1 Prólogo

A imagem de uma família, antigamente, era considerada uma dadiva! Um pai, uma mãe e os frutos de um casamento dourador, cheio de amor, carinho e felicidade. No entanto com o evoluir da espécie humana, tudo mudou, infelizmente para pior. Violações, raptos, assassinatos, bullying, terrorismo e o menos esperado, violência doméstica.

Este é o nosso mundo, um lugar de desilusões, guerras, mortes e sacrifícios... Porém, mesmo com todo este sofrimento, ainda existem aquelas pessoas que conseguem ultrapassar e ajudar o próximo, que fazem de tudo para tornar este mundo num lugar melhor, que um dia ficarão marcados na nossa história, eles, os verdadeiros guerreiros.

O relógio marcava meia noite, hora no qual todas as crianças já deviam estar a dormir, a relaxar a mente para então, no dia seguinte, acordarem cheios de força e vontade de brincar. Porém, ao contrário dessas crianças, as irmãs Torrez permaneciam despertas, não por vontade própria, mas por medo.

Nicole, a irmã mais velha, encontrava-se sentada, na cama, agarrada a um livro que tinha começado a ler há uns tempos atrás. A rapariga raramente conseguia dormir, não porque não queria, mas porque a situação em sua casa apenas se estava a agravar dia-após-dia, tornando aquela altura da noite uma das piores e mais dolorosas de sua vida.

Gustavo, pai de Nicole, era alcoólico e graças a esse vicio, muitas das vezes, o homem, utilizava o dinheiro de casa para sustentar suas necessidades complicando a vida financeira da família Torrez. Se ele sempre foi assim? Sim, porém, com o nascimento de Nicole e algumas descobertas feitas pelo mesmo, a sua vontade começou a exceder tornando-o completamente viciado nessa droga. Por alguma razão sua primeira filha tinha-o prejudicado e muito.

Durante os primeiros anos de vida de Nicole, Gustavo, ainda tentava ser um pai exemplar, mas de um momento para o outro tudo mudou, o amor que Gustavo sentia por sua filha foi substituído por odio, raiva, tornando assim a vida da rapariga num autêntico inferno. Agora perguntam, então e Samantha? A sua segunda filha? Bem, o facto de Nicole ter-se tornado um fardo perante os olhos de seu pai, fez com que Sam não se tornasse uma prioridade, sendo apenas visualizada como uma simples filha, que nem amor, nem carinho, recebia do mais velho.

Todas as sextas-feiras, Gustavo, chegava as tantas a casa, com o seu habitual fedor a álcool, iniciando uma longa discussão com a mãe das meninas, Clara. Durante anos, a mulher, sentiu-se na necessidade de aturar as atitudes violentes de seu marido tentando sobreviver dia-após-dia naquela casa. Agora questionam-se, porque é que ela simplesmente não o denunciou a polícia? Bem, ela fê-lo, mas os policias não quiseram saber de tal situação, em suas cabeças estava que Clara era apenas mais uma mulher com a mania da perseguição. Então porque é que ela simplesmente não fugiu? Talvez fosse a melhor solução, verdade, mas Clara não tinha para onde ir, estava sozinha no mundo, sua mãe tinha morrido cedo e seu pai abandonou-a assim que soube com quem ela se ia casar, só lhe restava suas filhas, filhas que poderia perder se tentasse qualquer coisa contra seu marido.

- Mana? – Nicole ouve a suave voz de Samantha tirando sua atenção do livro e focando-a na mesma.

- Sim princesa? – O livro foi pousando fazendo com que a mais velha se levantasse da cama e caminhasse em direção de Sam, sentando-se a seu lado.

- Vai acontecer de novo? – A voz de mais nova saiu fraca e tremida notava-se que estava com receio da resposta.

Nicole não sabia o que dizer, se fosse pela mais velha, não, nada iria acontecer, nem agora nem nunca, porém ela sabia que não dependia de suas preferências, sabia que aquela resposta só dependeria de seu pai e mais ninguém.

- Tudo irá ficar bem, pequena… - Deixou um sorriso forçado apoderar-se de seu rosto tentando de alguma maneira transmitir conforto a mais nova. – Agora toca a dormir! Já é muito tarde para uma rapariga da tua idade ainda estar acordada! – Levantou-se aconchegando a pequena depositando um beijo em sua testa.

- Podemos dormir com a luz ligada? – Questionou fazendo com que Nicole confirmasse e então a pequena menina pudesse dormir descansada.

A mais velha voltou para a sua cama agarrando o livro de volta. Ela queria acabar aquele capítulo, mas sua mente encontrava-se demasiado ocupada. Pensamentos dolorosos eram recordados como se fossem um filme, filme de todas as sextas torturantes vividas ao lado de seu pai.

- Hoje vai ser diferente… – Pensou tentando convencer-se de tal, porém, toda aquela esperança desaparece ao ouvir gritos vindos de outra divisão de sua casa.

