Luiz respirou fundo antes de começar a explicar, o olhar ainda distante, como se revivesse cada detalhe.
— Eu tentei influenciá-los durante as negociações. Entrei na mente de Niala, achei que poderia direcionar as decisões dela para que a aliança fosse favorável a nós.
— Ótimo, fodam-se as orientações, né?
— É que…
— Só continue — riu Ana, balançando a mão da forma que podia.
— Certo… Eu tentei influenciá-los durante as negociações. Mas eles têm uma mente coletiva. Não é como invadir uma pessoa, é como lidar com centenas, talvez milhares, de consciências ao mesmo tempo. Fui capturado antes de sequer entender o que estava acontecendo.
Ana o ouviu, seus olhos afiados fixos em Luiz, mas havia algo mais ali: uma frieza que acompanhava a curiosidade.
— E os outros emissários? — perguntou, direta.
O semblante de Luiz obscureceu e ele hesitou, os lábios se apertando em uma linha fina. Quando finalmente falou, sua voz era um sussurro carregado de culpa.
— Foram destruídos...
Ana suspirou, desviando o olhar para o chão por um momento.
— Que merda... — murmurou, sentindo o peso da perda. Mas não havia luto em seu tom, apenas a constatação sem emoção de uma falha.
Ela voltou os olhos para Niala, que ainda estava caída no chão, seu corpo de aranha encolhido e imóvel.
— Mente coletiva, você disse? — apontou para a rainha inseto com um movimento da cabeça. — Esse é o motivo dela estar nesse estado?
Luiz assentiu, a preocupação evidente em seu rosto.
— Sim. A colônia está em caos. O desespero do povo a afeta diretamente. Eles são como um organismo só, e quando a colônia sente dor, ela também sente, como se estivessem arrancando pedaços de sua existência.
Ana ouviu e, inesperadamente, começou a gargalhar. O som era áspero, quase cruel, como se ela encontrasse uma ironia mórbida na situação.
— Se fodeu! — disse, ainda rindo, enquanto se ajeitava na parede, arrastando as costas lentamente até encontrar uma posição menos desconfortável.
Ela respirou fundo e se virou novamente para Luiz, o sorriso sarcástico ainda estampado no rosto.
— Achei que você estivesse preso... ou morto. Mas quem diria que você tem a porra da síndrome de Estocolmo. Como chegou nisso?
Luiz desviou o olhar, envergonhado.
— No começo, eu realmente fui tratado como prisioneiro. Trancado, vigiado o tempo todo. Mas... com o tempo, as coisas mudaram. A rainha Niala, em meio ao tédio diário, começou a se interessar em mim — o homem riu fracamente, como se a ideia ainda fosse estranha para ele. — Ela nunca tinha visto uma pessoa com veias mutadas pessoalmente, parece que nem mesmo leitores nasceram em Myrmeceum. Era uma novidade para ela.
— Ah, então o pobre Luiz criou uma amizade com a rainha após essas reuniões do chá? — provocou a mercenária, sua voz carregada de ironia.
O homem balançou a cabeça, um sorriso amargo se formando.
— Não foi exatamente assim — ele deu de ombros. — Não que... não tenhamos uma amizade hoje em dia. Mas, no começo, era algo de benefício mútuo. Ela me chamava com frequência, mas não era apenas por gentileza ou curiosidade. Era porque a vida dela é... um inferno constante.
Ana arqueou as sobrancelhas, genuinamente intrigada. Luiz continuou, o tom da voz mais grave.
— Niala recebe sinais mentais da colônia o tempo todo, sem descanso, vinte quatro horas por dia. Não importa se ela está acordada ou dormindo, os sinais continuam. Não há silêncio, não há paz. — ele fez uma pausa, fazendo um pequeno gesto acima da cabeça com dois dedos para indicar as antenas. — Ela não entende por que isso começou depois de ter se tornado uma corrompida, mas aceitou a responsabilidade de orientar a colônia. Enfim, tenta ser uma boa rainha, mesmo com a carga absurda que isso traz.
— Se a culpa é das antenas, não basta arrancá-las?
— Talvez sim, mas tornaria a vida muito menos prática, são o tipo de gente que nunca aceitaria fazer isso….
— Uma rainha presa pelas próprias emoções do povo. É idiota.
— Felizmente, não é sempre assim. O povo inseto não é como nós, humanos puros. Eles sentem, mas de maneira... diferente. São emoções mais simples, a maior parte do tempo os pensamentos giram em melhorar a colônia, sem distrações. Mas quando algo os afeta, é intenso. Situações como a de hoje se transformam em uma tortura mental pra rainha. É por isso que ela... — o mentalista pareceu travar levemente, escolhendo as palavras com cuidado — Se tornou alcoólatra… A bebida nubla um pouco os sinais, entorpecendo a mente. Não é uma solução perfeita, mas é a única maneira que ela encontrou para sobreviver.
