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PRÓLOGO

Uma planície árida se estendia entre morros e picos escuros numa faixa branca e amarela que parecia dividir a terra, atravessando-a rumo à infinidade.

Pequenas e grandes rachaduras rasgavam o solo pela paisagem que, talvez, a muito tempo, pudesse ter sido um campo fértil, ou um lago, ou até o fundo do oceano, cheio de vida e cor.

Agora, tudo o que existia ali eram as rachaduras deixadas pelo tempo, como cicatrizes que se acumulavam em um cadáver há muito esquecido pelos vivos.

Vez e outra o vento levantava pequenas nuvens de areia que dançavam pelo ar, e estas rodavam baixo, arrastando mais areia para cima e subindo até atingirem a altura dos galhos secos do que restava de pequenas árvores, retorcidas e ressequidas, protuberando aqui e ali pela planície. Se alguém observasse os troncos escuros com cuidado, perceberia que, talvez há não tanto tempo assim, sob as cascas grossas, vida ainda teimava em tentar fluir sobre aquela terra devastada.

Uma tentativa que se findava, derrotada e já tornando-se tão trágica quanto o resto do lugar.

Shh. Crush. Tsch…

Atravessando a planície entre nuvens de areia e árvores mortas, podia-se ver uma pequena figura.

Scratch. Cruch. Tchtch… pequenos torrões se desfaziam ao serem pisados pelas solas da pequena figura, solas tão rachadas quanto a própria terra, esbranquiçadas a ponto de pele poder ser confundida por osso, isso se esta também não fosse amassada sob tornozelos ainda mais esbranquiçados. O mais estranho era que, acima dos tornozelos, as panturrilhas não se estendiam apenas brancas, mas também irrequietas, como se milhares de insetos se movessem sob a pele da figura.

A cada passo dado, os pés pequeninos quase se enfiavam na terra batida, acertando o solo em movimentos sem ritmo, custosos. Os dedos de um pé acertaram o calcanhar do outro em seu avanço desengonçado e a figura tombou para frente, caindo sobre pedras e torrões secos que se espatifaram sobre seu peso, rolando e subindo junto da nuvem arenosa que corria ao redor.

A figura permaneceu deitada em meio a ventania, sem se mover enquanto vento e terra passavam por cima de seu corpo e subiam num mini vendaval até que passassem completamente.

Se vista de longe, a figura poderia ser confundida por uma criança, encolhida e nua, apenas… branca demais, feito leite. Mas, se alguém se aproximasse o suficiente e se abaixasse ao seu lado, veria que em sua cabeça não havia nariz nenhum para respirar, nem boca, ou cabelos, olhos ou orelhas. Seu rosto era apenas uma massa disforme, e em suas mãos não podiam ser distinguidos dedos. De fato, acima dos joelhos, todo o resto do corpo do ser parecia ser feito de névoa condensada em forma. Apenas seus pés eram realmente sólidos, sólidos e rachados.

Um som sibilante acompanhava cada mínimo movimento do corpo bizarro que começou a se retorcer vez e outra, arrastando a terra seca. O "rosto" da criatura, entretanto, permanecia imóvel, virado para uma direção específica. Mesmo sem olhos, ela parecia encarar o horizonte, onde, de muito longe naquela mesma direção, podia-se avistar uma colina baixa para além da planície árida.

Passado algum tempo, uma sombra pequenina apareceu sobre o monte distante, o que fez um grunhido suave e medonho escapar da criatura caída. Nenhuma boca se abriu em seu rosto pra que o som saísse, mas era como se todo o corpo da criatura vibrasse, tremendo feito um gato enervado.

Ela continuou no mesmo lugar, mesmo que, diferente de poucos instantes atrás, quando parecia estar à beira da morte, agora ela estava inquieta, como se esperasse ansiosa.

Continuava atenta à sombra quase insignificante recortada contra o azul do céu, lá no topo da colina longínqua, e soltou outro grunhido reverberante quando a mesma começou a se mover, vindo em direção à planície.

Lentamente, a pequena sombra foi passando de um ponto miúdo que aparecia e tornava a sumir entre as pedras e árvores minúsculas, para uma pequena silhueta que descia e descia, até chegar ao pé da colina, então aumentando ao adentrar a planície e se aproximar constantemente.

