"Existe uma generalização sobre inútil e gênio; talento e esforço. Essas definições são apenas merda. Não existem gênios e nem inúteis. Estes são denominações da sociedade para julgar alguém e, ao mesmo tempo, explicar suas decisões de fracasso e traição. Ao mesmo tempo, talento e esforço não tem correlação com estes termos. É a Era da Arcana e Feitiçaria e, nesse mundo, conhecimento vale mais que qualquer coisa. Nesse sentido, meu pai, o fundador da Academia Real das Cinco Coroas, provou que qualquer pessoa pode chegar ao nível de grão-mestre, apenas deve encontrar o caminho certo. Seus métodos de ensino superaram e muito qualquer um no mundo divino.
— Prefacio de O Conto do Arcano. Escrito por Lilith Themis Blyanna Naelyan Aisleen, da Família Real Nortenha e União das Cinco Coroas de Arcana.
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Ano 0002 da Era da Torre da Magia
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Sentada no topo do Monte do Rei, uma visão clara de toda a cidade do gelo a encantava. O traço de nostalgia acalentava seu coração, remetendo a mente ao passado, sem importar as glórias e derrotas. O som dos pássaros cantando tranquilizava sua alma. Isso a deixava feliz, mesmo que tal situação normalmente dure um efêmero momento.
É necessário. Nos últimos tempos, andava angustiada e aflita, sem saber o porquê. Nada se encaixava, principalmente por esse ser o melhor momento da sua vida – casada há anos, engravidou de sua primeira criança. Pelos feiticeiros da escola de astrologia, sabia que seria uma menina.
Seu sonho fora realizado e sua família prestes a estar completa.
"Por que é assim? Meu marido é um dos mais fortes dente os Magos e eu sou a Espiritualista mais forte. Todos ao nosso redor têm títulos iguais ou abaixo do nosso por pouco. Existe mesmo algum perigo? Quem no mundo é capaz de nos ameaçar?" Suspirou. Seus sentimentos estavam confusos.
Ela sabia que seu pressentimento era incerto, mas preferiu crer. Como espiritualista e arcana, compreendia bem os detalhes sobre os pressentimentos de alguém que controla as forças da natureza – eles não eram apenas medos. Por isso, antes de tais incompreensões, nunca havia duvidado de seus instintos.
Essa situação era totalmente fora do comum.
Reflexiva, saltou do monte. Era alto – quase quarenta mil pés. Talvez por costume, tal altura era incapaz de incomodá-la – pelo contrário.
Como em um passeio, aproveitava a vista e, casualmente, mudava de posição enquanto colocava os pensamentos em ordem.
Estava relaxada, e seus pensamentos fluíam naturalmente. Sentiu-se livre de todas as amarras do mundo. Os pássaros voavam ao seu redor e, por um instante, desejou ser livre para voar que nem eles.
De tão tranquila – e até mesmo alegre – retirara o enorme manto de feiticeira que vestia, revelando sua aparência completamente. Uma pequena mulher que aparentava estar na casa dos vinte anos – Mas que com certeza era mais velha – e um sorriso tranquilo no rosto. Seus longos cabelos negros desprenderam-se das amarras do laço, tornando-se livres. No fundo de seus olhos, uma luz incomum surgira neste breve momento de libertação.
"Nesse ponto, não adianta pensar nisso. Depois que nossa filha nascer, vou tentar entender melhor." Suspirou. Agilmente, prendia os longos cabelos em plena queda livre.
Quando chegou próxima a base do monte, tocou sua barriga levemente. Ela se sentia leve e afortunada. "Será que ela vai ter os olhos violetas do pai com meus cabelos negros? Seria fofo de se ver".
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Ano 1297 da Era dos Reinos Combatentes
Olhando as consequências do caos, uma jovem mulher caminhava pelas ruas da Cidade do Dragão Branco, desabitada por causa da Guerra Civil das Cachoeiras. Trazia um ar desolado, mas, no fundo, distante. Ela vestia um manto preto que não revelara nada de si além do belo sorriso e alguns fios brancos que corriam para fora do capuz.
Caminhando, olhava os arredores sem pretensão. Não estava incomodada ou com sentimentos piedosos; não via sentido nisso. Às vezes, pensava que era indiferente ao mundo quando as cenas de destruição e caos em massa não a afetavam — Mas, não a incomodava.
É possível dizer que, de tão acostumada com a guerra, perdera um pouco da essência piedosa que antes ostentava. Se a mudança que sofrera caminhava para uma estrada de benefícios ou destruições, ela não sabia. Mas, não queria se preocupar – e não importava.
Seja o que tiver de ser. Era o pensamento de vida dela.