— Isso me faz gostar mais dela.
— Pra ser sincero, quando a conheci logo senti que vocês iam se dar bem.
Ana bufou, cruzando os braços e rindo baixinho, e Luiz continuou.
— Nos últimos meses comecei a me conectar novamente com a colônia, como da primeira vez. No começo, foi insuportável. Cada vez que eu entrava, sentia como se minha mente fosse rachar ao meio. O tempo fez eu sincronizar com eles de forma quase perfeita, consigo ajudá-la a cortar algumas conexões quando as coisas ficam difíceis, para que ela tenha um pouco de descanso. Mas como eu disse antes, era algo de benefício mútuo. Aprendi muito a respeito das minhas próprias habilidades no processo. Mentes são… fascinantes.
Por um breve momento, o olhar no rosto do homem ficou feroz, predatório, enquanto encarava Ana, mas como se fosse apenas uma ilusão, sua expressão logo voltou ao normal.
— Bem, vou considerar tudo isso treinamento, não falaremos sobre punições. — disse Ana casualmente. — Agora vai lá e corta a cabeça dessa desgraçada.
— Eles são boas pessoas, Ana... — murmurou, quase como se estivesse se desculpando.
— Boas pessoas? — a rainha mercenária repetiu, sua voz carregada de incredulidade. — Eles nos ameaçaram com guerra se não explodíssemos uma cidade inteira. Isso é ser "bom"?
— Isso é coisa do Verath...
— O homem de terno? — Ana perguntou, lembrando-se da figura distinta que havia sido mencionada no relatório.
— Sim, ele é o conselheiro da rainha. — Luiz assentiu. — É meio estranho, mas não é uma pessoa ruim. Bom, é mais frio que os outros insetos... Quando ele pediu para explodir a cidade, estava sendo prático. Os escamosos estavam causando problemas para os habitantes. E sobre a guerra... Não passa de um blefe. É a estratégia dele para pressionar outras cidades e evitar um conflito real, uma relação de medo para manter tudo sob controle.
— É um blefe burro — Ana comentou em meio a um riso seco.
— Ele não quer uma guerra, mas também não a teme. A capacidade reprodutiva dos insetos é absurda, e há alguns entre os soldados que são realmente monstruosos… Não é uma batalha que podemos vencer facilmente, caso venha a acontecer.
— Que seja — Ana deu de ombros. — De qualquer forma, arranque a cabeça dela. Não acho que dá pra resolver a bagunça dessa vez, aqueles túneis estão realmente bagunçados.
Luiz hesitou, e Ana notou a mudança em sua expressão. Sua mão novamente tentou discretamente se mover para a espada, cheia de desconfiança.
— Apenas vá embora, minha senhora — disse ele, a voz saindo firme, mas com um traço de tristeza. — Todos aqueles mortos são menos de um décimo da população total. Vão ficar bravos, claro, mas vão evitar uma guerra que não garanta vitória.
— "Apenas vá embora"? — Ana repetiu, erguendo uma sobrancelha enquanto ignorava o resto da frase. — Não quis dizer "vamos embora"?
— Não posso deixá-la. Não até encontrarmos uma maneira de controlar as conexões.
Ana estreitou os olhos, o sorriso nos lábios se tornando mais afiado.
— Quem diria que o cara que tinha preconceito com os corrompidos ia ficar tão próximo de uma, hein?
Luiz não respondeu de imediato, e sua expressão ficou carregada de seriedade.
— Quero que você entenda uma coisa, Luiz — disse Ana, a voz mais grave e firme. — Eles têm a merda de uma mina de salitre!
— Salitre?
— Pólvora, caralho, pólvora! Não dá pra arriscar depois de recebermos ameaças.
Nesse instante, um som de riso dolorido ecoou pelo ambiente. Ana e Luiz se viraram para a origem do som, notando Niala, ainda deitada no chão, com um sorriso amargo nos lábios. Sua voz soava arrastada e desgastada, como se a simples fala fosse um esforço monumental.
— Não... Vou gastar... A pólvora que tenho... Com mascarados... Isso é para… Os puros — a voz da rainha inseto era entrecortada por pequenas tosses. — E... não temos uma mina de salitre... — ela fez uma pausa, respirando fundo — Apenas um estoque de pólvora já produzida... da Terra antiga.
— Olha quem já acord… — comentou Ana, após virar o pescoço com esforço, tendo a frase interrompida por tosses semelhantes às da outra rainha a sua frente.
A fragilidade mútua pareceu desencadear uma sincronia entre as mulheres, que tossiam ritmicamente, quase como um reflexo uma da outra. Eventualmente, as tosses ásperas deram lugar a risadas fracas, ambas compartilhando um momento de humor sombrio, até que um silêncio pesado dominou a sala. Ana foi a primeira a quebrar a quietude.
