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Fronteiras

Enquanto Ana continuava a absorver as novas informações sobre o mundo que agora a cercava, uma sensação de urgência começou a crescer dentro de sua mente. Ela não podia mais se dar ao luxo de ficar à margem, observando passivamente enquanto tudo se desenrolava diante de seus olhos. Era hora de agir, de se envolver.

A conversa com sua família havia sido esclarecedora e perturbadora. Ao contrário de suas suposições, a humanidade não havia simplesmente regressado ao seu estado original; em vez disso, o mundo de Aurórea havia se fundido com a Terra, criando um mosaico surreal de arquitetura moderna entrelaçada com edifícios medievais. A paisagem era uma combinação desconcertante de épocas, desafiando a lógica, mas possuindo uma estranha beleza.

Uma energia nova, desconhecida, vibrava pelo ar – mana, segundo o consenso popular, um termo emprestado dos jogos modernos. Ana não entendia a base científica disso, mas suas pesquisas mostraram que essa força invisível havia reescrito as regras da existência: monstros saídos dos contos de fadas agora vagavam pela Terra e animais conhecidos evoluíam em seres mais complexos sob o olhar da mana. A população humana, reduzida a uma fração de seu número original, agora se aglomerava em fortalezas urbanas, enquanto o restante do planeta se tornava um palco para criaturas de pesadelos.

Refletindo sobre como se aprofundar nas transformações globais, Ana se recordou de uma ferramenta quase esquecida pela vastidão de sua existência – a internet. 

— Claro, a solução estava diante dos meus olhos o tempo todo. Internet! — ela sorriu, sacudindo a cabeça ante a ironia. A era digital, ressuscitada junto ao fluxo do tempo restaurado, ainda era uma mina de informações, embora agora fosse necessário separar ainda mais diligentemente o fato da ficção com um olhar crítico.

Sentada diante de seu antigo notebook, ela mergulhou nos fóruns online e redes sociais, filtrando informações, discernindo verdades de boatos. Concluiu que a humanidade estava ainda às cegas, atribuindo a transformação global a um evento místico, sem conhecer o verdadeiro arquiteto por trás dessa fusão de mundos. 

— Deus saiu impune! 

Ao longo da última década, o corpo da humanidade lentamente mudou, adaptando-se ao novo mundo em que viveram. Seus músculos e sangue foram infundidos com mana, dando capacidades físicas além do que humanos deveriam ter e permitindo que algumas pessoas mais talentosas moldassem a realidade usando magia, apesar de poucas pessoas a utilizarem, sendo ainda menos as que podiam usá-la em combate.

— Um tipo de modificação de moléculas? Nenhum deles parece estar usando essa capacidade da maneira adequada… Enquanto verificava as matérias recém escritas, ela não pôde deixar de lançar um olhar de desprezo. As pessoas não entendiam o que tinham em mãos.

 — É inegável que a capacidade de alterar a propriedade do mundo circundante para gerar eventos tidos como milagrosos é excepcional, mas usar isso apenas para criar água ou fogo do nada? Mas que estupidez! As possibilidades de ter o poder da criação são infinitas!

Com um suspiro, Ana continuou sua leitura, entendendo cada vez mais o que a nova era trouxe. Durante as buscas, uma teoria emergente chamou sua atenção: a dádiva da absorção. Dizia-se que a energia vital dos seres de mana poderia ser absorvida após sua morte, fortalecendo tanto o físico quanto a capacidade mágica do vitorioso. 

Embora não completamente comprovado, a teoria ganhava terreno entre os caçadores, os novos heróis e vilões deste mundo transformado, que, diferente de pessoas comuns, ficavam visivelmente mais fortes ao fazer suas missões.

Por fim, havia os materiais obtidos dos monstros e as novas plantas espalhadas por todo lugar. Carnes e frutos tornaram-se uma infinidade de novas receitas, muitas delas com propriedades especiais, como auxílio na cura ou envenenamento. 

Já partes diversas de monstros frequentemente tornavam-se novas armas ou armaduras, assim como peças de uma nova tecnologia produzida no mundo novo que utilizava mana como recurso. Não parecia ser tão eficiente quanto a eletricidade, mas com a existência da magia uma gama de novas possibilidades foram abertas. Desta forma, as mais variadas partes podiam ser vendidas a um bom preço, sendo o principal motivo de caçadores de ranks mais altos serem frequentemente ricos.

