Mais de quarenta anos depois
Para Wang Miao, os quatro sujeitos que vieram procurá-lo pareciam uma
combinação um tanto estranha: dois policiais e dois militares fardados. Se os
militares fossem policiais armados, seria relativamente compreensível, mas na
verdade eram oficiais do ELP.
Wang ficou irritado assim que viu os policiais. Não tinha problema com o
mais jovem — pelo menos era educado. Mas o outro, vestido à paisana, lhe deu
nos nervos na mesma hora. Era corpulento e tinha os músculos do rosto
salientes. Usava um casaco de couro sujo, fedia a cigarro e falava alto:
exatamente o tipo de pessoa que Wang desprezava.
— Wang Miao?
A maneira sem cerimônia com que o policial se dirigiu a ele, tão direto e mal-
educado, incomodou Wang. Para piorar, o sujeito acendeu um cigarro, sem nem
sequer pedir permissão. Antes que Wang pudesse responder, o homem fez um
gesto com a cabeça para o policial mais novo, que mostrou o distintivo.
Após acender o cigarro, o policial mais velho fez menção de entrar no
apartamento de Wang.
— Por favor, não fume na minha casa — disse Wang, impedindo a passagem.
— Ah, desculpe, professor Wang. — O policial jovem sorriu. — Este é o
capitão Shi Qiang. — Ele olhou para Shi com uma expressão consternada.
— Tudo bem, podemos conversar no corredor — respondeu Shi, que deu uma
longa tragada. Embora quase metade do cigarro tenha virado cinzas, ele não
soprou muita fumaça. Inclinou a cabeça para o policial mais novo. — Você
pergunta, então.
— Professor Wang, queremos saber se o senhor teve algum contato recente
com membros da Fronteiras da Ciência — disse o policial jovem.
— A Fronteiras da Ciência está cheia de acadêmicos famosos e muito
influentes. Por que não posso ter contato com um grupo acadêmico internacional
legítimo?
— Preste atenção no jeito que fala! — respondeu Shi. — A gente disse
alguma coisa sobre não ser legítimo? A gente disse que você não podia ter
contato com eles? — Em seguida, soprou a nuvem de fumaça que havia tragado
antes bem no rosto de Wang.
— Então está bem. Por favor, respeitem minha privacidade. Não preciso
responder a suas perguntas.
— Sua privacidade? Você é um acadêmico famoso. Tem responsabilidade
com o bem-estar da população. — Shi jogou fora a guimba do cigarro e pegou
outro de um maço amassado.
— Eu tenho o direito de não responder. Por favor, se retirem. — Wang se
virou para voltar para dentro.
— Espere! — gritou Shi. Ele fez um gesto para o policial jovem a seu lado. —
Passe para ele o endereço e o telefone. Você pode vir à tarde.
— Afinal, o que vocês querem? — perguntou Wang, agora com uma ponta de
raiva na voz. A discussão atraiu os vizinhos para o corredor, curiosos para ver o
que estava acontecendo.
— Capitão Shi! O senhor disse que… — O policial jovem se afastou um
pouco com Shi e continuou falando aos sussurros, em um tom insistente.
Aparentemente, Wang não era o único incomodado com a postura grosseira
daquele homem.
— Professor Wang, por favor, não nos entenda mal. — Um dos oficiais do
Exército, um major, se adiantou. — Vai haver uma reunião importante na tarde
de hoje, que contará com a presença de diversos acadêmicos e especialistas. O
general nos enviou para fazer o convite ao senhor.
— Tenho um compromisso marcado para a tarde de hoje.
— Sabemos disso. O general já conversou com o diretor do Centro de
Pesquisa em Nanotecnologia. Não podemos realizar essa reunião sem o senhor.
Se não puder comparecer, precisaremos adiá-la.
Shi e o policial jovem não falaram nada, apenas se viraram e desceram a
escada. Os dois oficiais do Exército viram a dupla ir embora e pareceram
suspirar de alívio.
— Qual é o problema daquele cara? — murmurou o major para o outro
oficial.
