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O segredo dos deuses

No cenário das ilusões, amparados por sua posição, os deuses festejam, altivos e glamourosos, alheios aos anseios que as aflições cotidianas sugerem do lado de fora. Virando o cálice da vaidade, saboreiam privilégios que parecem lhes garantir o futuro tanto quanto o presente, pois no regaço dos notáveis reclinam os que fascinam a terra com seus artifícios e recursos desejáveis. Entram pelas casas, atraem olhares e cativam os corações, embriagam-se de orgias, alimentam-se de fama, e na sua habitação arrebatam riquezas e devoção. Quem se compara a eles? Poderosos com seus atributos e notáveis em seus feitos, reinam marcando gerações e deixando como herança suas biografias fabulosas.

Levantou-se então, insaciável e desejável, a deusa da luxúria, contemplou-se no espelho e despiu-se, deslumbrou-se, pois fez-se admirável conseguindo seduzir até o mais devoto dos puritanos.

— Quem é semelhante a mim? Pois com tamanha generosidade dou aos mortais a minha porção, enquanto veneram-me com o desespero de suas almas. Mais desejáveis do que o triunfo da espada são as delícias dos meus beijos, mais atraentes do que o reluzir de muitas joias são o volume dos meus seios e a visão das minhas ancas — enquanto acariciava o próprio corpo, entre suspiros e gemidos, gabava-se deleitosa, a deusa da luxúria.

— Bem sei que és fascinação, e que nenhum dos teus amantes te pode resistir; mas após os teus orgasmos, o teu encanto se quebra, e já não se importam mais; indo-se o vigor, o teu prazer já não faz sentido para eles, pois o teu deleite nada mais é do que um momento e uma transgressão. Quanto a mim, serei imortalizado pelas minhas obras, as gerações farão menção e trarão suas emoções como oferta em adoração. Portanto, quem é semelhante a mim? — em resposta às palavras da deusa, falou o senhor das artes, após virar uma taça na qual bebia o néctar que escorria pelos cantos da boca.

— Ora, é razoável essa tua reivindicação? Por que eleva tanto o teu coração, e de tal maneira se exalta, a ponto de te fazer acreditar que podes resistir ao tempo? Olhe para mim, veja a força do meu punho e a precisão da minha espada, eu crio a fúria dos mares ao abanar as mãos, e agitando as águas aterrorizo as embarcações. Terríveis são os meus feitos, de sorte que até os deuses sentem receio diante de mim, enquanto os corações dos homens desfalecem diante da incitação da guerra. As nações estremecem e os poderosos me pagam tributo, oferecem a mim suas vítimas e atribuem a mim toda a glória do combate. Ora, pois, quem é semelhante a mim? — exaltou-se o deus da guerra, arremessando com ímpeto o banquete à sua frente, após levantar-se do seu lugar, em resposta às palavras do senhor das artes.

— Por que te glorias na matança? Acaso não é a tua fúria como uma prisão? Ora, que proveito há para ti cuja recompensa é apenas contemplar o triunfo da morte? Os teus adoradores se encerram convencidos de que tu nada mais é do que um soldado a serviço da morte. Quanto a mim, mais desejável sou do que as entradas da luxúria; e quando alcançam as minhas dádivas, os homens desprezam a ti e não fazem caso dos feitos do senhor das artes. Ora, pois, quem é semelhante a mim? — em resposta ao deus da guerra, disse o deus das riquezas, bocejando após despertar sobre uma cama forrada por finos tecidos, adornada com detalhes em ouro, pérolas e pedras preciosas.

— Por que dizes tal coisa? Ora, tuas palavras não passam de presunção! Volte para o teu sono, isso te será mais proveitoso — disse o deus da guerra.

— Perdoe-me se o aborreci, não tive a intenção. Tu és magnífico no combate e a tua espada proporciona memoráveis espetáculos, mas aceite o fato de que não podes ser comparado a mim — esnobe, apreciando suas joias, reforçou seu discurso, o deus das riquezas.

— Não digas tal coisa, e saiba que a ninguém eu sirvo além de mim mesmo, saiba que a morte é obra das minhas mãos. Ora, não vê que eu sou mais poderoso do que tu? Tu deverias temer diante de mim e ser grato por eu ter paz contigo; pois agindo eu, as tuas dádivas deixam de fazer sentido.

— Senhores, tal demanda não é razoável. Pois bem sabemos que somos todos necessários aqui, cada um tem a sua função, e estejam certos de que nossa sobrevivência depende de uma convivência harmoniosa. Pois nem mesmo eu, o maior de todos, me ponho a deprecia-los — disse o senhor das artes.

— O que é isso que estás a dizer? Quem foi que te elegeu o maior entre nós? — perguntou indignado, o deus da guerra.

— Exatamente! Ora, ninguém te elevou acima de nós, e nenhum de nós te constituiu o maior. E desde quando deuses precisam sobreviver?! Ora, pois, somos eternos, e até mesmo os mortais fazem questão de preservar nossa memória através das eras — disse o deus das riquezas.