Vivera por muito tempo e observara inúmeras conspirações, seja na política, no meio da guerra, ou até mesmo no seio familiar.
Odiava tudo.
Não pensou mais sobre. Decidida, focou imediatamente na sua missão. Estava um pouco irritada por ter saído de seu Império, entretanto, como foi um pedido de seu irmão mais velho, resignou-se. "Preciso avaliar seriamente". Suspirou. Olhando para o céu, sorriu brilhantemente. "O mundo é um incômodo."
Caminhando por mais alguns quilômetros, uma espécie de sentimento estranho brotou em sua mente. Era algo diferente de intuição. É como se alguém tivesse plantado uma espécie de sugestão. Como não havia maneira de descobrir, decidiu ignorar até que encontrou um rastro de prana ao redor. Ficou cautelosa. "Existe vida por aqui!". Estranhou. Um toque de preocupação e surpresa a invadiu, pois, "vida" não é algo que deveria existir.
Na cidade do Dragão Branco, existia uma reação de energia nuclear causada pelo choque de confrontos mágicos de energia pura durante os confrontos da guerra civil das cachoeiras, considerado um conflito menor da grande guerra entre a Aliança e a União. Esse nível de pureza tornou-se tóxica para a maioria dos magos intermediários e altos, matando-os no ato pela incapacidade de absorver prana no estado nuclear.
A maioria dos territórios onde houve conflitos são repletas dessa energia, trazendo rastros morte e um gosto amargo de enxofre. Sem especular, era, de fato, um conceito inconcebível existir qualquer tipo de vida nesse local.
Claro, existem exceções. Dentre os milhares de magos, existem aqueles que tem uma prana extremamente pura dentro de seus corpos graças a seus esforços. Consequentemente, não são afetados pela radiação. Ela é um desses casos.
"Quem estaria aqui com toda essa radiação de prana nuclear?" Expandiu sua prana em busca de qualquer mínimo rastro de prana diferente da nuclear. Não houve o mínimo sinal.
"Sem cultivadores ou magos? Espiritualistas não aguentariam dois minutos aqui... e não tem sinais de aura... Então..." pensando, estava confusa. Expandiu os critérios de busca até que escutou vibrações de um batimento cardíaco. "Está fraco... Muito fraco".
Invocou dois círculos mágicos brancos na planta dos pés e deu dois pequenos pulos. Em seguida, se impulsionou na direção das vibrações a uma velocidade impossível de ser vista por olhos comuns.
Segundos depois, chegou ao local e encontrou uma mansão demolida. Era possível perceber que enorme terreno anteriormente era composto por um belo jardim e algumas construções avulsas. "É aqui". Olhando ao redor, buscou por algum sinal visível ou audível pelos arredores. "Deve estar no meio dos escombros". Ela inspirou e expirou, respirando Energia de Conhecimento e focando-a nos olhos.
Alguns segundos se passaram e, por instinto, sentiu algo errado. Suas pupilas, antes verdes, tornaram-se violeta com uma quase invisível lua minguante prateada no centro.
Movimentando-se graciosamente, a prana violeta saiu de cada parte do corpo. Para ela, a sensação de controle era tão natural quanto respirar. Soprando suavemente, fez o manto que usava queimar e, ao mesmo tempo, revelar uma jovem mulher de pele clara, longos cabelos cacheados que estavam semipresos com franja solta, e corpo tipo ampulheta. Ficara óbvio que a jovem era uma Luna pela palidez da pele.
Suas pupilas se moveram freneticamente dentre as centenas de metros de escombros. No meio disso, parou um instante, sua mente confusa e não importa o que fizesse, não havia sentido. Ela ficou nervosa porque não estava entendendo a si mesma e nem a importância que estava dando a essa vida que sequer conhecia.
"O que infernos eu comi hoje cedo para estar agindo assim? Até mesmo parei minha missão para procurar algo que nem sei o que é..." Respirando fundo, parou, quando um raio de iluminação apareceu. Em um lampejo, ganhou esclarecimento.
"|| Implementação ||!" Sua intuição lhe dizia que estava sendo usada mediante uso de magia, o que a deixou levemente aterrorizada, pois mesmo "sabendo" que estava sob efeito de magia psíquica, não tinha ideia de como ou quando começou.
Isso a fez pôr em cheque se realmente era a verdade. Não conseguiu focar, pois diversos pensamentos a invadiram.
"Preciso achá-lo!"
Desde quando uma vida importa assim?
"Não posso perdê-lo!"
Por que sinto que, se perdê-la, será algo inigualável?
"A dor da solidão de não o ter!"''
Por que sinto essa dor?
Inundada de pensamentos confusos e loucos para sua personalidade, sentiu como se não fosse mais a mesma. Qual o motivo? Não conseguia afirmar nada. Quanto mais pensava, mais distante ficava da solução. Quanto mais se negava, mais seu corpo sentia o impacto.