— Ele tem um péssimo histórico. Durante uma situação com reféns há alguns
anos, ele agiu de maneira impulsiva, sem consideração pela vida dos demais. No
final, três pessoas da mesma família morreram nas mãos dos bandidos. Dizem
que ele também tem amigos no crime organizado e usa uma gangue para
combater outra. No ano passado, praticou tortura para extrair confissões e deixou
um dos suspeitos incapacitado para sempre. Foi por isso que ele foi suspenso da
força…
Wang Miao desconfiava que os oficiais tinham a intenção de que ele
entreouvisse a conversa. Talvez quisessem mostrar que eram diferentes daquele
policial grosseiro, talvez quisessem deixá-lo curioso sobre a missão.
— Como é que um homem assim faz parte do Centro de Comando em
Batalha? — perguntou o major.
— O general pediu especificamente para que ele participasse. Acho que deve
ter algumas habilidades especiais. De qualquer forma, a função dele é bastante
restrita. Além de questões de segurança pública, ele não tem permissão para
fazer muita coisa.
Centro de Comando em Batalha? Wang olhou para os dois oficiais, perdido.
O carro enviado para buscar Wang Miao seguiu com o professor para um grande
complexo na periferia da cidade. Como a porta só estava identificada por um
número, sem letreiro, Wang deduziu que o edifício era das Forças Armadas, não
da polícia.
Wang se surpreendeu com o caos que reinava na enorme sala de reuniões. Viu
à sua volta muitos computadores em condições variadas de desordem. Como não
havia mesas suficientes, algumas estações de trabalho estavam instaladas no
chão mesmo, onde cabos de rede e fios formavam um emaranhado. Em vez de
prateleiras, o monte de roteadores estava largado em cima dos servidores. Havia
papel branco espalhado por todos os lados. Em alguns cantos da enorme sala,
telões de projeção formavam ângulos estranhos, como se fossem barracas de
ciganos. Havia uma nuvem de fumaça no ar… Wang Miao não sabia se aquilo
era o Centro de Comando em Batalha, mas sabia de uma coisa: fosse lá qual
fosse a situação, era importante demais para eles se preocuparem com as
aparências.
A mesa de reunião, formada pela junção de várias mesas menores, estava
coberta de documentos e objetos variados. Os presentes tinham a roupa
amarrotada e pareciam exaustos. Quem estava de gravata havia afrouxado o nó.
Parecia que todo mundo ali tinha passado a noite em claro.
Um general de brigada chamado Chang Weisi presidia a reunião, e metade dos
presentes era composta por oficiais das Forças Armadas. Após uma breve
apresentação, Wang descobriu que muitos eram da polícia. Os demais eram
acadêmicos como ele, incluindo alguns cientistas proeminentes especializados
em pesquisa de base.
Wang também percebeu quatro estrangeiros e ficou chocado ao descobrir
quem eram: um coronel da Aeronáutica dos Estados Unidos e um coronel do
Exército britânico, ambos adidos da Otan, além de dois agentes da CIA,
aparentemente na condição de observadores.
No rosto de todos em volta da mesa, Wang percebeu um mesmo sentimento:
Fizemos tudo o que dava. Vamos acabar logo com esta merda.
Wang Miao viu Shi Qiang sentado à mesa. Em contraste com a grosseria do
dia anterior, Shi chamou Wang de "Professor" ao cumprimentá-lo. Mas o sorriso
debochado irritou Wang. Ele não queria ficar sentado ao lado de Shi, porém não
teve escolha, pois era a única cadeira sobrando. A nuvem já densa de fumaça
aumentou.
Conforme os documentos eram distribuídos, Shi se aproximou de Wang.
— Professor Wang, pelo que entendi o senhor pesquisa alguma espécie de…
material novo?
— Nanomaterial — respondeu Wang.
— Já ouvi falar. Esse negócio é muito forte, né? O senhor acha que pode ser
usado para cometer crimes? — Como Shi continuava estampando um meio
sorriso, Wang não sabia se ele estava brincando.
— Como assim?