E mais uma vez a história repetia-se. Os gritos altos e intensos ecoavam pela casa fazendo com que as duas irmãs começassem a sentir-se ansiosas. Sabem aquela sensação de voltar a viver algo intensamente doloroso? Algo que sempre vos destruiu? Elas estavam a sentir isso, pela quarta vez apenas num mês.

- Mãe… - Samantha começou a sentir medo apoderar-se de seu corpo, ela queria ir ter com sua progenitora, mas seu corpo não se queria mexer. – MÃE! MÃE! MÃE!

Nicole ao perceber o estado de sua irmã levantou-se ajoelhando-se a sua frente. Agora questionam-se, onde é que a mais velha arranjou coragem para combater contra todo aquele medo? Não arranjou. O medo encontrava-se bem vivo dentro de si, sua mente só conseguia pensar no pior, mas mesmo nesse estado Nicole não podia mostrar a parte fraca, pelo menos não a frente de sua irmã.

- Olha para mim princesa. – Nicole pediu fazendo com que a mais nova obedecesse. – Eu vou lá abaixo ver o que esta acontecer, promete-me que não sais daqui… - Meio que suplicou esperando uma resposta da mais nova.

Samantha, tinha apenas seus seis anos, muito nova, com uma longa vida pela frente, porém já com seu coração destruído. Muitas pessoas podem achar que não, mas as discussões familiares não afetam apenas os pais, também afetam os filhos. A desconfiança, o medo, o desespero e a ansiedade começam a tornar-se parte da criança, fazendo-a crescer com demasiados receios dentro de si e para evitar que essa situação acumule em Sam, Nicole tenta sempre afasta-la deste tipo de situações, protegendo-a.

A mais nova acenou positivamente fazendo com que Nicole, finalmente, começasse a andar para fora de seu quarto. Se ela estava preparada para enfrentar, de novo, seu pai? Não, nunca esteve, mas tinha de o fazer, por sua família.

A medida que a mais velha se aproximava das escadas, as vozes começavam a tornar-se mais audíveis, gritos intensos ocupavam os ares daquela habitação, fazendo com que o corpo da rapariga apenas temesse mais. Os piores cenários passaram pela sua cabeça, ela já tinha visto de tudo, até seu próprio pai a tentar matar sua mãe no fogão… Como é que Clara tinha conseguido ser tão cega ao ponto de ficar com um homem daqueles!

"E tu pensas o que? Que iria aguentar muito mais tempo? És uma vergonha, devias ter nojo de ti mesma! É que nem para pores dinheiro em casa tu serves"

"Tu sempre soubeste da verdade e nunca te importaste, porque agora? E não me venhas com essa conversa, a culpa é tua se não trabalho, tiraste-me de todos os trabalhos que tinha, armaste confusão em todos para ser despedida"

O coração de Nicole começou a apertar e por momentos seus pés pararam. Medo, sim, era isso. Sua mente já se encontrava tão destruída, que os piores cenários apenas aumentaram fazendo com que Nicole imaginasse sua mãe, morta.

"Porque? Porque todos comentam sobre isso! Todos gozam comigo sobre isso! E eu estou farto, farto de ser tratado com desrespeito por tua culpa. Não mereces nada, nem ninguém, por isso é que os teus pais te abandonaram. És uma…"

"CALA-TE"

Quando Nicole conseguiu arranjar coragem para continuar o caminho algo acontece. Um grito é ouvido e com isso um enorme estrondo. O coração de Nicole parou. Raiva apodou-se de seu corpo e com ela um sentimento de desespero sufocante. Mal conseguiu ter visão para a sala seu mundo caiu. Aquilo não podia estar a acontecer. Não podia.

- MÃE. – Berrou desesperada correndo escadas abaixo. – MÃE! POR FAVOR! ACORDA… - Ajoelhou-se ao lado de sua progenitora caída em lagrimas. – Mãe... – Sentiu a força sair aos poucos de seu corpo levantando seu olhar para Gustavo que se encontrava encostado a mesa a beber um copo de vinho enquanto assistia. – COMO É QUE FOSTE CAPAZ! ÉS UM MONSTRO. – Gritou a rapariga entre lagrimas.

- Monstro! – Riu ironicamente negando com a cabeça. – Primeiro, exijo respeito, segundo não és ninguém para me tratar assim. – Começou a caminhar para a cozinha.

- Respeito! – Levantou-se desesperada olhando o homem com um enorme odio dentro de si. – Tu não mereces respeito de ninguém, és uma vergonha de homem, uma vergonha de pai…

Gustavo voltou a virar-se para Nicole acabando por não entrar na cozinha olhando-a seriamente. Gustavo já não suportava sua filha, agora imaginem com álcool em cima, toda aquela adrenalina a consumir seu corpo, a única coisa que o homem sentiu foi necessidade de acabar com as duas, de uma vez só.

