As ruas da Cova Dois estavam abarrotadas de pedestres que caminhavam depressa pelas ruas e avenidas da cidade que não parecia nunca dormir. Nahara foi mandada para o lugar investigar o estranho desaparecimento de um número cada vez maior de pessoas, algo que a fez estranhar em um primeiro momento, afinal a cidade possuía cinco Ninhos.
Nahara era uma Corva da Cova Trinta, e fora mandada para uma cidade que não era a sua na missão que se encontrava. A cidade possuía cinco Ninhos, que eram as bases dos Corvos, e lá estava ela, uma forasteira, tentando resolver os problemas dos outros Corvos.
Postes iluminados por lâmpadas flanqueavam a rua em intervalo de quinze metros de um para o outro, geradores os mantinham acessos. E este era um outro diferencial e motivo para a Cova nunca dormir. Em todas as outras quarenta e oito cidades espalhadas somente o Bunker junto a Cova um que cresceu a sua volta, e aquela tinha esta regalia, os Ninhos também possuem, mas nada em tal magnitude. O lugar era responsável pelo combustível enviado para o Bunker, onde navios atracavam e saíam dos portos a cada quinzena.
Nahara ficou atrás de um casal que andava em uma velocidade frustrante a sua frente, obrigando a se espremer por entre um grupo de pessoas para tomar a frente, enviando a eles um olhar irritado, mas foi completamente ignorada pelos dois que estavam entretidos com seus namoricos. Junto ao grupo de pessoas, ela chegou a uma encruzilhada virando a sua direita adentrando em uma rua maior do que a que estava a pouco.
Um vendedor estava no meio da rua em cima de uma caixa de madeira gritando os preços de seus produtos a plenos pulmões, Nahara passou os olhos pelas construções que foram grandes arranha-céus. Toda a Cova fora a centenas de anos uma das metrópoles dos Antigos, antes deles fazerem o feito de sem matarem na Terceira Guerra dos Antigos. Mesmo boa parte das construções estarem em estado decadente, ou simplesmente desabado com o passar do tempo, os habitantes da cidade fizeram o máximo para reconstruir as construções.
Pelo canto dos olhos ela viu um beco estreito entre duas casas, o lugar era escuro onde algumas figuras pareciam conversar encobertas pela sombra, mesmo com o grande número de Corvos a cidade ainda tinha seu lado obscuro igual a todas as outras.
A brisa marítima trouxe ao nariz da Corva o cheiro salgado do mar, junto ao cheiro de peixe que vinha do mercado à beira mar. No começo o cheiro deixava Nahara um pouco enjoada, mas com o passar dos dias foi se acostumando, agora só o sentia quando lembrava de sua existência.
Teve vários problemas quando chegou, como ela e sua parceira Ana estavam disfarçadas não usavam os trajes negro padrões dos Corvos, ou o anel da mesma cor em seu dedo indicador, trajando apenas roupas marrons simples. Inicialmente sempre que sentia alguma coisa perto de sua cintura levava suas mãos na mesma hora para a faca escondida sob a camisa, e quando finalmente perdeu essa mania acabou sendo roubada, um acontecimento que Ana não a deixava esquecer.
Finalmente chegou à praça onde ficava o bar que combinou se encontrar com Ana. Cinco Corvos cuidavam da praça impedindo assim de qualquer briga começar. Uma árvore colossal crescia no centro do local com vários bancos espalhados à volta do tronco para os passantes se sentarem. Do outro lado da rua, em uma das muitas esquinas que acabavam na praça, viu o Bar Lagosta, uma casa dos Antigos que fora reformada diversas vezes, logo acima da porta uma lagosta segurando um copo de bebida piscava em neon vermelho. Foi até o lugar precisando se esquivar de um homem que saia do local claramente alcoolizado, falando para ela algo que na cabeça dele seria um elogio a sua bunda.
Nahara somente ignorou o comentário do outro, abrindo assim a porta dupla do bar sendo atingida por um misto de cheiros, peixe frito, vômito, álcool, suor e outros que não sabia distinguir. Todos pararam por um breve instante analisando a recém-chegada voltando assim às suas conversas ou jogos de baralho ao perceberem que ela não representava perigo imediato. Caminhou rapidamente pelo chão de concreto, desviando das mesas de ferro onde uma mulher comia de forma quase desesperado um peixe frito, e por outra onde um grupo de pescadores pareciam prestes a sair no soco por um jogo de cartas. Viu o barman atrás de um longo balcão de madeira que parecia indiferente a tudo o que acontecia à sua volta. Ela se debruçou sobre a madeira velha do móvel chamando a atenção do homem para si, que abriu um sorriso profissional indo atendê-la.
— O que deseja? — indagou o homem que se debruçou de volta para ela deixando seus rostos muito próximos.