Pondo a mão na cabeça, parecia que estava prestes a explodir. Dores a inundaram de ponta a ponta, a fazendo querer gritar. Quanto mais pensava e tentava entender, mais a sensação tornava-se insustentável. E na medida que demonstrava a intenção de ficar parada, essa força se intensificava. Ela ironizou: "Estou sendo controlada e, do jeito que as coisas estão, é impossível analisar essa magia antes que eu tenha um colapso."
"Quanto tempo faz desde que caí em um truque tão simples?"
"Não tem o que fazer. Vou tentar achar o que quer que seja"
Respirando fundo, controlou-se e, semicerrando os olhos, focou tudo que tinha para achar esse ser, mesmo que odiasse ser controlada. Ainda com os círculos mágicos nas plantas dos pés, se movimentou – dessa vez, mais devagar – por entre os escombros.
Perceptiva, não demorou até rastrear um sinal de vida bem no centro da cidade, debaixo de muitas pilhas de paredes destruídas e deformidades terrestres. "Tem... uma criança... ali embaixo?" Boquiaberta, não pensou duas vezes. Estendendo a mão direita, sussurrou: || Toque do Dominador ||
Partindo do coração, onde fica o seu Núcleo Mágico, uma prana translúcida irradiou, misturando-se com a prana violeta já presente. Um círculo mágico extremamente simples fora formado pela prana branca e começou a ressoar com as pedras ao redor por telecinesia.
Percebendo que o sinal de vida estava ficando cada vez mais fraco, movimentou os braços algumas vezes. O círculo mágico, que não acompanhara os movimentos da jovem, mas sim, permaneceu parado no ar a sua frente, começou a brilhar mais forte.
Não demorou nem um minuto para que terminasse de retirar todo o entulho a uma distância de dez metros em torno do sinal, revelando um pequeno ser enrolado em uma coberta manchada de sangue – sangue azul. Dentro da coberta, viu um garoto Luna com a respiração muito fraca.
O rosto, manchado de sangue e cicatrizes, era quase irreconhecível. Ela tinha uma posição de governança direta em relação aos plebeus, por isso, mantinha uma memória fotográfica muito boa. Ainda assim, não sabia se já tinha visto o jovem dentro dos reinos sulistas dominados pelos Luna e nem como o garoto chegara naquela região.
Saltando, dispersou o || Toque do Dominador || e chegou na frente do garoto, invocando automaticamente uma prana prateada, conhecida como Prana Lunar. Concentrando a prana e fundindo-a com a Energia do Conhecimento nos dedos médio e indicador da mão esquerda, tocou no pulso da criança. Com um pensamento, transmitiu essa energia ao garoto. Ao mesmo tempo, ajustou as condições do fluxo de energia dele e conjurou mentalmente: — || Benção do Luar ||
Na ponta dos seus dedos, um círculo mágico pequeno de cor prateada foi formado em cerca de dez segundos. Caso não estivesse no processo de infusão de prana para Aylin, ela faria tal magia instantaneamente. Preferiu ser cautelosa para não errar com o sensível fluxo de prana dele. Concentrando a prana, utilizou os dois conceitos de energia de existência – Conhecimento e Morte – com os tipos de prana conjuradas anteriormente, criando o conceito de cura.
Terminado o círculo mágico, a lua no centro da redoma ressoou com a pequena lua em suas pupilas, criando um efeito de vida. Uma energia tão bela quanto a luz do luar foi derramada no corpo do garoto como se fossem pequenas estrelas. Cada gota de energia o invadia diretamente, regenerando suas feridas, independentemente da gravidade.
Depois de alguns minutos, quando percebera que as condições do garoto melhoraram, notou que as dores e ansiedade que sentira desapareceram instantaneamente. Apesar de irritada por ter sido evidentemente controlada, seguiu o protocolo de resgate por ser um luna, a fazendo ter um afeto igual ao que oferecia para seus cidadãos. Pegando um bloco de notas, fez algumas anotações com a mão esquerda para o relatório.
"Um jovem Luna, entre quatro e cinco anos, olhos violeta, descendência Naelyan ou Lykian, quase morto. Localizado na Cidade do Dragão Azul a centenas de quilômetros do Reino Sulista mais próximo."
"Possivelmente alguém da família real. Sem despertares. Possivelmente uma característica de canais e circuitos mágicos divinos."
Guardando o bloco de notas, suspirou, questionando se tomou a decisão certa. No meio disso, ela percebeu que de alguma forma, não havia mais ninguém controlando-a, tornando assim, a decisão de levá-lo consigo algo próprio.