— Pois é, ouvi falar que um fio feito com esse negócio poderia ser usado para
erguer um caminhão. Se bandidos roubassem um pouco desse material e
fizessem uma faca, por acaso não conseguiriam cortar um carro ao meio só com
um golpe?
— Não é preciso fazer uma faca. Esse tipo de material pode ser montado em
uma linha cem vezes mais fina que um fio de cabelo. Se você estendesse essa
linha em uma rua, um carro que passasse seria cortado ao meio, como
manteiga… Agora, o que não pode ser usado para cometer crimes? Até uma faca
cega de escamar peixe!
Shi começou a tirar um documento do envelope à sua frente e voltou a
guardá-lo, perdendo o interesse de repente.
— Tem razão. Até mesmo um peixe pode ser usado para cometer crimes. Já
tive um caso assim de assassinato. Uma vez uma vadia capou o marido. Sabe o
que ela usou? Uma tilápia congelada que estava no freezer! As barbatanas do
bicho pareciam navalhas…
— Não quero saber. Você me chamou para esta reunião para falar disso?
— Peixe? Nanomateriais? Não, não, nada a ver com isso. — Shi se aproximou
e sussurrou no ouvido de Wang. — Não seja legal com esses caras. Eles têm
preconceito com a gente. Só querem tirar informação, mas nunca vão nos dizer
nada. Olhe só para mim. Estou aqui há um mês e ainda não sei de nada, que nem
você.
— Camaradas — disse o general Chang —, vamos começar. De todas as
zonas de combate no mundo, esta se tornou o ponto de convergência. Precisamos
deixar os camaradas presentes a par da atual situação.
Wang estranhou a expressão "zona de combate". Também percebeu que o
general não parecia disposto a explicar em detalhes o contexto da situação para
pessoas como ele, o que reforçava a sugestão de Shi. Além disso, o general
Chang havia usado a palavra "camaradas" duas vezes em sua breve introdução.
Wang olhou para os agentes da Otan e da CIA sentados à sua frente. O general
não acrescentara "cavalheiros".
— Eles também são camaradas. Pelo menos é assim que todos se chamam por
aqui — sussurrou Shi para Wang, apontando o cigarro para os quatro
estrangeiros.
Wang ficou perplexo ao ver que Shi adivinhara seus pensamentos e achou
impressionante o poder de observação dele.
— Da Shi, apague o cigarro. Já temos bastante fumaça aqui — disse o general
Chang, enquanto folheava alguns documentos. Ele tratou Shi Qiang por um
apelido, "Grande Shi".
Shi procurou um cinzeiro, mas não achou. Por fim, largou o cigarro em uma
xícara. Levantou a mão e, antes que Chang tivesse tempo de perceber, falou alto:
— General, gostaria de fazer um pedido que já fiz em outras reuniões: quero
paridade de informação.
O general Chang levantou a cabeça.
— Nenhuma operação militar jamais teve paridade de informação. Peço
desculpas a todos os acadêmicos, mas não posso passar mais detalhes.
— Nós não somos como os cabeçudos — respondeu Shi. — A polícia tem
sido parte do Centro de Comando em Batalha desde o começo. Mas, até agora,
ainda não sabemos do que se trata. Vocês insistem em nos manter afastados.
Aprendem o que precisam das nossas técnicas e depois vão nos expulsando, um
de cada vez.
Outros policiais presentes murmuraram para que Shi calasse a boca. Wang
ficou surpreso de ver que Shi se atrevia a falar daquele jeito com um homem da
patente de Chang. Só que a resposta de Chang foi ainda mais surpreendente.
— Da Shi, parece que você continua com o mesmo problema de quando
estava no Exército. Por acaso acha que está falando pela polícia? Em razão de
seu péssimo histórico, você tinha sido suspenso por vários meses e estava prestes
a ser expulso da força. Intercedi a seu favor porque reconheço sua experiência.
Você deveria dar valor a esta oportunidade.
Shi continuou com um tom grosseiro.
— Então estou trabalhando na esperança de que, com bons serviços prestados,
eu possa me redimir? Achei que você tinha falado que todas as minhas técnicas
eram desonestas e corruptas.
