— Então, é verdade que vocês podem roubar as almas das pessoas? — perguntou Luiz, com um tom de falsa casualidade.
Ele tentava disfarçar o interesse genuíno com um leve sarcasmo, mas seu olhar atento denunciava sua curiosidade. O homem parecia fascinado pela misteriosa figura.
A Sombra, sentada em uma pedra próxima, o observava com um sorriso enigmático. Seu instrumento repousava em seu colo, e ela ocasionalmente dedilhava algumas notas suaves, que se misturavam com o som das folhas farfalhando ao vento.
— Depende do que você considera uma alma — respondeu ela, sua voz suave e melódica. — Podemos consumir o que resta da energia vital, sim. Mas roubar almas é uma visão um tanto... dramática. No fim, é apenas energia se transformando, quase o mesmo que vocês fazem ao absorver a mana.
Luiz assentiu lentamente, processando a resposta. Ele parecia intrigado e desconfortável ao mesmo tempo, mas a presença da mulher já não o deixava tão inquieto quanto antes.
— E quanto a esse lance de que vocês só conseguem andar à noite?
A Sombra riu suavemente, como se a pergunta fosse uma piada. Logo, apontou para o céu, deixando que os raios de sol que passavam entre as folhas respondessem à pergunta por si só, resultando em um Luiz levemente envergonhado pela tola questão.
Ana observava a interação com uma expressão indecifrável. No início, a atmosfera era marcada por desconfiança e tensão, mas com o passar dos dias, todos começaram a se acostumar com a presença peculiar da nova integrante. As músicas que ela tocava durante as noites ao redor da fogueira e o modo como seu cantarolar harmonizava com o de Ana durante as caminhadas silenciosas traziam um ar de aventura à jornada, uma distração bem-vinda do peso de seus propósitos de vingança. Ironicamente, a existência da sombra tornava tudo menos sombrio.
— Então... quem é a pequena coletora que você mencionou antes? — perguntou Eva aproveitando a pausa na conversa, tentando não parecer intrometida.
A Sombra olhou para o nada por um momento, como se estivesse relembrando memórias distantes.
— Ela é uma companheira que não vejo há algum tempo. A última de nós — explicou a Sombra, com um tom melancólico. — Vendo que muitas Sombras já tinham estabelecido bases em várias áreas do mundo, ela decidiu apenas coletar artefatos abandonados pela Mãe.
Enquanto falava, a Sombra acariciou o alaúde em suas mãos com ternura, como se fosse um tesouro precioso.
— Este instrumento foi um dos tesouros que ela encontrou. Uma das relíquias que restaram — ela então lançou um olhar para a espada de Ana. — Ela também mencionou esse estranho item, mas pelo que me disse, era muito menor, mal chegava a 60 centímetros.
Ao ouvir isso, Alex parou de caminhar, seu olhar fixo em Ana. Lembrou-se da época em que a espada era apenas uma faca, antes de se transformar na arma que é hoje. Sua mente se iluminou com a realização.
— Estão falando da Sombra que enfrentamos no passado, não é? — perguntou ele, sua voz carregada de uma mistura de surpresa e compreensão.
— Sim, foi um conflito de interesses. Porém também lutei lado a lado com ela antes dela partir. Não há razão para guardar ressentimento — respondeu Ana de forma casual.
Alex cerrou os dentes, claramente lutando com seus próprios sentimentos sobre o assunto. Após um momento de silêncio, ele respirou fundo e assentiu.
— Na verdade, não seria justo guardar ressentimento — comentou a Sombra ao ver a hesitação do homem, interrompendo o silêncio com uma risada suave. — Afinal, Ana parece ter devorado minha irmã, não é mesmo?
Os olhos de todos se arregalaram, olhando em direção à mercenária. Ana abriu a boca para explicar, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, levantou a mão, indicando para que todos ficassem quietos. O grupo parou instantaneamente, o silêncio se instalando. Ela estreitou os olhos e se concentrou, tentando captar o que havia escutado. Logo, os outros também ouviram: gritos e o som característico de armas se chocando.
Em alerta máximo, se moveram de forma furtiva, se aproximando da borda de uma colina. Ao olharem para baixo, viram uma cena de caos. Uma batalha em pequena escala estava ocorrendo, a luta parecia intensa, com silhuetas que se moviam freneticamente no pequeno vale.
De um lado, estava uma aparente guilda de humanos não corrompidos, cerca de cinquenta membros se encontravam em formação, como um exército medieval, mas com um toque moderno. Suas armaduras variavam de placas metálicas a coletes táticos, e suas armas iam de espadas e lanças a rifles de alta tecnologia. A combinação criava uma mistura estranha de tradição e modernidade, enquanto eles tentavam resistir à onda de criaturas que os atacavam.
Do outro lado, uma horda de seres bestiais atacava com ferocidade animalesca, causando uma visão aterrorizante. Apesar de serem claramente humanos em sua essência, suas aparências distorcidas os tornavam grotescos. Seus corpos estavam cobertos de trapos sujos e seus membros eram alongados e curvados de maneira antinatural, lembrando mais a estrutura de símios do que de humanos.
Eles se moviam com uma velocidade surpreendente sobre quatro patas, utilizando as mãos como apoio, e atacavam com agilidade incontrolável. De tempos em tempos, trocavam grunhidos e ordens simples entre si, demonstrando inteligência suficiente para uma organização rudimentar, mas eficaz.
Tais humanos disformes, embora caíssem sob as lâminas e balas, estavam em grande número, fazendo com que a guilda lutasse de forma desesperada. Alguns dos bestiais paravam de lutar para devorar os corpos caídos, rasgando a carne com unhas e dentes afiados. O som de ossos quebrando e carne sendo dilacerada ecoava, criando uma sinfonia macabra que fez o estômago de Eva revirar. Outros, com olhares vazios e selvagens, continuavam a avançar, rugindo alto como se tentassem intimidar os soldados. Aos poucos o campo de batalha se transformava em um mar de sangue e membros dilacerados.
— Alguém sabe o que são essas coisas? — perguntou Ana, intrigada.
— É como eu disse antes, muitos humanos sobreviveram da forma que conseguiram após a fusão dos mundos — respondeu Eva, explicando a situação. — Isso fez com que surgissem algumas variantes bizarras…
— Devíamos desviar disso — sugeriu Luiz, visivelmente preocupado.
— Perdemos essa chance ao nos aproximarmos tanto — murmurou Ana, balançando a cabeça em discordância. Seus olhos se fixaram nos bestiais que, ao longe, pareciam ter notado a presença do grupo. — Estamos sendo observados.
De fato, alguns dos bestiais começaram a farejar o ar, virando suas cabeças distorcidas em direção a eles. Os integrantes sentiram um calafrio percorrer suas espinhas ao perceber que a situação da guilda era crítica, restando menos de quinze pessoas, então logo seriam os próximos.
— E agora, o que fazemos? — perguntou Eva, seu tom carregado de urgência ao ver que alguns deles já começavam a escalar as encostas da colina com uma velocidade assustadora.
No entanto, a garota ruiva franziu a testa ao ver que a mercenária que estava ao seu lado já não era visível. De repente, um grito longínquo chegou aos seus ouvidos, respondendo sua pergunta.
— Correr!
O grupo, em pânico controlado e com uma pitada de raiva no coração, virou-se para fugir ao notar que Ana fazia um sinal de retirada enquanto disparava a toda velocidade, já longe de onde estavam. A adrenalina corria em suas veias, e a luta pela sobrevivência começava de novo, desta vez contra um inimigo que não mostrava sinais de cansaço ou misericórdia.