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A Crônica do Contador de Histórias

Após uma vida de poucas conquistas e repleta de arrependimentos, Vanitas recebe uma segunda chance ao reencarnar como um bebê em um mundo onde magia e espadas fazem parte do cotidiano. Determinado a deixar seu passado para trás, ele abraça essa nova chance, vivendo com uma trupe itinerante de artistas da corte. Entre apresentações e jornadas por novas terras, Vanitas aprimora seu talento nato para o alaúde, mas é na magia que seu verdadeiro poder desperta. Sob a tutela da poderosa Arcanista Marceline, ele mergulha nos segredos da simpatia, a arte mágica que, desde o início, acendeu seu desejo de invocar o vento. No entanto, o destino de Vanitas toma um rumo inesperado quando cruza caminho com o enigmático grupo Sombraim, cujos segredos ocultos trazem à tona verdades sombrias sobre o mundo e sobre sua própria reencarnação. Em busca de respostas, Vanitas parte em uma jornada por terras desconhecidas, onde cada nova descoberta o arrasta ainda mais profundamente para os segredos esquecidos da história. Ao longo do caminho ele encontra aliados improváveis, constrói amizades inquebráveis e se apaixona... mas o que realmente aguarda em seu destino é algo que supera tudo isso. Com a chance de mudar o mundo em suas mãos, Vanitas precisa decidir entre seguir o caminho das revelações ou se perder nos laços do amor e da amizade. O peso dessa escolha pode mudar para sempre o curso de sua vida — e a de todos ao seu redor.

porep · Fantasy
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66 Chs

LIV. IÁTRICA

— Poderia ter sido pior, certamente — disse Mestre Armin com uma expressão séria no rosto redondo enquanto andava à minha volta. — Eu esperava que você fosse ficar apenas com vergões, mas, com a sua pele, já devia saber que não seria assim.

Eu estava sentado na beira de uma mesa comprida no interior da Iátrica. Armin foi apalpando minhas costas de leve enquanto continuava a conversar.

— Mas, como eu disse, poderia ter sido pior. Dois cortes e, em matéria de cortes, você não poderia ter-se saído melhor. Limpos, superficiais e retos. Se fizer o que eu mandei, não terá nada além de cicatrizes lisas e prateadas para mostrar às damas como é corajoso.

Parou diante de mim e levantou com entusiasmo as sobrancelhas brancas por trás dos aros redondos dos óculos.

— Hein?

Sua expressão me arrancou um sorriso.

Virou-se para o rapaz que estava parado à porta.

— Vá buscar o próximo A'scor da lista. Diga-lhe para trazer apenas o necessário para suturar uma laceração reta e superficial.

O rapaz deu meia-volta e saiu. O som de suas pisadas rápidas desapareceu ao longe.

— Você proporcionará um exercício excelente para um de meus A'scor — disse Armin animado. — Tem um belo corte reto, com poucas probabilidades de complicação, mas não há muita carne aí.

Apalpou meu peito com o dedo enrugado e estalou a língua nos dentes.

— Só ossos e um pequeno invólucro. Para nós é mais fácil quando há mais carne para trabalhar. Mas... — encolheu os ombros, erguendo-os quase até as orelhas e tornando a baixá-los — nem sempre as coisas são ideais. É isso que um jovem fisiopatia deve aprender acima de qualquer outra coisa.

Olhou-me como quem esperasse uma resposta.

Assenti com a cabeça, com ar sério. Isso pareceu deixá-lo satisfeito e o sorriso de olhos espremidos reapareceu. Armin virou-se para um armário encostado numa parede e o abriu.

— Dê-me só um minuto para entorpecer a ardência que deve estar tomando as suas costas — disse. Fez umas garrafas tilintarem enquanto examinava as prateleiras.

— Está tudo bem, Mestre Armin. O senhor pode me costurar do jeito que estou — eu disse, havia dois escrúpulos de balruta me entorpecendo e eu sabia que não convinha misturar anestésicos se pudesse evitá-lo.

Ele parou, com um braço enfiado no fundo do armário, e teve que retirá-lo para virar de frente para mim.

— Já levou pontos alguma vez, meu rapaz?

— Sim — respondi com sinceridade.

— Sem nada para aliviar a dor?

Tornei a assentir com a cabeça.

Sentado na mesa, eu tinha os olhos um pouco acima dos dele. Armin fitou-me com ar cético.

— Nesse caso, deixe-me ver — disse, como se não acreditasse muito em mim.

Levantei uma perna das calças acima do joelho, trincando os dentes quando o movimento repuxou minhas costas, e revelei uma cicatriz de um palmo na parte externa da coxa, acima do joelho, no lugar em que Poko me havia esfaqueado com sua navalha de vidro de garrafa em Notrean.

Armin examinou a cicatriz de perto, segurando os óculos com uma das mãos. Cutucou-a de leve com o indicador antes de endireitar o corpo.

— Malfeito — decretou com leve desagrado.

Eu achava que tinha feito um trabalho excelente.

— Meu fio arrebentou no meio do processo — expliquei, em tom resoluto. — Eu não estava trabalhando em condições ideais.