— Você mencionou que o uso destina-se aos puros. Pretendem explodir parte de Barueri?
Niala, ainda deitada, ergueu o olhar, os olhos brilhando com um toque de desdém.
— Você é mais ingênua do que parece, assassina estúpida — respirou fundo antes de continuar, o esforço evidente em seu rosto. — Barueri é um pesadelo. Eles não dependem apenas de construções, é uma fortaleza.
Ana estreitou os olhos, observando a mulher-inseto com interesse.
— E como exatamente isso impediria uma bela explosão à moda antiga?
Niala sorriu levemente, como se achasse divertida a falta de conhecimento de Ana.
— Eles têm runas de dissociação nas fundações dos prédios, desenhadas para dissipar qualquer impacto direto que atinja as estruturas. Uma explosão, especialmente uma que não envolve mana... só deixaria fumaça e algumas marcas — Niala parou por um momento, olhando para Ana, como se gostasse de sua ignorância sobre o assunto. — Você não conseguiria nem arranhar as paredes.
Ana inclinou a cabeça, ponderando as palavras de Niala. Por um breve instante, um brilho de admiração cruzou seu rosto.
— Interessante — comentou, sem rodeios, como se conversasse consigo mesma. — Minha cidade não tem isso.
Luiz arregalou os olhos, claramente surpreso com a exposição de detalhes tão importantes da defesa de seu próprio território, mesmo que confiasse em Niala, não se devia falar esse tipo de coisa. A rainha mascarada percebeu a incredulidade do mentalista, o que a fez rir.
— Relaxe, homem. Neste momento, não importa que ela saiba disso.
Suspirando, Ana balançou o corpo para impulsionar-se para frente, forçando-se a se levantar. Involuntariamente, mostrou os dentes por um instante, sentindo que as bandagens ao redor de seu torso começavam a se tingir de vermelho novamente.
Com passos lentos e pesados, se dirigiu até sua espada, abaixando-se com esforço para pegá-la. Luiz observava, inquieto, sem saber o que esperar, enquanto ela, como se não quisesse nada, começou a caminhar em direção à rainha inseto.
Niala, ao perceber o movimento, moveu uma de suas patas, a ponta afiada como uma lança, na direção do estômago de Ana. Mas a mercenária foi mais rápida, com um movimento certeiro, levantou a perna e esmagou a armadura negra que protegia o fino membro contra o chão. O movimento quase a fez perder o equilíbrio, mas ela se firmou, sorrindo com um ar de desafio.
Sem perder tempo, as outras três pernas aracnídeas foram direcionadas ao rosto de sua inimiga, preparando-se para uma retaliação. Mas já era tarde demais. Ana, com um sorriso gélido, já havia encostado a lâmina contra o pálido pescoço a sua frente.
— Você já deve saber, mas meu pequeno reino em breve estará cruzando armas com os puros — murmurou, a voz baixa e ameaçadora. — O inimigo do meu inimigo é meu amigo, certo? Vai se juntar a essa guerra?
— As perdas serão maiores que os ganhos. Essa guerra só levará você e os seus ao colapso — Niala bufou de forma cansada e desdenhosa.
Ana aumentou a pressão da lâmina, a qual começou a deixar uma leve marca vermelha no aparentemente frágil corpo. Seus olhos percorreram as patas de aranha que a circundavam, reparando nas runas intricadas que cobriam cada segmento, cada uma mais complexa que as vistas nos habitantes de Myrmeceum. Ela sentiu um leve formigamento de ambição ao imaginar o que poderia estudar com aqueles símbolos.
"Parece que ainda tenho muito o que aprender…", pensou, mal conseguindo supor a funcionalidade de cada parte da armadura. Com tal conhecimento, poderia aprimorar suas próprias criações. Era um desperdício ter que destruir um povo que podia agregar tanto.
Logo sua vista voltou a fixar-se nos olhos de Niala, aproximando o rosto da outra rainha com um sorriso frio.
— Covarde.
— Sim, mas uma covarde viva... a sobrevivência nem sempre permite seu ridículo idealismo.
— Idealismo? — perguntou Ana, com um tom de ironia marcando seu tom. — Você me entendeu errado. Covarde é um elogio. Recusar uma batalha perdida é mais sensato que se jogar em uma guerra suicida. Mas... essa guerra entrou no meu caminho, e eu não vou recuar. Não lute, se quiser, mas não espere que eu venha te salvar se os puros finalmente baterem na sua porta.
Ana afastou a lâmina do pescoço da rainha, dando um último olhar antes de voltar a sentar-se.
— E claro, quanto ao estoque… pelo direito dos fortes, ou seja, de quem consegue levantar a porra da espada nesse momento, a pólvora agora é minha.
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