Apesar de saber que era uma busca superficial, Ana acreditou ter o necessário para se virar. No entanto, mesmo munida de conhecimento, Ana confrontou uma realidade pessoal inquietante. Fechando e abrindo a mão, ela encarou o vazio onde a energia deveria dançar. 

— Eu não consigo sentir a mana… A vida realmente quer me ferrar — sua confissão murmurada deixava claro que estava com cada vez mais raiva dos céus.

***

O mundo estava uma bagunça, mas aos poucos a sociedade de antigamente estava voltando à normalidade. As lojas voltaram a abrir e um novo governo aos poucos se estabelecia, sendo estruturado desde sua base para o novo mundo. Claro, muito deste novo governo baseava-se na força. Não era possível ser igual ao passado em um mundo onde lutar pela sobrevivência era algo normal, mas no geral, era muito parecido com antigamente. Isto é, se você não saísse das fronteiras.

Com a nova força adquirida pela humanidade, muros foram erguidos logo nos primeiros dois dias ao redor dos principais centros urbanos. 

— Parecem baratas — murmurou Ana ao ver a cidade lotada de pessoas, com medo do que estava fora destes muros. 

Dez anos podem parecer muito, mas a realidade é que apenas crianças e adolescentes puderam realmente se adaptar a um mundo onde perigo existia a cada curva. A maioria dos adultos não era capaz nem mesmo de ver um monstro diretamente antes de ficar paralisado de medo.

— Mãe, Jasmim, estou saindo — dirigindo-se à porta da frente de sua casa, ela estava preparada para encarar as novas ruas pela primeira vez. 

Ana havia feito de tudo para tentar sentir a mana na noite anterior, algo que as pessoas deveriam conseguir naturalmente, mas foi em vão. 

"Preciso entender melhor minha força antes de buscar uma guilda."

Ana não sabia o motivo de não poder usar mana, então não gastou tempo pensando nisso. Ana acreditava que seus muitos anos de treinamento serviriam de algo, mesmo sem o fortalecimento adicional da magia. Claro, ela precisava confirmar isso antes de realmente arriscar sua vida. Afinal, se não pudesse lutar, simplesmente voltaria sua atenção para alguma outra área. Ana tinha a confiança de que fosse onde fosse, estava preparada para encarar a sociedade de frente.

Sua defesa consistia apenas em algumas peças básicas de aço que protegiam seus joelhos, seu adorado protetor de braço e a faca que representava todo o seu conhecimento como ferreira. Tudo o que ela possuía antes do mundo se fundir havia simplesmente sumido, com exceção do que estava em contato direto com seu corpo. Claro, felizmente não precisou de muito quando ficou sozinha, então não perdeu nada significativo, mas as coisas mudaram agora, ela ainda não sabia a força dos seres que teria que enfrentar.

Respirando fundo e sentindo a tensão da jornada iminente, finalmente deu o primeiro passo para fora. As ruas desconhecidas da cidade a acolhiam. Ela observava atentamente as pessoas ao seu redor. Diferente do que pensava ter visto pela janela ao acordar alguns dias atrás, Ana podia sentir a tensão no ar, o medo latente que os habitantes mantinham em seus corações.

Hmmm, para onde vou… É estranho me sentir perdida depois de tantos anos vivendo por aqui — enquanto soltava a frase, Ana notou olhares estranhos em sua direção. — O que estão olhando? 

Franzindo a testa, seguiu em direção aos portões, vendo onde os novos muros se erguiam como sentinelas silenciosas. Ao notar uma pequena loja de frutas na estrada, ela pegou descontraidamente uma maçã, perdida em pensamentos.

— Ladra! Guardas! — Gritou a mulher atrás do balcão, interrompendo Ana antes que pudesse saborear a fruta. 

Ana ficou um momento atordoada com a situação, até ter um entendimento repentino. 

— Eu não estou mais sozinha!

— De que droga você está falando? Devolva minha maçã!