— Mas são úteis. — Chang acenou com a cabeça para Shi. — A única coisa
que nos importa é que elas sejam úteis. Em tempos de guerra, não podemos nos
dar ao luxo de ter muitos escrúpulos.
— Não podemos ser meticulosos demais — disse um dos agentes da CIA,
falando em perfeito mandarim padrão moderno. — Não podemos mais pensar de
forma convencional.
O coronel britânico também parecia entender chinês. Ele assentiu com a
cabeça.
— Ser ou não ser… — acrescentou ele, em inglês. — É uma questão de vida
ou morte.
— O que ele está falando? — perguntou Shi a Wang.
— Nada — respondeu Wang de modo mecânico. A conversa ali parecia sair
direto de um sonho. Tempos de guerra? Cadê essa guerra? Ele se virou para
olhar por um dos janelões. Pelo vidro, vislumbrou Beijing ao longe: o sol da
primavera iluminava os carros que enchiam as ruas como um rio denso; alguém
passeava com um cachorro pela grama; crianças brincavam…
O que é mais real? O mundo lá fora ou aqui dentro destas paredes?
— O inimigo intensificou o padrão de ataques recentemente — disse o
general Chang. — Os alvos ainda são cientistas de alto escalão. Por favor,
passem os olhos pela lista de nomes no documento.
Wang tirou a primeira folha do documento, impressa com caracteres grandes.
A lista parecia ter sido feita às pressas e continha nomes em chinês e inglês.
— Professor Wang, ao ver esses nomes, algum chama sua atenção? —
perguntou o general Chang.
— Conheço três. Todos são pesquisadores famosos que atuam na vanguarda
do estudo da física. — Wang estava um pouco distraído. Seus olhos se fixaram
no último nome da lista. Em sua mente, os dois caracteres pareciam assumir uma
cor diferente dos nomes anteriores. Como é que o nome dela aparece aqui? O
que aconteceu com ela?
— Conhece ela? — Shi apontou para o nome com seu dedo grosso e
amarelado de fumante. Wang não respondeu. — Rá. Não conhece. Mas quer
conhecer?
Agora Wang Miao entendia por que o general Chang havia pedido para
trabalhar com aquele homem. Shi, que parecia vulgar e descuidado, tinha olhos
de águia. Talvez não fosse um policial bom, mas com certeza era temível.
Um ano antes, Wang Miao fora responsável pelos componentes de escala nano
para o projeto de acelerador de partículas de alta energia "Sinotron II". Certa
tarde, durante um rápido intervalo no canteiro de obras de Liangxiang, Wang
ficou impressionado com o cenário. Como fotógrafo de paisagens amador,
muitas vezes Wang via as cenas à sua volta como composições artísticas.
O principal elemento da composição era o solenoide do eletroímã
supercondutor que eles ainda estavam instalando. Com cerca de dez metros de
altura e apenas parcialmente construído, o eletroímã se projetava como um
monstro feito de pedaços gigantescos de metal e de uma confusão de tubos de
refrigeração criogênica. Como um monte de entulho da Revolução Industrial, a
estrutura transpirava a frieza inumana tecnológica e a barbárie do aço.
Na frente desse monstro de metal estava a figura esbelta de uma jovem. A
iluminação da composição também era fantástica: o monstro de metal se
encontrava imerso na sombra de uma cobertura temporária para obras, o que
enfatizava ainda mais o aspecto grave e duro. Apesar disso, um raio de sol
vespertino passava pelo buraco no centro do abrigo, atingindo a mulher. O brilho
suave iluminava os cabelos macios e dava destaque para o pescoço branco
visível acima do colarinho do macacão, como se uma flor solitária desabrochasse
em meio a uma ruína metálica após uma tempestade violenta…
— O que você está olhando? Volte ao trabalho!
Wang despertou do devaneio com um choque, mas logo percebeu que o
diretor do Centro de Pesquisa em Nanotecnologia não estava falando com ele, e
sim com um jovem engenheiro que também tinha ficado olhando para a mulher.