— Não pensem que eu estou a vos depreciar; pelo contrário, quero que saibam que reconheço a excelência de vossa existência. Somos carismáticos, somos dotados de dons que fazem com que os seres comuns atentem para nós e admitam nossa superioridade como imortais, mas sobre nenhum de vós há tantos aplausos e expectativas quanto há sobre as minhas obras — concluiu o senhor das artes.

— Quanta soberba, quanta presunção! E tudo isso só por causa de alguns talentos? Ora, poupe-me — rebateu o deus das riquezas.

— Não há espetáculo semelhante ao que minha espada proporciona. Já se esqueceram do dia do grande massacre no oriente? Ah, foi memorável. — Suspirou o deus da guerra, fechando os olhos, erguendo sua espada.

— Um dia de horror e lástima, nada mais — rebateu o senhor das artes.

— O quê? Como te atreves a depreciar-me? Ora, aquele foi um dia memorável. Foi poético, foi sublime; as mulheres choravam por seus filhos e lamentavam por seus maridos, os fracos tombavam desonrados recebendo a retribuição por sua existência inútil, não me importei com o pranto dos pequeninos nem atentei para o apelo das grávidas, e naquele dia até os poderosos se molharam com medo diante da minha face — disse o deus da guerra, sobremaneira exaltado.

— A tua espada proporciona um espetáculo admirável, tenho que admitir. Mas, por que lutam os homens? Não é para enaltecer a morte nem para encher de sangue o seu cântaro, mas pela cobiça que as minhas dádivas despertam em seus corações. Logo, eu sou dentre todos o mais excelente — falou o deus das riquezas.

— E quanto a ti, não dirás nada? Vamos, manifesta-te — falou o deus da guerra, voltando-se para a deusa da luxúria.

— Ah ah ah ah ah ah ah, me divertem com suas questões... e às vezes até me excitam com sua magnificência aliada à imaturidade — respondeu com ironia.

— Estás a zombar de nós? Com qual intuito tu dizes tal coisa? — após esmurrar uma coluna, questionou o deus da guerra, visivelmente irritado.

— Não me coloquem em suas questões, pois não tenho tempo para futilidades. E por que perdem seu tempo com isso? Pois não é implícito o fato de que tenho todos vós aos meus pés, e todos sabem que eu não preciso fazer esforço algum, não preciso fazer nada além de guiar os homens pelas vias do amor. Ora, sendo assim, faz-se desnecessária tal discussão — disse a deusa, enquanto se perfumava, após se vestir.

— Ora, eu sou cobiçado e admirado em todos os lugares, sou desejado até mesmo entre os deuses. Por minha causa os homens matam, por minha causa homens e deuses são capazes de romperem laços e venderem as próprias almas. Então, quem és tu para dizer que estou aos teus pés? Ora, pois, poupem-se de tais esforços — exaltou-se o deus das riquezas.

— Queixas, queixas e mais queixas... ah, me poupem, vejam que os fatos falam por si — disse a deusa.

— Tens os teus encantos, devo admitir, pois por ti se desesperam as almas dos homens e os mortais ofertam seus corpos embriagados de volúpia. Vós todos sois admiráveis com seus atributos e não pouco desejáveis são as suas obras, mas nada tão magnífico quanto o ímpeto da guerra, portanto ninguém há que possa me superar, ninguém há que me possa resistir — falava ainda o deus da guerra, quando houve um tremor seguido por um rugido sobremaneira assustador, um rugido que encheu toda a atmosfera trazendo grande temor aos corações dos deuses.

A deusa da luxúria esmoreceu, e por um momento as paixões e todo o prazer que ela proporciona deixaram de fazer sentido; o senhor das artes deixou sua arrogância e procurou um lugar para se esconder; o deus da guerra desfez-se de seus braceletes (símbolos de sua imponência), jogou para o lado a sua espada e não escondeu o medo que sentia, em seguida prostrou-se como quem implora misericórdia; o deus das riquezas desfez-se de seus adereços e se escondeu debaixo da cama. Mas o que seria isso? O que poderia haver assim tão assombroso que seria capaz de atormentar de tal maneira os deuses?

Na habitação dos deuses há um calabouço, e dentro do calabouço há um poço, um poço profundo e escuro cuja extensão lembra um abismo, uma prisão que mantém uma criatura deveras assustadora, conhecida como o horror dos deuses. Uma criatura cuja face os deuses não podem suportar, permanece contida por grilhões e grades de ferro, guardada como um segredo devastador que de tempos em tempos se manifesta ameaçando sua estabilidade, um ser capaz de desconstruir tudo o que representam e reduzir a nada suas convicções, Verdade é o seu nome. Eles sabem que um dia ela conseguirá escapar pondo a perder todo o esforço que fizeram para contê-la, e não há nenhuma garantia de como lidar com isso, pois está pronta para esmagar sua gabarolice e pisar com desprezo sobre o roteiro de suas virtudes. Eles sabem que não podem prevalecer em um confronto com a criatura, pois se mostrará indomável tanto quanto implacável na execução do seu intento, e o seu intento é mostrar que suas obras não passam de fábulas descartáveis, e que nada são além de pó que o tempo a de soprar conduzindo ao esquecimento.