanto ganha da desvantagem que teria se tivesse se escondido ao invés de fugido: a polícia provavelmente já o teria encontrado por causa dos cachorros.

Existe um ponto que pode ser atribuído à burrice ou à inexperiência aqui: o fato de ele ter fugido a pé ao invés de assaltado um veículo. Se ele é um zumbi que nasceu recentemente e não está ciente que pode ser detectado através do cheiro, isso pareceria uma escolha natural, pois ele pensaria que chamaria menos atenção do que com um carro roubado. Ele pensou que despistaria todos policiais convencionais (e aliás conseguiu) e viria para seu esconderijo sem esperar ser encontrado. Se esperasse ser encontrado através do cheiro teria usado um carro ao invés de ido a pé. Então ele não esperava, e era realmente um zumbi recém-nascido. Adicionalmente o fato de que o apartamento estava revirado e a janela aberta indicam que ele estava com pressa por algum motivo.

E se ele estava com pressa ele não teria parado para se alimentar.

Zumbis podem ficar até três dias sem se alimentar e sem passar fome, não são como os humanos que não aguentam segurar nem oito horas. Se estivesse realmente com pressa teria deixado a vítima para depois. Ele estava morrendo de fome? Não comia há semanas? Impossível... Se fosse o caso teria atacado o próprio dono da joalheria que estava sozinho no estoque. Se o x da questão fosse sua fome ele teria tomado o cuidado de não atacar ninguém em frente à sua moradia.

O fato de ter preferido fugir a pé para tentar despistar a polícia pode ser atribuído à burrice intrínseca do zumbi, mas a vítima não pode ser atribuída a nenhum nível de burrice. O fato de ele ter feito uma vítima na frente do apartamento alugado tem que significar alguma coisa. Se ele estava com pressa porque fez uma refeição ali na frente com o pouco tempo que tinha?

Parei para pensar quando um zumbi faria deliberadamente uma vítima em frente ao lugar onde se mora? Quando planeja-se sair de tal lugar e nunca voltar? Até por isso ele pegou os pertences que lhe importavam, pois já estava planejando deixar aquele local de qualquer maneira.

É claro... Sprohic nunca pensou em ficar em Sproustown! Ele alugou o local apenas até conseguir as joias e pensava em sair logo em seguida. Já que ele planejava sair da cidade após roubar as joias não tem por que não se alimentar aqui. Pelo contrário, fazendo assim ele ficaria livre para ficar mais três dias sem fazer um ataque, dando a ele o tempo de se estabelecer em seja lá qual cidade for para a qual planeja se mudar sem chamar atenção para si.

Pensando com esse enfoque, talvez Sprohic não seja tão desprovido de inteligência quanto o zumbi mediano. Ele devia estar ciente que posteriormente seria identificado pelo cheiro e também que sua identidade seria revelada cedo ou tarde. Por isso não se preocupou em esconder seus dados do locatário quando efetuou a locação. Até mesmo porque um ser humano de mais de dois metros não deixa muito espaço para alternativas, existe uma lista muito pequena de possibilidades, dados falsos teriam sido detectados antes ou depois. Mas ele antecipou que até conseguirmos reunir toda a informação para iniciar a busca ele já estaria muito longe de Sproustown. Isso explica também porque preferiu fugir a pé do que de carro: para despistar a polícia convencional. Sabia que não fugiria do DCAE, no entanto nós só começaríamos a perseguí-lo após algumas horas, e até então ele tinha tempo o suficiente para pegar suas coisas, fazer sua refeição e preparar sua saída.

Se minha teoria estivesse correta ele deveria roubar algum veículo e partir ainda hoje.

Levantei de supetão e liguei o mais rápido que pude para a divisão de roubos. Perguntei se havia sido registrado algum roubo de veículo entre as duas últimas horas. Após uma espera eles me disseram:

- Não houve nenhum roubo de carro registrado hoje, tenente Dotson.

"Nenhum?" Quer dizer que ninguém deu queixa? Será que houve outra vítima e ele roubou o carro após assassinar mais alguém para que não se prestasse queixa? Mas alguém teria avisado a divisão de homicídios... Poderia ter roubado um carro com o dono dentro? Alguém teria informado um sequestro...

Fiz algumas ligações pensando em tais possibilidades e após o assassinato no beco parecia que nada mais de anormal tinha acontecido em Sproustown naquele dia. Tive que recompor meu pensamento.