Ao voltar da arte para a realidade da vida, Wang notou que a jovem não era uma
operária comum — o engenheiro-chefe estava ao lado dela, explicando algo com
um tom respeitoso.
— Quem é ela? — perguntou Wang ao diretor.
— Você devia saber — respondeu o diretor, traçando um círculo grande com a
mão. — O primeiro experimento neste acelerador de vinte bilhões de yuans
provavelmente vai ser um teste do modelo de supercordas dela. Acontece que
tempo de experiência pesa no ramo da física teórica e, em outra situação, ela não
seria vista como experiente o bastante para ser a primeira da fila. Só que, como
aqueles acadêmicos com mais bagagem não se atreveram a aparecer antes, com
medo de passar vergonha caso suas teorias fracassassem, ela ganhou a chance.
— O quê? Yang Dong é… uma mulher?
— Pois é — disse o diretor. — Só descobrimos quando finalmente a
conhecemos, dois dias atrás.
— Ela tem algum problema psicológico? — perguntou o jovem engenheiro.
— Por que ela não quer conceder entrevistas para a mídia? Será que ela é como
Qian Zhongshu,* que morreu sem nunca ter aparecido na TV? — As palavras de
Wang estavam marcadas por uma ponta de autodepreciação. Ele ainda não era
famoso o bastante para chamar a atenção da mídia, que dirá para recusar
convites de entrevista.
— Mas pelo menos nós sabíamos que Qian era homem. Aposto que Yang
passou por algumas experiências estranhas na infância. Talvez tenha ficado um
pouco autista por causa disso.
Yang se aproximou do engenheiro-chefe. Quando passaram, ela sorriu para
Wang e os demais, fazendo um gesto sutil com a cabeça, sem falar nada. Wang
se lembrava daqueles olhos límpidos.
À noite, sentado no escritório, Wang estava admirando as poucas fotografias
de paisagem penduradas na parede: eram as criações de que ele mais se
orgulhava. Fixou os olhos em uma cena de fronteira: um vale desolado que
terminava em uma montanha coberta de neve. Na parte mais próxima do vale,
metade de uma árvore morta, desgastada por muitos anos de exposição, ocupava
um terço da foto. Em sua imaginação, Wang colocou a figura da mulher que não
saía de seus pensamentos no fundo do vale. Ficou surpreso ao constatar que o
cenário todo pareceu ganhar vida, como se o mundo da fotografia reconhecesse
aquela figura minúscula e reagisse, como se o cenário todo existisse para ela.
Em seguida, Wang a imaginou em cada uma das outras fotografias, às vezes
colando os olhos dela no céu vazio acima das paisagens. Essas imagens também
ganharam vida, alcançando uma beleza que Wang jamais havia imaginado.
Wang sempre havia pensado que suas fotografias careciam de algum tipo de
espírito. Agora entendia que o que faltava era ela.
— Todos os físicos nessa lista cometeram suicídio nos últimos dois meses —
disse o general Chang.
Wang ficou chocado. Aos poucos, as paisagens em preto e branco se
desvaneceram em sua mente. As fotografias já não possuíam a figura dela no
primeiro plano, e seus olhos foram riscados do firmamento. Aqueles mundos
estavam todos mortos.
— Quando… isso aconteceu? — perguntou Wang, em tom mecânico.
— Nos últimos dois meses — repetiu Chang.
— Você está se referindo ao último nome, não é? — indagou Shi, satisfeito.
— Ela foi a última a se suicidar. Na noite retrasada, uma overdose de remédios
para dormir. A morte foi pacífica. Sem dor.
Por um instante, Wang sentiu-se grato a Shi.
— Por quê? — perguntou Wang. Os cenários mortos daquelas fotos de
paisagem continuavam martelando em sua cabeça.
— Nossa única certeza — respondeu o general Chang — é a seguinte: todos
cometeram suicídio pelo mesmo motivo. Mas é difícil levantar hipóteses. Talvez
seja impossível para nós, que não somos especialistas, cogitar o motivo. O
documento contém trechos das cartas de suicídio. Todos vocês podem examiná-
los após a reunião.