O mundo parecia fazer silêncio enquanto a distância entre a silhueta se aproximando e a criatura esbranquiçada diminuía, e alguns bons minutos depois a silhueta começou a ficar mais nítida.

Era uma pessoa.

Quanto mais se aproximava, mais seus contornos iam se tornando visíveis em meio aos esparsos raios de sol que atravessavam as nuvens largas que cobriam a planície e metade do céu.

A capa puída da figura teimava em inflar, presa aos seus ombros, e segurava um chapéu de abas largas e tortas, como se tivesse medo de que o mesmo voasse para longe com o vento sujo.

O chapéu, ao chegar mais próximo, parecia realmente velho e desgastado. E ao se aproximar ainda mais, ficou claro que se tratava de um homem. Parecia estar em sua meia idade, talvez. Tinha a barba mal feita, e usava botas quase tão gastas quanto o chapéu que segurava na cabeça. Além disso, apenas duas outras coisas chamavam a atenção sobre ele. A primeira seriam suas feições, e não porque era bonito ou feio, se estivesse no meio de uma multidão, talvez nunca fosse particularmente notado. Era tão ordinário que seria impossível o confundir, e sei o quanto isso soa contraditório. O fato é que o rosto daquela pessoa era tão comum que poderia ser apenas um reflexo de todos os rostos dos homens.

Já a segunda coisa que chamava a atenção sobre ele, com toda a certeza, seriam seus olhos, pois olhos como aqueles não poderiam ser mais diferentes de suas feições ordinárias. Eles eram tão profundos que pareciam conter todas as perguntas e todas as respostas que existiam.

Depois do que pareceu ser uma eternidade, o homem finalmente parou de caminhar, já a alguns poucos passos da criatura caída, a observando em silêncio por um momento enquanto ela grunhia e vibrava, emitindo sons arranhados com cada movimento pequenino, seu peito nevoento subindo e descendo sem ritmo.

"A muito tempo você tem me seguido de longe." O homem falou numa voz altiva, não muito condizente com suas roupas esfarrapadas, então se agachou devagar, ainda estudando a criatura com interesse. "Porque começou a seguir para o leste de repente?" Ele perguntou, deslizando os dedos pela terra seca.. "O que foi que mudou?"

A criatura não o respondeu, apenas grunhindo enquanto se remexia inquieta, feito um animal ferido.

"Você sentiu ela chegando?" Perguntou o homem. "Ou foi seu servo quem te alertou da chegada da criança?"

O grunhido parou de soar por um instante e o ser esquisito se encolheu ligeiramente, ainda parecendo encarar o homem. Mas, de repente, sem que boca alguma se abrisse, uma voz aguda de menina soou da criatura:

"Você… está admitindo que é… ela?"

O homem não respondeu de imediato, mas suspirou olhando para a paisagem desolada.

"É ela." Ele disse. "Isso não é algo que possa ser escondido. E nem é preciso que seja."

Depois dessas palavras, silêncio se instaurou entre os dois enquanto o homem se levantava lentamente, batendo a poeira de suas calças. Apenas os movimentos inquietos e o sussurro continuou produzido pelo corpo do pequeno ser esbranquiçado continuaram a soar enquanto eles se encaravam.

"Foi o seu servo quem o avisou da chegada da criança?" Perguntou o homem outra vez.

"Você ainda acha que pode tomar o garoto de mim?" Chiou a criatura numa voz que já não parecia tanto com a voz de uma menina, mas um tanto mais esganiçada, um tanto menos suave.

O vento suave ao redor começou a se tornar forte outra vez enquanto, no chão, poeira começava a girar num pequeno redemoinho por perto.

"E você ainda acha que eu não posso?" Disse o homem, olhando de volta para a criatura branca que não o respondeu, apenas continuando a 'encará-lo' com malícia.

O vento aumentava em intensidade ao chegar do oeste, jogando poeira para cima e já se tornado outra pequena tempestade de areia.