— Pode ser um destilado com limão
Sem perder tempo, o barman tira um copo de baixo do balcão colocando sobre a mesa, e logo na sequência uma garrafa meio cheia por um líquido transparente. Enchendo até a metade do copo para colocando um limão cortado em rodela, e termina de encher. Falando.
— Uma moeda pra moça bonita.
— Uma moeda? — indagou Nahara inconformada pelo preço exorbitante — Com isto eu compro qualquer fruta.
— Ou uma moeda — Retrucou o homem sem perder o sorriso profissional e levando uma das mãos ao copo. — Ou fica sem beber.
Resmungando para si mesma Nahara pega uma das moedas em sua bolsa a jogando no balcão, indiferente a este gesto ele aceita o pagamento passando assim o copo para a jovem que sai bebericando o líquido que desceu queimando. Havia pegado gosto pela bebida.
Procurou Ana pelo bar, precisando desviar de quatro pessoas que levantaram de supetão em suas mesas rindo ou prestes a brigar, as ignorando voltou a procurar sua parceira a achando por fim. Escondida no fundo do aposento, Ana estava sentada sozinha em uma mesa com somente duas cadeiras, havia um copo sobre a mesa em que a Corva deslizava os dedos pela borda perdida em pensamentos.
— Desculpe a demora — falou Nahara puxando a cadeira vazia se sentando.
— Demorou bastante hoje hein — respondeu Ana um pouco irritada pela longa espera.
— Ana, você sabe muito bem como é complicado andar por esta cidade à noite — não que de dia fosse muito melhor, mas resolveu não falar nada. — O que está bebendo? — perguntou tentando mudar de assunto.
— Destilado de ameixa, mas não gostei muito não — Ana então percebeu o que a outra estava tentando fazer. — Não venha mudar de assunto.
Uma garrafa quebrou seguindo pelo som de risos escandalosos, mas ninguém pareceu se importar tirando os envolvidos.
— Ok, não consegui nada, estava andando para ver se daria sorte de ver alguma coisa fora do normal, mas nada.
Nahara se sentia mal por isto, estava na cidade a dois meses e parecia que acabaram de chegar, nenhum avanço nas investigações, enquanto o número de desaparecidos aumentava quase que diariamente.
Ana se arrumou na cadeira colocando ambas as mãos sobre a mesa enquanto tamborilava os dedos de forma sistemática, um sorriso satisfeito nasceu em seus lábios.
— Achou alguma coisa? — Indagou Nahara cheia de esperanças, e vendo a outra concordar com a cabeça, prossegue. — Como? O'Que?
— Não vou mentir, foi pura sorte, mas cedo estava em um dos becos atrás de algo quando me deparei com um grupo de crianças.
— Até aí normal, a cidade está cheia delas.
— Pensei o mesmo, mas avia algo estranho ali, elas estavam apavoradas — Ana passou a mão pelos cabelos negros — Como se com medo da própria sombra.
Aquela informação deixou Nahara incomodada, conheceu muitas crianças de rua em seus dois meses na Cova, e para uma delas sobreviver era preciso ser valente ou morreriam de fome ou coisas piores poderiam acontecer a ela, aguardou a companheira continuar o relato.
— Fui falar com elas, afinal achei aquilo estranho, em pleno dia aquelas pessoas encolhidas e apavoradas em um beco — bebeu um pequeno gole do líquido vermelho fazendo uma careta, continua. — Conversei com eles, e me disseram que um grupo estranho veio na noite anterior pegando vários deles.
— Espera um pouco — interrompeu Nahara olhando com desconfiança. — Não vai me dizer que acreditou em tudo o que elas disseram? Ana estas crianças fazem qualquer coisa para enganar alguém.
— Realmente fiquei em um primeiro momento desconfiada, afinal lembrei do seu incidente do roubo.
Nahara fechou a cara para sua colega que parecia se divertir com as lembranças, mas voltou a sua história rapidamente.
— O terror era real, eu já vi muitas pessoas aterrorizadas em minha vida, e posso te garantir isto, era verdadeiro, o fato é que tinha um adulto entre eles, e falei para ele vir a este bar hoje conversar conosco.
A outra se arrumou de forma involuntária na cadeira, varrendo todo o lugar com os olhos no mesmo instante, tomou um longo gole de sua bebida abaixando o copo quase vazio na sequência.
— Estas coisas são ditas logo de cara Ana — falou Nahara olhando com desaprovação para a parceira.
— Mas não disse a melhor parte ainda!
— Vai me dizer que quem procuramos simplesmente vai entrar pela porta e se entregar para a gente?
— Não é pra tanto também, as crianças me contaram que escutaram diversas vezes a palavra Doutor, se referindo a alguém que parecia se identificar assim.
— Doutor — sussurrou Nahara para si.