Wang folheou as páginas das cartas: todas pareciam ensaios extensos.
— Dr. Ding, por favor, o senhor poderia mostrar a mensagem de Yang Dong
ao professor Wang? A dela é a mais curta e, talvez, a mais representativa.
O homem em questão, Ding Yi, havia permanecido em silêncio até aquele
momento. Após mais um instante, ele enfim pegou um envelope branco e
entregou para Wang por cima da mesa.
— Ele era o namorado de Yang — sussurrou Shi. Wang se lembrava de ter
visto Ding no canteiro de obras do acelerador de partículas em Liangxiang. Ele
era um teórico que havia ficado famoso ao descobrir os macroátomos quando
estava estudando relâmpagos globulares. Wang tirou do envelope uma folha fina
e de formato irregular, com uma fragrância sutil… não de papel, mas de bétula.
Havia uma única linha de caracteres escritos em uma caligrafia elegante:
Todas as provas apontam para uma única conclusão: a física nunca
existiu nem jamais existirá. Sei que o que estou fazendo é
irresponsável. Mas não tenho escolha.
O papel não estava nem assinado. Ela se fora.
— A física… não existe? — Wang não fazia ideia do que pensar.
O general Chang fechou a pasta.
— O arquivo também contém informações específicas relativas aos resultados
experimentais obtidos após a finalização dos três aceleradores de partículas mais
novos do mundo. Como é bastante técnico, não trataremos disso aqui. O
primeiro objeto de nossa investigação é a Fronteiras da Ciência. A Unesco
determinou que 2005 seria o Ano Mundial da Física, e essa organização se
formou gradativamente, a partir dos diversos congressos e encontros acadêmicos
realizados ao longo daquele ano por físicos do mundo inteiro. Dr. Ding, já que o
senhor estuda física teórica, poderia nos dar mais informações sobre essa
organização?
Ding confirmou com a cabeça.
— Não tenho nenhuma relação direta com a Fronteiras da Ciência, mas a
organização é famosa no meio acadêmico. O objetivo central dela é ser uma
resposta para o seguinte problema: desde a segunda metade do século XX, a
física perdeu aos poucos a concisão e a simplicidade das teorias clássicas. Os
modelos teóricos modernos se tornaram cada vez mais complexos, vagos e
imprecisos. A verificação experimental se tornou mais difícil também. Isso tudo
é um sinal de que a vanguarda da pesquisa em física parece estar chegando a um
limite.
"Os membros da Fronteiras da Ciência querem experimentar uma nova forma
de pensar. Para simplificar: eles querem usar os métodos científicos para
descobrir os limites da ciência, para tentar descobrir se existe limite para a
extensão e a precisão com que a ciência pode conhecer a natureza, um limite que
a ciência não pode transpor. O desenvolvimento da física moderna parece sugerir
que essa linha já foi alcançada."
— Muito bem — disse o general Chang. — De acordo com nossas
investigações, a maioria dos pesquisadores que se suicidaram tem alguma
ligação com a Fronteiras da Ciência, e alguns até faziam parte dela. Mas não
encontramos indícios de drogas psicotrópicas nem de técnicas similares à
manipulação ideológica presente em seitas religiosas. Em outras palavras,
embora tenham sido influenciados pela Fronteiras da Ciência, isso ficou limitado
a relações acadêmicas legítimas. Professor Wang, visto que a organização entrou
em contato com o senhor recentemente, gostaríamos de pedir algumas
informações.
— Incluindo o nome de seus contatos — acrescentou Shi de maneira grosseira
—, o horário e o local dos encontros, o assunto das conversas e eventuais trocas
de cartas ou e-mails…
— Cale-se, Da Shi! — disse o general Chang.
Outro policial se inclinou e sussurrou para Shi:
— Por acaso acha que vamos esquecer que você tem boca se não a mantiver
aberta o tempo todo?
Shi pegou a xícara, viu a guimba de cigarro enfiada no chá e voltou a colocá-
la na mesa.