Armin calou-se por um momento, batendo com um dedo no lábio superior, enquanto me observava com os olhos semicerrados.

— E você gosta desse tipo de coisa? — indagou, com ar de dúvida.

Ri de sua expressão, mas o riso estancou quando a dor contínua proliferou em minhas costas.

— Não, Mestre. Eu só estava cuidando de mim da melhor maneira possível.

Armin continuou a me olhar, ainda batendo no lábio superior.

— Mostre-me onde o fio arrebentou.

Apontei o local; não era o tipo de coisa de que a gente se esquecesse. Ele examinou mais atentamente a antiga cicatriz e tornou a cutucá-la antes de erguer os olhos.

— Talvez você esteja me dizendo a verdade, não sei — comentou, encolhendo os ombros. — Mas eu diria que, se...

Interrompeu-se abruptamente, inspecionando meus olhos com ar especulativo. Estendeu a mão e levantou uma de minhas pálpebras.

— Olhe para cima — ordenou, em tom rotineiro.

Franzindo o cenho diante do que viu, pegou uma de minhas mãos, apertou com força a ponta de uma unha e a observou atentamente por um ou dois segundos. Carregando ainda mais o sobrolho ao se aproximar de mim, segurou meu queixo com uma das mãos, abriu minha boca e cheirou-a.

— Zenatina? — perguntou, mas logo respondeu à própria pergunta. — Não. Balruta, é claro. Devo estar ficando velho, para não ter percebido antes. Ela também explica por que você não está sangrando em toda a minha linda mesa limpa. — Olhou-me com seriedade. — Quanto?

Não tive como negar.

— Dois escrúpulos.

Armin passou um tempo calado, olhando para mim. Depois tirou os óculos e os esfregou furiosamente no punho. Recolocou-os e me encarou com expressão mais severa:

— Não é de admirar que um menino sinta tanto medo de ser açoitado que chegue a se drogar. Mas, se estava com tanto medo, por que tiraria a camisa primeiro? — indagou, tornando a franzir o cenho. — Você me explicará tudo isso. Se mentiu para mim, admita, e ficará tudo bem. Sei que às vezes os meninos inventam histórias bobas.

Seus olhos cintilaram por trás das lentes dos óculos.

— Mas, se mentir para mim agora, nem eu nem ninguém do meu pessoal vai suturá-lo. Não admito que mintam para mim — disse, e cruzou os braços. — Portanto, explique-se. Não compreendo o que está havendo aqui. E isso, mais do que qualquer outra coisa, não me agrada.

Portanto, aquele meu último recurso: a verdade.

— Minha professora, Marceline, ensinou-me tudo o que pôde sobre a arte dos fisiopatias. Quando me vi morando nas ruas de Notrean, passei a cuidar de mim mesmo — expliquei, apontando para o joelho. — Não usei minha camisa hoje porque só tenho duas, e fazia muito tempo que não tinha nem isso.

— E a balruta?

Dei um suspiro.

— Não me enquadro aqui na Academia, Mestre. Sou mais novo do que todos e muita gente acha que este não é o meu lugar. Aborreci muitos estudantes por entrar tão depressa no Arcano. E consegui despertar a antipatia de Mestre Hilme. Todos esses alunos, e Hilme e os amigos dele, estariam me observando, à espera de um sinal de fraqueza.

Respirei fundo.

— Tomei a balruta porque não queria desmaiar. Precisava fazê-los saber que não podem me ferir. Aprendi que a melhor maneira de a pessoa ficar segura é deixar os inimigos cientes de que não podem feri-la — concluí. Parecia feio falar com tanta crueza, mas era a verdade.

Olhei para Armin com ar desafiador.

Teve um longo silêncio enquanto ele me fitava, espremendo de leve os olhos por trás dos óculos, como se tentasse enxergar alguma coisa dentro de mim. Tornou a roçar o lábio superior com o dedo e começou a falar lentamente:

— Suponho que, se eu fosse mais velho — disse, tão baixo que era como se falasse consigo mesmo —, diria que você está sendo ridículo. Que nossos estudantes são adultos, e não garotos briguentos e geniosos.

Fez outra pausa, de novo batendo no lábio, distraído. Depois franziu os cantos dos olhos e me deu um sorriso.

— Mas não sou tão velho assim. Hmmm. Ainda não. Nem de longe. Quem pensa que os meninos são meigos e inocentes nunca foi menino, ou já se esqueceu como é. E quem pensa que os homens não são feras cruéis de vez em quando provavelmente não sai muito de casa e com certeza nunca foi fisiopatia. Nós vemos os efeitos da crueldade mais do que qualquer outra pessoa.

Antes que eu pudesse responder, Armin acrescentou:

— Não diga nada, A'lun Vanitas, senão serei obrigado a enchê-la de um tônico horroroso. Ah, aí vêm eles.

Esta última frase foi dita para dois estudantes que entraram na sala, um deles o mesmo assistente que me levara até lá, o outro, surpreendentemente, uma garota.