"Você não precisa fingir." Disse o homem, puxando o chapéu velho para se proteger da areia que começava a açoitá-los junto da ventania. Sua voz era quase emudecida pelo som do ar cortante ao redor, mesmo assim, suas palavras pareciam atravessar o horizonte por um instante. Seu tom se tornou um tanto mais carregado e, ao mesmo tempo, mais suave ao dizer: "Não se lembra de que já tentou o mesmo truque outras vezes?" Ele suspirou ao fechar os olhos, escondendo o rosto da areia.

De repente, a criança branca deitada a poucos metros deslizou pelo chão seco, se contorcendo feito uma cobra em pleno bote em direção aos pés do homem.

O som de ferro acertando ferro soou, tinindo no ar, mas o homem já havia se desviado, deixando o lugar onde agora, em meio a nuvem de areia, dentes, brilhosos e bem sólidos se fechavam uns sobre os outros.

Os dentes não vinham de uma boca, mas protuberavam desalinhados e em vários tamanhos diferentes desde os braços da criatura enquanto do centro de sua testa um só olho se abria, quase tão indistinto quanto o resto de seu corpo.

"Se bem me lembro…" disse o homem, sem demonstrar qualquer surpresa quando a criança branca se levantou e se pôs outra vez sobre os quatro membros, se preparando para atacar. "...foi num vale como este que você tentou este mesmo truque pela primeira vez. Eu sei que não importa o quão cansada você possa estar, você não vai…"

Ele não acabou de falar, pois a criatura já havia saltado outra vez, feito um raio, esticando os braços cheios de dentes afiados para o calcanhar do homem que se afastou antes de erguer a perna e dar um pisão sobre uma mão em garra que havia se aproximado demais.

A criatura presa gritou e, ao invés de continuar a atacar, começou a se retorcer tentando escapar antes que algo horrível acontecesse. Ao forçar-se para trás, a criatura conseguiu se desvencilhar do pisão do homem, mas o braço debaixo do pé dele continuou no mesmo lugar enquanto tendões rasgados e músculos esmiuçados se estendiam de um rombo horrendo no ombro da criatura. Ela cambaleou para trás, ainda olhando para o homem, sem deixar de grunhir ameaçadoramente por um segundo sequer, feito uma besta que observava sua presa.

Do ferimento, sangue nenhum escorria, por isso, ossos e algo que parecia carne seca e esverdeada podiam ser vistos claramente debaixo da pele como névoa inquieta.

O homem olhou para o braço que ainda se contorcia debaixo de sua bota.

"Não é mesmo agradável ver o que você se tornou." Ele disse, ao que a criatura apenas respondeu com um grito horrível.

Seu rosto nevoento se partiu, deixando que se dividisse sobre uma fenda informe, de onde saltaram para o ar uma dezena de línguas finas.

"Isso." Disse o homem, franzindo. "Mostre sua face verdadeira. Não sei porque ainda insiste em fingir ser o que não é. Ou finge a tanto tempo que começou a convencer a si mesma de que é uma criança?"

A criatura rugiu. Suas línguas se estenderam enquanto seu corpo se desfazia em névoa, assim como o braço debaixo da bota do homem.

Logo, onde antes estava a criança estranha, não havia mais nada além de línguas sibilantes, como tentáculos que continuavam a crescer e crescer, tomando um tamanho cada vez mais exorbitante.

O homem olhava para a coisa que continuava a se erguer, feito uma pequena montanha à sua frente.

"Não." Ele disse, mais para si mesmo do que para qualquer um. "Você não pode se esquecer de quem você é. Por isso continua usando essa casca patética." Seus olhos não haviam deixado de estar focados nem por um instante, mas agora, ao seguirem a criatura que já começava a parecer colossal, se erguendo acima de qualquer árvore da planície, havia algo diferente em seu olhar. Em seus olhos, agora podia-se perceber uma intensidade que, se comparada ao monstro, não pareceria nem um pouco menos terrível.

"Hoje!..." Soou uma voz do monstro feito de tentáculos, uma voz agora nada parecida com a voz de menina de antes. "Você!..."

O homem, que à sombra do monstro até parecia uma formiga em relação a um elefante, deu um passo em direção às línguas gigantes, e estas explodiram em movimento também, feito milhares de lanças voando em direção à pequena figura enquanto uma última palavra reverbera pela planície desolada:

"Morre!"