As perguntas de Shi voltaram a deixar Wang irritado, a mesma sensação que
um homem teria ao descobrir que engoliu uma mosca junto com a comida. A
gratidão experimentada havia pouco desapareceu sem deixar vestígios. Mas ele
se conteve e respondeu:
— Meu contato com a Fronteiras da Ciência começou com Shen Yufei, uma
física japonesa descendente de chineses que trabalha atualmente para uma
empresa japonesa aqui em Beijing. Ela já trabalhou em um laboratório da
Mitsubishi com pesquisa sobre nanotecnologia. Nós nos conhecemos em um
congresso no começo deste ano. Por intermédio dela, conheci alguns de seus
amigos físicos, todos integrantes da Fronteiras da Ciência, alguns chineses,
alguns estrangeiros. Em nossas conversas, todos os assuntos eram… como dizer?
Bem radicais. Todos os temas estavam relacionados à pergunta que o dr. Ding
acabou de mencionar: qual é o limite da ciência?
"A princípio, eu não tinha muito interesse nesses assuntos, que só encarava
como um passatempo. Trabalho com pesquisa aplicada e não conheço muito
dessas questões teóricas. Estava interessado principalmente em ouvir os debates
e as discussões que eles travavam. Todos eram grandes pensadores, com pontos
de vistas originais, e eu sentia que minha mente se expandia com as conversas.
Com o tempo, fui ficando mais interessado. Mas os debates se limitavam à teoria
pura e nada mais. Eles me convidaram uma vez a entrar para a Fronteiras da
Ciência. Só que, caso eu tivesse aceitado, comparecer às discussões teria se
transformado em obrigação. Como eu não tinha muito tempo livre nem energia
de sobra, recusei."
— Professor Wang — disse o general Chang —, gostaríamos que o senhor
aceitasse o convite e entrasse para a Fronteiras da Ciência. Esse é o principal
motivo para termos insistido em sua presença na reunião de hoje. Por intermédio
do senhor, gostaríamos de saber mais sobre as atividades internas da
organização.
— Vocês querem que eu seja um espião? — Wang não estava à vontade.
— Um espião! — Shi riu.
Chang lançou um olhar de censura para Shi e se virou para Wang.
— Só queremos que o senhor nos passe algumas informações. Não temos
nenhuma outra via de acesso.
Wang balançou a cabeça.
— Sinto muito, general. Não posso fazer isso.
— Professor Wang, a Fronteiras da Ciência é composta de pensadores
internacionais de primeira linha. O trabalho de investigação é extremamente
complexo e delicado. Para nós, seria como pisar em ovos. Sem a ajuda de
alguém do meio acadêmico, não temos como fazer nenhum progresso. Por isso
estamos fazendo esse pedido. Mas respeitaremos sua vontade. Se o senhor não
aceitar, vamos entender.
— Eu ando… muito atarefado. Não tenho tempo para isso.
O general Chang assentiu com a cabeça.
— Tudo bem, professor Wang. Não vamos mais desperdiçar o seu tempo.
Obrigado por vir a esta reunião.
Wang esperou mais alguns segundos até perceber que havia sido dispensado.
O general Chang o acompanhou gentilmente até a porta. Dava para ouvir a
voz alta de Shi atrás deles.
— É melhor assim. Nem concordo com o plano mesmo. Muitos CDFs já se
mataram. Mandar esse cara seria o mesmo que jogar um pedaço de carne dentro
de um canil.
Wang se virou, foi até Shi, reprimiu a raiva e disse:
— O seu jeito de falar não é adequado para um bom policial.
— Quem disse que eu sou um bom policial?
— Não sei por que esses pesquisadores se mataram, mas você não devia falar
deles com tanto desdém. A mente brilhante desses estudiosos trouxe
contribuições inigualáveis para a humanidade.
— Você está dizendo que eles são melhores do que eu? — Ainda sentado, Shi
ergueu os olhos para encarar Wang. — Eu pelo menos não me mataria só porque
alguém me falou uma besteira.
— Você acha que eu me mataria?
— Tenho que me preocupar com a sua segurança.
Lá estava aquele sorrisinho debochado de novo.
