— Você esta diferente — observou Leif.
Alastor concordou com um grunhido.
— Eu me sinto diferente — admiti. — Bem, mas diferente.
Nós três íamos levantando poeira na estrada para Torrente. Era um dia quente e ensolarado, e não tínhamos motivo para pressa.
— Você parece... calmo — continuou Leif, passando a mão no cabelo. — Eu gostaria de me sentir tão calmo quanto você parece.
— Eu gostaria de me sentir tão calmo quanto pareço — resmunguei.
Leif se recusou a desistir:
— Você parece mais sólido — declarou, com uma careta. — Não. Parece... compacto.
— Compacto? — repeti. A tensão me obrigou a rir, o que me deixou mais relaxado. — Como é que alguém pode parecer compacto?
— Compacto, sei lá — fez ele, dando de ombros. — Feito uma mola enroscada.
— É o jeito de ele andar — disse Alastor, rompendo seu costumeiro silêncio pensativo. — Empertigado, com a cabeça erguida, os ombros levantados. — Fez um gesto vago para ilustrar suas colocações. — Quando ele pisa, o pé inteiro se apoia no chão. Não só a ponta, como se ele quisesse correr, ou o calcanhar, como se hesitasse. Ele anda com solidez, reivindicando o pedaço de chão para si.
Senti um embaraço momentâneo e tentei me observar, o que é sempre um esforço inútil.
Leif deu uma olhadela de esguelha para Alas:
— Alguém vem passando um bocado de tempo com o Ventriloquista, não é?
Alastor deu de ombros, sugerindo uma vaga concordância, e atirou uma pedra nas árvores à beira da estrada.
— Quem é esse Ventriloquista que vocês vivem mencionando? — indaguei, em parte para afastar a atenção de mim. — Estou quase morrendo de curiosidade terminal, sabiam?
— Se alguém pudesse morrer disso, seria você — comentou Alastor.
— Ele passa quase o tempo todo no Arquivo — disse Leif, hesitante, sabendo estar tocando num assunto delicado. — Seria difícil apresentá-lo a ele, já que... você sabe...
Chegamos à Ponte de Pedra, o antigo arco de pedras cinzentas que se elevava sobre o rio Ometh, entre a Academia e Torrente. Com mais de 60 metros de uma margem à outra e ultrapassando 18 metros no ponto mais alto do arco, a Ponte de Pedra tinha mais histórias e lendas do que qualquer outro marco da Academia.
— Cuspa para dar sorte — disse Alastor ao começarmos a subida por um lado, e seguiu seu próprio conselho. Leif o acompanhou, dando uma cusparada pela lateral com exuberância infantil.
Eu quase disse "sorte não tem nada a ver com isso", usando as palavras de Mestre Armin, severamente repetidas milhares de vezes na Iátrica. Saboreei-as por um minuto na ponta da língua, hesitei e, em vez de proferi-las, cuspi.
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A Foles ficava no coração de Torrente e suas portas da frente davam para a praça central da cidade, Calçada de Pedra. Havia bancos, algumas árvores floridas e uma fonte de mármore que borrifava água na estátua de um sátiro em perseguição a um grupo de ninfas seminuas, cuja tentativa de fuga parecia simbólica, se tanto. Pessoas bem-vestidas circulavam pela praça, quase um terço delas segurando algum tipo de instrumento musical. Contei pelo menos sete alaúdes.
Ao nos aproximarmos da Foles, o porteiro levou a mão a seu chapéu de aba larga e se curvou numa saudação. Tinha pelo menos dois metros de altura, era musculoso e intensamente bronzeado.
— Será um iyane, meu jovem senhor. — Sorriu, e Alastor entregou-lhe uma moeda. Virou-se então para mim, com o mesmo sorriso ensolarado. Olhando para o estojo do alaúde que eu segurava, levantou uma sobrancelha.
— É bom ver uma cara nova. Conhece as regras?
Fiz que sim coma cabeça e lhe entreguei um iyane.
O homem se virou para o interior da taberna e apontou:
— Está vendo o bar? — indagou.
Era difícil não ver 15 metros sinuosos de mogno que se estendiam em curva até o fundo do salão.
— Viu onde aquela ponta vira em direção ao palco? — tornou a perguntar.
Fiz que sim.
— Está vendo o homem na banqueta? Se resolver tentar conseguir sua gaita-de-foles, é com ele que deve falar. Seu nome é Radagon.
Ambos desviamos o olhar do salão ao mesmo tempo. Suspendi mais o alaúde no ombro.
— Obrigado... — comecei, mas fiz uma pausa, sem saber seu nome.
— Droch — fez ele, tornando a dar seu sorriso tranquilo.
Fui tomado por um impulso repentino e estendi a mão.
— Droch significa "beber". Você me permite oferecer-lhe uma bebida mais tarde?
Ele passou um bom segundo olhando para mim, antes de dar uma risada. Foi um som alegre e incontido, que lhe saltou direto do peito. Deu-me um aperto de mão caloroso e respondeu:
— Ora, eu bem que aceitaria.
Soltou minha mão e olhou para trás de mim.
— Foi você que trouxe este aqui, Leif?
— Na verdade, foi ele que me trouxe — respondeu Leif, parecendo desconcertado por meu diálogo com o porteiro e segurança, embora eu não entendesse por quê. — Acho que ninguém pode realmente levá-lo a lugar nenhum — completou, entregando um iyane a Droch.
— Nisso eu posso acreditar — retrucou o homem. — Há alguma coisa nele que me agrada. Tem um certo jeito de elfo. Espero que toque para nós esta noite.
— Também espero — disse eu, e entramos.