"Pelo jeito terei que me controlar para não falar sozinha também… ", refletiu ao devolver a fruta, constrangida. "Pelo menos descobri o motivo dos olhares estranhos". 

Ela, que por tantos anos foi a dona do mundo, tinha que voltar a se acostumar a viver em sociedade.

Se desculpando pela desatenção e com um último olhar para trás, Ana saiu da cidade. Os soldados a observaram passar sem dizer nada, não era comum os habitantes saírem, mas também não era algo estranho. Muitos jovens caçadores iam e voltavam diariamente, apesar de nunca terem visto alguém sair sem um grupo.

O ar lá fora era diferente, carregado com uma sensação de liberdade e perigo. Apesar de já estar acostumada com a selva, ela se forçou a ter cautela, deixando seus aguçados sentidos em alerta máximo enquanto seus pés tocavam o solo desconhecido. 

Era o mesmo mundo no qual ela havia vivido nos últimos 1000 anos, mas ao mesmo tempo tudo era diferente. As árvores se erguiam majestosas em meio à vegetação exuberante, enquanto os sons da vida selvagem ecoavam ao seu redor. Ana se sentia pequena diante da imensidão do mundo lá fora, mas também sentia uma emoção indescritível pulsando em seu peito. Apesar disso, seus passos receosos não podiam esconder sua excitação ao ver algo novo.

Neste momento, não muito longe dos muros, Ana avistou pela primeira vez um grupo de caçadores. Dois homens e duas mulheres, todos aparentando ter entre 20 e 25 anos, escoltavam trabalhadores que lentamente restauravam as estradas em ruínas. Seus equipamentos eram muito semelhantes aos de Jasmim, compostos em geral por algumas peças de armadura de metal por cima de uma armadura corporal de couro, apesar de terem os mais diversos tipos de armas. 

Ao contrário das pessoas da cidade, eles tinham uma expressão animada e confiante no rosto, exibindo orgulhosamente o emblema de sua guilda em seus braços direitos, um homem erguendo uma espada em um fundo alaranjado.

Os dois homens eram muito parecidos, ambos possuíam cabelos pretos escuros e feições inocentes. Seus gestos e sorrisos os faziam parecer próximos, e suas armas, um com uma lança e outro com uma espada curta e um escudo, sugeriam que trabalhavam juntos em ataques de curto e médio alcance.

Não muito afastada deles, uma garota ruiva pintava as unhas, descontraidamente. Seu porte era atlético e sua expressão, apesar de não ser arrogante, não era muito convidativa.

"Que escolha interessante de armas", pensou Ana ao notar o grande martelo que repousava ao lado da garota e o arco curto preso a suas costas.

Por último, ela olhou em direção a garota mais afastada do grupo. Sentada perto da fogueira, sua feição parecia assustada e seus curtos cabelos dourados estavam presos com uma presilha que brilhava em uma cor vermelha incomum. Sem notar nada de especial na garota, Ana estava preparando-se para seguir seu caminho, até notar os estranhos gestos pouco confiantes da garota.

"Magia!"

Uma fagulha saiu dos dedos da garota e reacendeu o fogo quase extinto. Não pareceu muito especial, mas era incrível ver pela primeira vez. 

"Me sinto como em um livro. São tão fofos."

Perdida em pensamentos sem importância, Ana acenou ao passar pelos jovens aventureiros, mas foi recebida apenas com um olhar de indiferença ao perceberem sua falta de associação a um grupo, com exceção da tímida maga, a qual retribuiu o aceno.

"Bem, devo parecer apenas uma civil qualquer, não vou esquentar a cabeça com a má educação das 'crianças' ", ela acreditava que todos deveriam ser apenas caçadores de rank F, o mais baixo segundo a explicação de Jasmim, mas Ana sabia o quanto o status podia subir a cabeça das pessoas.

Enquanto ria para si mesma da reação dos jovens e virava-se para seguir seu caminho, um escuro líquido vermelho foi borrifado em seu peito. 

— Merda, eu não trouxe uma troca de roupas — gritou ao olhar suas roupas manchadas. Um pungente cheiro de ferro estava impregnado no ar, e Ana já havia caçado o suficiente para entender sua origem.

Sangue criava uma cena morbidamente bela enquanto voava ao seu redor.