— Acho que eu estaria muito mais seguro que você nesse tipo de situação.
Você deve saber que a capacidade de uma pessoa de discernir a verdade é
diretamente proporcional ao conhecimento que ela tem.
— Não sei, não. Digamos que alguém como você…
— Silêncio, Da Shi! — disse o general Chang. — Mais uma palavra e você
será expulso!
— Não tem problema — respondeu Wang. — Deixe falar. — Ele se virou
para o general Chang. — Mudei de ideia. Vou entrar para a Fronteiras da
Ciência, como vocês querem.
— Ótimo! — Shi balançou a cabeça com força. — Fique atento depois de
entrar. Obtenha informações sempre que for possível. Por exemplo, dê uma
olhada na tela dos computadores deles, decore endereços de e-mail ou de sites…
— Basta! Você não entendeu. Não quero ser um espião. Só quero provar que
você não passa de um idiota!
— Se você continuar vivo por algum tempo depois de entrar, já vai ser uma
ótima prova. Mas eu temo por sua segurança… — Shi levantou o rosto, e a
expressão debochada se transformou em um sorriso maldoso.
— É claro que vou continuar vivo! Mas nunca mais quero ver você.
Eles mantiveram Wang afastado enquanto os outros iam embora para que ele não
topasse com Shi Qiang de novo. Depois, o general Chang acompanhou Wang até
o pé da escada e chamou um carro para levá-lo de volta para casa.
— Não se preocupe com Shi Qiang — disse ele para Wang. — Ele é daquele
jeito mesmo. Na verdade, Shi é um policial muito experiente e um especialista
em antiterrorismo. Vinte anos atrás, era soldado da minha companhia.
Enquanto os dois se aproximavam do carro, Chang acrescentou:
— Professor Wang, o senhor deve ter muitas perguntas.
— O que aquilo tudo que vocês falaram lá dentro tem a ver com as Forças
Armadas?
— A guerra tem tudo a ver com o Exército.
Sob o sol da primavera, Wang olhou ao redor, confuso.
— Mas onde é que está essa guerra? Este talvez seja o período mais pacífico
da história.
Chang o encarou com um sorriso indecifrável.
— O senhor saberá em breve. Todo mundo saberá. Professor Wang, já
aconteceu algo com o senhor que mudou a sua vida da noite para o dia? Alguma
circunstância que tenha feito com que o mundo se tornasse um lugar totalmente
diferente para o senhor?
— Não.
— Então o senhor teve sorte na vida. Mesmo que o mundo seja cheio de
imprevistos, o senhor nunca se deparou com uma crise.
Wang revirou as palavras na cabeça, ainda sem entender.
— Acho que isso vale para a maioria das pessoas.
— Então a maioria das pessoas teve sorte na vida.
— Mas… muitas gerações viveram dessa forma simples.
— Todas tiveram sorte.
Wang riu, balançando a cabeça.
— Preciso confessar que não estou me sentindo muito esperto hoje. O senhor
está sugerindo que…
— Sim, que a humanidade teve sorte ao longo de toda sua história. Desde a
Idade da Pedra até hoje, nunca aconteceu nenhuma crise de verdade. Tivemos
sorte, muita sorte. Agora, como tudo isso foi sorte, um dia teria que acabar. Vou
mais longe: já acabou. Prepare-se para o pior.
Embora Wang quisesse saber mais, Chang balançou a cabeça e se despediu,
evitando novas perguntas.
Depois de Wang entrar no carro, o motorista quis saber para onde deveria
levar o passageiro. Wang informou o endereço e perguntou:
— Ah, não foi você que me trouxe aqui? Achei que fosse o mesmo carro.
— Não, não fui eu. Eu trouxe o dr. Ding.
Wang teve uma ideia nova. Pediu para o motorista levá-lo ao endereço de
Ding.
* Qian Zhongshu (1910-98) foi uma das mentes literárias chinesas mais famosas do século XX. Erudito,
mordaz e recluso, ele insistia em rejeitar convites para aparecer na mídia. Poderia ser considerado uma
versão chinesa de Thomas Pynchon.