A esta altura eu já estava sem sono e sem cansaço. Estava sentado na cadeira à mesa de jantar perdido em meus pensamentos. Decidi ligar mais uma vez ao DCAE antes que fosse tarde demais.

- Divisão de casos especiais, boa noite?

- Alô? Crane? Ah, que bom. Você ainda está aí. Escute... Preciso que você me faça um favor... Eu preciso conseguir todas as informações sobre carros roubados a partir de agora até amanhã de manhã, então, por favor, avise a divisão de roubos, ok? Diga que tem relação com o caso da joalheria e avise-os para manter o jornal longe disso.

- Alguma coisa aconteceu?

- Sprohic vai tentar sair da cidade a qualquer momento...

Não consegui dormir direito aquela noite. Quando eram cinco e meia da manhã, acordei com um telefonema de Crane. Ela me passou a informação de que dois carros haviam sido roubados.

Me vesti e corri para a central.

Quando cheguei, apenas Crane estava lá. Naturalmente parecia cansada. Presumi que ela também deveria ter ficado acordada o tempo todo por causa dos telefonemas.

- Bom dia, Crane. Sinto muito pelo plantão, mas é que não podemos perder o sujeito. Onde está Joey?

- Ele ainda não veio, vai esperar? Quer que eu vá junto?

- Tem alguém mais aí?

- Um pessoal do suporte já está aí. George, Carl, Jackson... Mas não tem nenhum investigador...

- Pode ir para casa – disse enquanto acendia meu primeiro cigarro do dia – Você já fez o bastante. Eu vou pedir para o Carl e o George me levarem lá. E o Jackson vai seguir o outro carro. Me diga uma coisa... Os avisos dos roubos... Os relatos... Foram feitos quando?

- Agora de manhã...

- Que horas? Precisamente? Foram ambos feitos quase que ao mesmo tempo?

Crane teve uma hesitação de desconforto. Eu estava excessivamente agitado e naturalmente passava minha agitação àqueles com quem me comunicava. Mas é que eu não queria perder o zumbi de modo algum. Ela pensou um pouco e enfim respondeu:

- S... Sim. Agora que o mencionou... Aconteceram quase que ao mesmo tempo.

Apenas franzi o cenho enquanto tragava meu cigarro.

Aquele desgraçado... Era mais esperto do que eu julgava. Tudo desde a fuga a pé e o assassinato deve ter sido premeditado. Para o local do roubo foi escolhido Club Jewel e não uma joalheria perto de sua casa para que pudesse ter tempo de despistar os policiais convencionais. Se eles estivessem perto de sua residência ele corria o risco de ser visto quando estivesse saindo do recinto. Escolheu correr a pé porque seria mais fácil despistá-los sem um veículo de grande porte. Ele sabia que o DCAE o encontraria pelo odor, mas devido ao tempo que levaria entre o relato e nossa ação ele teria tempo o suficiente para matar o homem e então sair da cidade. Escolheu matar aquele homem aqui em Sproustown para que ele pudesse ficar sem causar nenhum rebuliço em seu próximo destino; para que pudesse ter mais três dias sem fome e assim sem chamar atenção.

A única coisa que me intrigava até então era que ele não escapou da cidade imediatamente e eu não sabia por quê. Mas naquele momento vi que isso devia ter relação com a pressa com a qual ele revistou sua casa antes de pular pela janela. O dinheiro conseguido na joalheria deve ter sido somado com uma quantia que ele já possuía. Deve ter sido um dinheiro que foi juntado para pagar uma dívida aqui. É sabido que em Sproustown existem algumas gangues que trabalham com o tráfico de drogas. Devia ter alguma relação com elas... E isso explicaria por que ele não fugiu ontem ao invés de hoje. Ou ele tinha um compromisso com alguém ontem... Ou ele precisava pagar alguém para quem devia no dia de ontem e por isso teve que conseguir o dinheiro de forma ilegal e precipitada, tendo que também elaborar uma fuga para o dia seguinte... Outra possibilidade seria ele estar trabalhando junto com outra pessoa envolvida com o tráfico e por algum motivo iria esperar esta pessoa para sair de Sproustown junto com ela hoje de manhã. Todas essas razões explicavam a espera até a manhã para a fuga da cidade.