- Essa vergonha de pai que tu dizes, deu-te um teto! – Aproximou-se da rapariga apontando-lhe o dedo. – Deu-te comida, deu-te tudo o que tu hoje tens, por isso, se não queres acabar no olho da rua, CALA-TE…

Gustavo voltou a ir para seu destino anterior, contente. Tinha conseguido obter os resultados que queria, sua filha já não o iria chatear mais, pelo menos durante algum tempo. Ou pensava ele, após Nicole olhar sua mãe o desespero apenas aumentou mais e com isso a raiva, já não era a rapariga a falar, mas todo o odio, todo o nojo, a faze-lo.

- CALAR-ME! CALAR-ME! Mas tu achas que desta vez vais escapar? – Gritou ela caminhando em direção da cozinha.

Estava na hora de terminar aquilo para sempre, de fazer com que Gustavo parasse de assombrar a vida de sua família, que parasse de arruinar cada dia a cada segundo.

- Mas tu pensas que estas a falar com quem? – Voltou a virar-se de frente para a rapariga. – Caso não saibas eu faço o que eu quiser. – Apontou o dedo indicador para Nicole sentindo o efeito do álcool a falar. – Agora, vai já para o teu quarto e leva a Samantha daqui, se não querem ser as próximas.

O olhar de Nicole desviou-se para sua mãe vendo a sua pequena irmã, ali, abaixada derretida em lagrimas de desespero. Para além de não ter conseguido ajudar sua mãe ainda não tinha conseguido proteger sua irmã. Nicole cada vez sentia-se pior consigo mesma. Mas ela não deixaria aquilo ficar assim, não mais. Voltou a virar-se de frente para seu pai apertando fortemente seus punhos.

- Tu não prestas… Durante anos que quis acreditar no contrário, porque tu já chegaste a ser um bom pai… Mas não, hoje tive a prova de como és realmente um monstro horrível, sem coração que apenas carrega odio dentro de si… - Começou a explodir, Nicole já não controlava suas palavras, aquilo que ela sentia era aquilo que estava a ser dito.

- Mas tu pensas que és quem? Caso não te lembres eu cuido de ti, deves-me respeito… - Começou a aumentar a voz olhando-a com nojo. – Por isso começa acalma-te antes que sobre para ti.

Por alguma razão, naquele momento, Nicole não se importava com nada. Não queria saber se ia levar porrada, se ia ser torturada ou até mesmo morta, tudo o que ela precisava dizer, iria faze-lo e era agora.

- Sabes pai, tu podes não amar-me, mas eu tenho quem me ame, enquanto tu… Tu apenas tens pessoas que morrem de medo de ti, medo de fazerem parte da tua vida. Ninguém te quer, ninguém te ama, pelo menos não como tu és. – A cara de Gustavo já se encontrava vermelha de raiva, suas mãos suavam intensamente, se aquilo continuasse assim alguma coisa iria correr mal.

- Como é que eu aceitei a proposta da tua mãe. – Negou olhando a rapariga com nojo alcançando algo em suas calças. – Fui estupido, muito estupido, mas sabes, agora não me sinto mal por fazer isto… - Aproximou-se de Nicole com o objeto apontado para ela, agora sim dava para identifica-lo, era uma navalha. – Finalmente vou ter o prazer de me livrar de ti, o maior fardo que já tive que carregar na minha vida. Só de olhar para ti dá-me nojo.

- Achas que essa é a solução! Então força, mas lembra-te que depois disso o teu futuro será na cadeia. – A rapariga não sabe onde arranjou tanta coragem para responder de tal maneira, talvez o odio todo que tinha carregado dentro de si, tenha ajudado.

- Não me importa ter de ficar atrás das grades, porque sinceramente… – O braço de Gustavo moveu-se rapidamente espetando-o na barriga da rapariga. – Lá saberei que nunca mais olharei na tua cara…

Uma enorme dor apoderou-se do corpo de Nicole, fazendo-a contorcer-se. Os olhos da rapariga começaram a deixar escorrer lagrimas fazendo com que a maior parte de suas forças começassem a ser gastas. Se era o fim? Sim, muito provavelmente. Mas para que continuar a viver numa vida assim? Com tanto sofrimento, tanta dor? Com medo do que pudesse acontecer no minuto seguinte? Para que?

- MANA. – Samantha tinha assistido a tudo a cada momento, cada lagrima, cada palavra.

A respiração de Nicole encontrava-se irregular, ela provavelmente não aguentaria acordada durante muito tempo. Suas forças já eram poucas, mas mesmo assim ela decidiu agarrar-se a uma mesa na tentativa de conseguir dizer suas últimas palavras a Gustavo.

- Um dia... – A sua respiração encontrava-se irregular e a pouco força que ainda tinha nas pernas, parou fazendo-a cair de joelhos no chão. – Pagaras.... Por tudo. - Os seus olhos começaram a ver a duplicar. – Por tudo... O que tens feito. – Seus joelhos começaram a falhar. – A esta família… - Nicole caiu deitada perdendo os sentidos de seu corpo e juntamente com eles, sua vida.

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