Ana percebeu um garoto com doze anos pegar uma bandeja cheia de destilados com cores diferentes, e levar sob uma bandeja de ferro com cuidado para a mesa que estava sentado junto a seus amigos da mesma idade. Um homem sai por uma porta ao lado do bar com uma bandeja que soltava fumaça, os sons de panelas e xingamentos que vieram pela entrada que a porta guardava faz a jovem perceber ser a cozinha do bar. Com facilidade o homem com seus trinta anos vai até sua mesa depositando o prato a frente da Corva.
— Suas algas do mar fritas senhora.
— Muito obrigada — respondeu Ana surpresa com a educação do atendente que voltou a cozinha logo em seguida.
As algas foram empanadas e fritas, deixando-as durinhas e crocantes quanto mordidas, sem perder tempo Ana levou uma a boca mastigando o alimento crocante com gosto. Nahara somente observou a outra, não entendia o que sua parceira viu naquele alimento, mas não podia falar nada fazia o mesmo com destilado com limão.
— Quer um pouco? — perguntou Ana com a boca cheia.
— Não — respondeu Nahara, e continuou. — Sobre este Doutor, o que mais conseguiu?
— Nada — constatou a Corva com um pouco de vergonha. — Mas acredito que o meu contato possa falar mais.
Nahara se virou vendo um homem estranho e maltrapido entrar, desta vez ninguém realmente pareceu se importar enquanto ele claramente procurava alguma coisa. Ana levanta o braço chamando atenção do recém-chegado para si.
— É ele? — indagou Nahara.
— Sim — respondeu a outra entre dentes, pois ele veio quase que correndo até a mesa. — Estava começando a achar que não iria mais vir.
— Como posso saber se é realmente uma Corva? — questionou o outro ignorando totalmente que fora dito.
Respirando fundo, Ana ignorou os olhares frios da parceira a sua frente, pegando o seu anel que estava escondido em um dos bolsos e mostrando quase ao outro.
— Por que não falou com os Corvos de qualquer um dos Ninhos da cidade sobre isso? — Quis saber Nahara.
— Quem é esta? — perguntou ele ignorando totalmente a pergunta.
— Minha parceira — respondeu Ana.
— Outra Corva — as feições dele chegaram a ficar mais aliviadas.
— Então? — voltou a pressionar Nahara.
— Não confio nos Corvos da cidade, ninguém confia.
Aquilo deixou uma sensação desagradável no estômago da mulher, mesmo não gostando deles os Corvos eram algo que muitas pessoas se agarravam para se sentirem seguras, não foi fácil ouvir aquilo.
— Pode contar o que aconteceu ontem? — perguntou Ana parecendo indiferente ao comentário.
— Estava com as crianças ontem à noite, quando quatro homens apareceram pegando alguns dos garotos, conversavam sempre com um mais distante. Tentei ver seu rosto, mas estava usando uma máscara branca e tampava os cabelos com uma touca cinza, mesmo assim era óbvio que era o líder pela estranha roupa branca que usava.
— O Doutor — falou Ana para si mesma entender o porquê tinha este nome.
— Tentei ajudar, mas aquelas coisas simplesmente me fizeram congelar onde eu estava.
— Como assim, coisas? — falou Nahara aproveitando a brecha que ele deu.
— Não eram humanos — percebeu os olhares que recebeu, completando — Sei que parece loucura, mas era como se ferro nascesse direto da carne de cada um. Tubos, canos, e placas de ferro.
Nahara não quis falar nada, ela sabia muito bem que quando alguém estava aterrorizado via coisas que não existiam, uma pessoa segurando um cano podia se transformar em um monstro. Ana parecia pensar o mesmo.
— Quando criei coragem os segui — ele parecia prestes a chorar. — No beco atrás da pensão Favo, existe uma porta escondida na parede contrária à rua.
Sentindo a empolgação voltar a seu corpo, Nahara queria perguntar mais coisas ao homem, quando ele se abaixou e falou sério com elas.
— Por favor, salve as crianças! — com esta súplica ele sai sem esperar por nenhuma resposta.
Segundos pareceram horas, e mesmo com toda a gritaria e sons das mesas e cadeiras quando eram arrastadas parecia para Ana estar em um mundo sem som, foi digerindo a informação que acabou de receber, realmente era um grupo como ela já suspeitava, e tinha o lugar que seria a base do inimigo mesmo que temporária. Não havia o porquê de esperar.
— Vão ser muitos provavelmente — falou a Corva para Nahara.
— Sim, está na hora de acabar com isso! — falou Nahara se levantando decidida, indo até o bar pedindo um novo destilado com limão.
— Outro?
— Sinto que preciso de algo forte, esta noite promete. — Virou o copo de uma única vez, saindo do bar com Ana para junto da multidão.