Levando tudo em consideração é difícil acreditar que o desgraçado tenha decidido roubar um carro qualquer para ser o veículo de sua fuga. Como estava ciente que o DCAE já sabia da situação, ele devia ter elaborado um plano de escape, e por isso provavelmente organizou dois roubos simultâneos para nos despistar. Com este pensamento em mente que perguntei à Crane se os roubos tinham sido feitos mais ou menos ao mesmo tempo, como que para confundir a polícia sobre sob qual carro deveriam manter a atenção. E parecia ser o caso.

Difícil pensar que um zumbi como Jeffrey Sprohic teria premeditado todos os detalhes de sua fuga sozinho, e somando o fato de que foi capaz de elaborar dois roubos simultâneos para distração me levou a concluir que ele devia estar trabalhando com ou para mais alguém. E isso me levou a crer ainda mais em sua relação com os distribuidores de drogas ilícitas da cidade.

Mas aumentar o número de roubos não despistaria a polícia, pois basta dividir o pessoal, cada equipe atrás de um carro roubado. Então já que está sendo tão esperto ele deveria estar mais um passo a frente, o que me levou a conclusão mais provável: Sprohic não planejava sair da cidade de carro, mas de barco. E não apenas um, mas ambos os roubos de carro deviam ser apenas mera distração.

A partir dali trabalhei com esta hipótese em mente.

Desci até a garagem e organizei o pessoal. Havia seis soldados madrugueiros disponíveis: Jackson, Carl, Rubens, George, Hick e Mike. Organizei a patrulha em três times: Hick e Mike averiguariam o primeiro roubo relatado, Rubens e Jackson perseguiriam o segundo carro e eu junto com Carl e George iríamos até o porto. Eu não passava muito tempo com o pessoal do suporte, até mesmo porque eles ficam no prédio da frente e raramente temos a oportunidade de trabalharmos juntos em uma excursão. Como não sei muito sobre eles posso descrevê-los por sua característica física: Carl era o moreno baixinho de cabelo curto e George era o mais velho, com cara de caminhoneiro.

- Até o porto tenente? O senhor acha que...? – Indagou George.

- É. Até o porto. Relaxe. Eu sei o que estou fazendo.

E esperava que estivesse mesmo. Mas levando em conta o modo como foram feitos os planejamentos de Sprohic até então, tudo indicava que eu deveria estar certo. A hipótese de relação com os traficantes indicava ainda mais a fuga a barco, visto que traficantes são aqueles que têm dinheiro para manter um barco em Sproustown. Em parte tive esta ideia também porque traficantes têm interesse em seres paranormais como zumbis, mas irei deixar para mais tarde os detalhes da interação entre estes e seres sobrenaturais.

Droga. Se eu tivesse o associado ao tráfico ontem antes de ir embora talvez eu já devesse ter chegado a essas conclusões.

Estava tão certo de que ele estaria pegando um barco que nem parei para pensar que poderia estar expondo as outras duas duplas ao perigo. Afinal depois que enviei Crane de volta para casa apenas eu era um oficial qualificado para lidar com o zumbi naquele início de manhã.

Após um longo percurso finalmente chegamos ao porto. Desci do carro pensando em informar-me sobre se algum barco já havia partido temendo profundamente uma resposta afirmativa. Porém, assim que desci do carro ouvi um rebuliço vindo do lado esquerdo do estacionamento. Avistei um aglomerado de gente. Deduzi que eles deveriam ter visto alguma coisa. Entrei em contato com Jackson e Mark. Eles ainda estavam se dirigindo para as rodovias. O plano deles era verificar se os carros roubados atravessavam as rodovias em algum momento e para isso contariam com a ajuda da polícia rodoviária uma vez que chegassem a seu posto.

- Fiquem aí no carro. Eu vou descer lá e ver o que está acontecendo – Disse eu a George e Carl.

Caído em meio ao tumulto estava um funcionário do porto. Estava desacordado e sangrando demasiadamente. Havia provavelmente tomado um golpe certeiro na cabeça, que o deixara naquele estado.

Existem quatro características que eu observo em zumbis. Esta é uma das que mais detesto. Assim que se deparam com alguém que se opõe a eles, usam da violência, pois acreditam que com sua força exagerada conseguirão o que quer que seja.

- O que houve? – Perguntei a um senhor que estava do meu lado.

- Parece que ele estava brigando com um grandalhão. Eles estavam gritando alto aí de repente o grandalhão deu um murro nele e ele caiu.

As pessoas estavam transtornadas devido a seu estado preocupante. Se perguntavam a toda hora quando que chegaria a ambulância e onde se encontrava o brutamontes que havia feito aquilo.