— Ah, A'scor Mila! — Exclamou o mestre com entusiasmo, enquanto todos os sinais de nossa conversa séria desapareciam de seu rosto. — Você já soube que o nosso paciente tem duas lacerações retas e limpas. O que trouxe para cuidar dessa situação?

— Linho fervido, uma agulha de gancho, fios de tripa, álcool e iodo — disse ela, com voz firme. Tinha olhos verdes que se destacavam no rosto pálido.

— Mas como? Nenhuma cera de simpatia? — perguntou Armin.

— Não, Mestre Armin — respondeu a jovem, empalidecendo um pouco ante o tom do professor.

— E por que não?

A aluna hesitou:

— Porque não preciso dela.

Armin pareceu alegrar-se.

— Sim, é claro que não precisa. Ótimo. Lavou as mãos antes de vir para cá?

Mila assentiu e seu cabelo curto e louro balançou com o movimento da cabeça.

— Nesse caso, desperdiçou tempo e esforço — disse Armin em tom severo. — Pense em todos os germes de doença que pode ter recolhido na longa caminhada pelo corredor. Lave-se de novo e começaremos. 

A jovem lavou-se com vigor minucioso numa bacia d'água próxima.

Armin me ajudou a deitar de bruços na mesa.

— O paciente foi sedado? — indagou Mila.

— Anestesiado — corrigiu Armin. — Você tem um bom olho para os detalhes, Mila. Não, ele não foi anestesiado. E o que você faria se o A'lun Vanitas lhe garantisse que não necessita dessas coisas? Ele afirma ter o autocontrole de uma barra de aço de Orion e diz que não se mexerá quando você suturá-lo.

Embora eu não pudesse ver seu rosto, notei um toque de dúvida em sua voz.

O tom de Armin era sério, mas detectei no fundo uma pitada de diversão.

Mila me fitou, depois tornou a olhar para o Mestre.

— Eu lhe diria que ele está sendo tolo — retrucou, após uma breve pausa.

— E se ele insistisse na afirmação de que não precisa de um agente entorpecedor?

Houve uma pausa mais longa de Mila.

— Ele não parece estar sangrando muito, de modo que eu prosseguiria. Também lhe deixaria claro que, caso se mexesse demais, eu o amarraria na mesa e o trataria como julgasse melhor para o seu bem-estar.

Hmmm — fez Armin, parecendo meio surpreso com a resposta. — Sim. Muito bem. E então Vanitas, ainda quer abrir mão do anestésico?

— Obrigado, — respondi em tom gentil —, mas não preciso dele.

— Muito bem — disse Mila, como que resignada. — Primeiro vamos limpar e esterilizar o ferimento.

O álcool ardeu, mas essa foi a pior parte. Tentei relaxar o máximo que pude enquanto Mila ia descrevendo o procedimento. Ocupei a cabeça com outras coisas e procurei não me mexer sob as espetadelas da agulha entorpecidas pela balruta.

Mila terminou depressa e em seguida me fez um curativo, com uma rapidez e uma eficiência que achei admiráveis. Quando me ajudou a sentar e me envolveu o tronco com as ataduras de linho, perguntei-me se todos os alunos de Armin eram tão bem treinados quanto ela.

A jovem estava atando os últimos nós às minhas costas quando senti um toque no ombro, leve como uma pluma e quase imperceptível sob o efeito entorpecedor da balruta.

— Ele tem uma pele linda — ouvi-a comentar, presumivelmente com Armin.

— A'scor! — gritou o mestre em tom severo. — Esses comentários não são profissionais. Estou decepcionado com sua falta de bom senso.

— Eu estava me referindo à natureza da cicatriz que ele pode esperar — retrucou Mila em tom ríspido. — Imagino que seja pouco mais do que uma linha pálida, desde que ele evite abrir o ferimento.

Hmmm — fez Armin. — Sim, é claro. E de que modo ele deve evitar isso?

Mila deu a volta à mesa e parou de frente para mim.

— Evite movimentos como este — e esticou as mãos à frente do corpo — ou este — e levantou os dois braços. — Evite qualquer tipo de movimento muito rápido: correr, pular, escalar. O curativo poderá ser retirado em dois dias. Não o molhe — instruiu, desviando os olhos de mim e fitando o professor.

Armin balançou a cabeça.

— Muito bem, A'scor. Está dispensada.

Olhou para o rapaz mais novo que acompanhara todo o procedimento em silêncio e acrescentou:

— Pode ir também, Guz. Se alguém perguntar, estarei no meu gabinete. Obrigado.

Um momento depois Armin e eu ficamos novamente a sós. Ele se manteve imóvel, cobrindo a boca com uma das mãos, enquanto eu vestia cuidadosamente a camisa. Por fim, pareceu chegar a uma decisão:

— A'lun Vanitas, gostaria de estudar aqui na Iátrica?

— Eu gostaria muito, Mestre Armin — respondi com toda a sinceridade.

Ele balançou a cabeça, ainda com a mão na boca:

— Volte daqui a quatro dias. Se tiver sido inteligente o bastante para não arrebentar os pontos, eu o receberei.

Seus olhos cintilaram.