Isso não melhorou seu humor, mas, a deixou aliviada. Refletiu por alguns segundos antes de decidir levá-lo. "A princesa não aprovaria abandonar alguém." Ela sorriu ao olhar a criança. "Talvez, ela fique feliz?" Encarando-o, lembrou de alguém que abandonara.
"Como ele está? Deveria ter me despedido..."
Finalizando a magia, carregou a criança com cuidado em seu colo. Aliviada, sorriu. Quando estava prestes a voar para longe do local, sentiu um tremor vindo do pequeno. "Está acordando..." Ela fez uma pausa. O garoto abriu os olhou com dificuldade e a encarou. "As semelhanças estão em qualquer lugar..." Devolvendo o olhar, o tempo lhes deu tempo para mostrar a garota que existia alguém dentro de um vazio.
Ambos não falaram nada. Essa cena seria estragada se houvessem palavras.
Ela acenou positivamente e, como se tivesse entendido, o garoto fechou os olhos, aninhando-se instintivamente no colo da garota. Sorriu involuntariamente. "Então, não está tudo perdido?"
Com um leve impulso, saltou e disse: || Voo Criocinético ||
Uma prana azul acinzentada exalou de seu corpo, criando um círculo mágico complexo de três camadas em suas costas, dos quais surgiram belas e encantadoras asas de gelo cristalino. Em um impulso, foi em direção aos céus, desaparecendo como uma estrela no imenso céu.
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Ano 0000 da Era dos Reinos Combatentes.
O lugar era pequeno e silencioso. Vendo pela primeira vez, era completamente impensável que houvesse alguma maneira de passar mais do que meia hora dentro sem enlouquecer. Era apertado – e estranhamente silencioso. Ao estar dentro, não seria exagero dizer que dava para escutar os próprios batimentos cardíacos com clareza.
As paredes, completamente negras, complementavam o sentimento de desolação e solidão exalados com tanta força, obrigando qualquer uma loucura e depravação. De forma alguma era imaginável a sobrevivência naquele local.
Mas, nem sempre a realidade faz sentido ou é a mais gentil.
Havia alguém morando ali. Um homem com um giz. Portava roupas simples e aparentemente novas. Eram brancas, contrastando com a sala e, além do giz, era a única coisa que o lembrava da própria existência.
No início, pensara em sair – não conseguia. Depois, começara a anotar e escrever tudo sobre todas as coisas que conhecia. De certa forma, esse giz era seu único alicerce a realidade. Pensara nele tão bem – ou até mais – do que nas roupas.
Ele tinha esquecido o porquê de usar roupas de qualquer modo.
De que serviria existir se não puder agir? Bem, a resposta não importa.
Olhou para as paredes diversas vezes. Com afinco, mesmo que não conseguisse enxergar por causa da escuridão, procurava lugares aos quais não havia rabiscado – não encontrara. Não havia um espaço sequer sem o traço daquele giz branco.
Arregalou os olhos forçosamente, ignorando as remelas e marcas de sangue endurecido nos cantos, as olheiras profundas abaixo e as rugas da idade ao redor. Caminhando igual a um símio, foi até um dos cantos. Não conseguia controlar a própria saliva. Olhou para o giz na mão e abriu a boca algumas vezes – nenhum som saiu.
Quanto tempo? Ele já não contava mais – e não havia ninguém para informá-lo. O que tanto escrevia? Ele já não se importava. Parentes? Amigos? De que importava? Nunca viu um rosto familiar durante o tempo.
O que é o tempo?
De qualquer forma, não é como se importasse. Sorriu e continuou escrevendo. E escrevendo. E escrevendo; parou.
Escutara um som. Além dos seus batimentos cardíacos e o som do giz, este era o único som que existia neste mundo negro. Era o som de barras de ferro. O som não trazia luz consigo e, mesmo que esse lugar tivesse algo parecido com uma porta, há muito se esquecera o que é uma porta, ou uma saída.
O que seria uma saída?
Outro instante se passou, e viu um objeto prateado do seu lado. O som desaparecera. Pegando, o encarou e, assustado, viu o próprio reflexo.
Envelhecera. A barba e os cabelos, os quais nunca mantinha longos, tinham metros de comprimento. Se passara tanto tempo? O que é o tempo?
O sorriso em seu rosto era macabro. Ele gritou – nenhum som saiu. Derrubou o giz e jogou-se no chão, encolhendo-se em posição fetal. As lágrimas escorreram — Nenhum som saiu. Os cortes no rosto e pescoço tornaram-se evidentes. Não era importante. Estava manchado.
Como todos os outros dias, sentira vontade de morrer, mas...
O que é a vida? Ele ainda estava vivo?
Ele esteve vivo?
Gritou – e nenhum som saiu.