Uma segunda característica do zumbi é a mente simples. Se o plano do Sprohic é vir aqui, tomar um barco à força e sair, ele simplesmente virá aqui, tomará um barco e sairá, sem pensar muito sobre o assunto. Afinal de contas ele pensa que qualquer contratempo pode ser resolvido com violência. O fato de que ele realmente recorreu à violência indicava que não havia barco nenhum esperando por ele para começo de conversa, mas indicava que ele planejava roubar um aqui mesmo.

Que sorte. Se o funcionário havia acabado de ser atacado e se ele não tinha barco disponível quer dizer que ele provavelmente ainda estava por ali em algum lugar. As pessoas devem tê-lo perdido de vista não porque ele correu dali muito rápido, mas provavelmente porque se intimidaram com seus mais de dois metros de altura e não foram atrás.

E com razão. Aquele ferimento causado com um só golpe não deve ser levado em brincadeira.

Assim que eu ia começar a procurar o alvo entre os barcos eu ouvi um estardalhaço vindo da viatura. "Não pode ser" pensei. Corri em direção ao carro. Chegando lá ele estava com a frente amassada e Carl perecia ao lado da porta. Ele tinha uma pistola na mão. Havia bastante sangue perto dele, o que me preocupou. Agachei-me e balancei-o pelos ombros. Carl acordou.

- Carl. Carl. Você está bem?

Ele estava ferido, porém ainda consciente. Conseguiu me responder em voz baixa:

- Ele apareceu. É um gigante. Estava correndo em direção àquele barco azul de dois andares. Aí eu peguei a pistola e atirei. – Ele tossiu e sua cabeça caiu devido à tontura.

- Carl. Se acalme. Onde está o George? Não me diga que ele..?

- Ele foi atrás... – Huh... Sua voz falhava.

"Aquele desgraçado... E deve ter feito isso num só golpe também..."

Como George não estava ali eu tinha que escolher entre chamar reforço ou persegui-lo eu mesmo. Mas eu estava querendo capturar o bandido já fazia algum tempo e ele estava quase fugindo de barco, então protelei o socorro. Fui em direção ao barco recomendado, e percebi uma trilha de sangue deixada pelo caminho. Provavelmente era do próprio Sprohic porque George não o perseguiria sem experiência se estivesse machucado. O que queria dizer que eles deveriam tê-lo acertado com algum dos tiros e ele ainda assim resistia.

Resistência. É a terceira característica do zumbi. Sua resistência física os permite ficar indiferentes ao que parecem ser os mais graves dos ferimentos, o que evidencia ainda mais sua falta de humanidade.

Avistei George apontando uma pistola para Sprohic que estava com um ferimento que tinha perfurado sua camiseta, parecendo ter sido feito por uma bala. George usava um calibre 22, e por causa da resistência inerente de sua espécie, Sprohic podia tomar aquelas balas e ainda permanecer de pé. George sem desistir ainda apontava sua arma para o fugitivo, exibindo uma expressão mista entre estarrecida e intimidadora.

- George...

- Senhor! As armas não estão fazendo efeito!

- Largue a arma. Deixe que eu cuido disso.

George abaixou sua arma e eu apenas me dirigi em direção ao barco me aproximando em passo normal mesmo. Já que o criminoso nem havia iniciado o barco não teria como fugir do local em que estava. Ele estava encurralado.

Chegando mais perto dava para ver o quanto ele era mais alto que eu. Como trinta centímetros fazem diferença. Eu parecia um filho de dez anos olhando para o pai. Desde tamanho a massa muscular, contraste provocado pela carranca na sua cara careca e posição faustosa, sua figura, devo admitir, era deveras minaz e imponente. Faria qualquer policial convencional mijar nas calças.

Sprohic deu um risinho de desdém e disse:

- Vocês policiais continuam aparecendo. Não percebem que suas pistolas não adiantam? – Ele deu uma gargalhada e mostrou as feridas feitas em seu peito: uma bala estava atravessada até menos da metade em um buraco que até fez um sangramento, mas muito menor do que o tamanho que deveria ter sido – Chequem estre corpo! Ele é indestrutível!

Ele esperou reação temerosa da minha parte. Prossegui andando calmamente até ele. Fez uma careta enfezada.

- Ok. Parece que vou ter que fazer mais dois cadáveres antes de ir...

Ele pegou uma caixa pesada de pesca que estava no chão do barco, perto da porta, e começou a correr em minha direção. Fiz sinal para George se afastar.

A quarta característica típica do zumbi é a confiança total em sua força bruta. Como eu havia dito: se algo não fosse conforme seu plano, Sprohic usaria da violência para fazer a situação voltar ao cenário inicial que estivesse planejado. Foi assim quando atacou o funcionário e provavelmente o que ocorreu quando Carl tinha tentado capturá-lo enquanto eu estava no meio da multidão.

Caráter violento, raciocínio simples, resistência, força bruta e excesso de confiança. Parece o que faz um vilão típico formidável de uma história em quadrinhos, por exemplo. Ironicamente na vida real dentre a lista de seres potencialmente perigosos do DCAE são as características dos seres candidatos aos mais fáceis de lidar.

Resistência e força bruta à parte, tudo são desvantagens. O caráter violento faz com que ele deixe pistas o suficiente para ser descoberto durante seus ataques, a mente simples faz com que suas atitudes sejam previsíveis e a confiança o faz preferir uma luta direta ao invés da fuga, todas facilitando o trabalho da polícia.

Sprohic se aproximou determinadamente e quando suficientemente perto, rodou o braço e me acertou com a caixa de pesca direto na minha cabeça, imaginando que a estilhaçaria em pedaços. Deve ter empregando a mesma força de golpe que deu naquele vidro quebrado da Club Jewel. Seu riso perverso cobriu seu rosto durante todo o impulso até a hora do contato.

Bam!

Houve um barulho oco e a caixa se desmontou em mil pedaços, os quais caíram para todos os lados. O próprio Sprohic teve seu corpo jogado para trás com a força do golpe.

Vou dar um e meio de dez para ele: não foi de todo ruim. Minha cabeça deve ter se inclinado para a direita mais que uns dois centímetros com o impacto. Um pequeno sangramento começou a escorrer por uma de minhas narinas. Com uma mera fungada fiz o sangue parar.

- Então esse é o golpe que quebrou o vidro de cinco centímetros da joalheria? Nada mal... Parece forte, mesmo.

- Mas que diabo?

Sprohic agora tinha uma expressão completamente estarrecida. Não o culpo. É típico de um zumbi recém-nascido imaginar que é o único com propriedades físicas exageradas em comparação com os demais humanos. Não pensaria que existe outro com as mesmas propriedades. Já não podia mais usar a caixa que fora despedaçada quando me acertou.

- O que...? O que é você? – Ele brandiu e investiu num ataque surpresa, almejando desferir uma sequência de golpes de curto alcance.

Seus movimentos a meu ver pareciam lentos demais. Desviei sua investida virando meu corpo lateralmente e então quando ele estava perto o suficiente acertei com o joelho em sua barriga, no que ele forçadamente inclinou seu gigantesco corpo de mais de dois metros para a frente. Inclinou-se rápido e exagerado, igual a um verme quando se contorce. Cuspiu sangue com a batida. Quando ele estava na altura certa desferi-lhe uma direita no rosto com que ele veio abruptamente ao chão. Tudo aconteceu em um instante apenas.

Acendi um cigarro e olhei para seu desgosto. Enquanto podia aguentar os ferimentos superficiais das balas parecia que aqueles golpes compactos tinham feito considerável efeito em seu corpo. Ele franziu o cenho e esforçou-se para levantar. Seu orgulho não o permitiria desistir tão fácil.

Eu usava meus coturnos de ponta de ferro, parte do uniforme do DCAE, na ocasião. Antes que ele tentasse qualquer coisa chutei-o diretamente em sua face duas vezes. Com aquilo Sprohic finalmente parou de se mexer. Ainda tragando meu cigarro disse a George:

- Pronto. Traga as algemas do carro. Cuidado, ele é forte. Vai precisar de várias.

- S... Sim, senhor. – Ele guardou sua arma de fogo e acatou minha ordem. Não proferiu mais uma palavra no caminho de volta.

Após aquele incidente levamos o suspeito até a central, onde ele ficou preso pelos próximos dias, até a capitã decidir para qual unidade penitenciária seria levado. Os ferimentos de Carl foram tratados imediatamente e felizmente nada de grave havia acontecido. Apesar de o bandido quase ter escapado foi considerado um caso de sucesso de nossa divisão.

Essa é a história da vida cotidiana de um tenente do DCAE. Dentre as coisas com as quais temos que lidar em nosso trabalho, Jeffrey Sprohic era apenas um peixe pequeno.

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