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A Crônica do Contador de Histórias

Após uma vida de poucas conquistas e repleta de arrependimentos, Vanitas recebe uma segunda chance ao reencarnar como um bebê em um mundo onde magia e espadas fazem parte do cotidiano. Determinado a deixar seu passado para trás, ele abraça essa nova chance, vivendo com uma trupe itinerante de artistas da corte. Entre apresentações e jornadas por novas terras, Vanitas aprimora seu talento nato para o alaúde, mas é na magia que seu verdadeiro poder desperta. Sob a tutela da poderosa Arcanista Marceline, ele mergulha nos segredos da simpatia, a arte mágica que, desde o início, acendeu seu desejo de invocar o vento. No entanto, o destino de Vanitas toma um rumo inesperado quando cruza caminho com o enigmático grupo Sombraim, cujos segredos ocultos trazem à tona verdades sombrias sobre o mundo e sobre sua própria reencarnação. Em busca de respostas, Vanitas parte em uma jornada por terras desconhecidas, onde cada nova descoberta o arrasta ainda mais profundamente para os segredos esquecidos da história. Ao longo do caminho ele encontra aliados improváveis, constrói amizades inquebráveis e se apaixona... mas o que realmente aguarda em seu destino é algo que supera tudo isso. Com a chance de mudar o mundo em suas mãos, Vanitas precisa decidir entre seguir o caminho das revelações ou se perder nos laços do amor e da amizade. O peso dessa escolha pode mudar para sempre o curso de sua vida — e a de todos ao seu redor.

porep · Fantasy
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108 Chs

CIII. EMPRÉSTIMO

Aspirei o cheiro de gordura rançosa ao bater na porta de Devi. Fiquei parado um minuto, lutando contra a ânsia de me remexer de impaciência. Não fazia ideia se ela estaria acordada tão cedo, mas era um risco que eu precisava correr.

Devi abriu a porta e sorriu ao ver que era eu.

— Ora, mas que surpresa agradável! — disse, abrindo mais a porta. — Entre, sente-se.

Exibi meu melhor sorriso.

— Devi, eu só...

Ela franziu o cenho e disse em tom mais firme:

— Entre. Não discuto negócios no patamar da escada.

Entrei e ela fechou a porta.

— Sente-se. A não ser que prefira se deitar um pouquinho — disse, fazendo um sinal brincalhão para a enorme cama de baldaquino no canto do aposento. — Você nem vai acreditar na história que ouvi hoje de manhã — acrescentou, com o riso escondido na voz.

Apesar de minha urgência, obriguei-me a relaxar. Devi não gostava que a apressassem e, se eu tentasse fazê-lo, só a levaria a se irritar.

— O que você ouviu?

Ela se sentou no seu lado da escrivaninha e cruzou as mãos.

— Ontem à noite, ao que parece, uma dupla de bandidos tentou roubar a bolsa de um jovem estudante. Acontece que, para grande desolação deles, ele era o próximo Valoran, em fase de formação. Invocou o fogo e o relâmpago. Cegou um dos dois e deu uma pancada tão forte na cabeça do outro que ele ainda não acordou.

Fiquei imóvel por um instante enquanto absorvia a informação.

Uma hora antes, essa teria sido a melhor notícia que eu poderia ouvir. Agora, mal passava de uma distração. Mesmo assim, apesar da urgência de minha outra missão, eu não podia ignorar a oportunidade de colher algumas informações sobre a crise mais perto de casa.

— Eles não estavam só tentando me roubar.

Devi riu.

— Eu sabia que era você! Eles não sabiam nada sobre o estudante, exceto que tinha o cabelo branco. Mas isso foi o bastante para mim.

— Eu ceguei mesmo um deles? E o outro continua inconsciente?

— Sinceramente, não sei — admitiu Devi. — As notícias correm depressa entre nós, os tipos condenáveis, mas quase todas são boatos.

A essa altura minha mente girava depressa em torno de um novo plano.

— Será que você mesma se disporia a espalhar um boatinho? — indaguei.

— Depende — disse Devi com um sorriso matreiro. — É super empolgante?

— Deixe escapar o meu nome. Deixe que saibam exatamente quem foi. Faça todo mundo saber que estou espumando de raiva e matarei o próximo que vier atrás de mim. Matarei os bandidos e quem os tiver contratado, os intermediários, a família deles, os cães deles, o bando todo.

A expressão encantada de Devi se diluiu em algo mais próximo do desagrado.

— Isso é meio sinistro, não acha? Admito que você seja apegado a sua bolsa — disse, dando-me uma olhadela matreira — e eu mesma tenho interesse nela. Mas não há...

— Eles não eram ladrões. Foram contratados para me matar.

Devi me olhou com ar cético. Puxei a ponta da camisa para lhe mostrar a atadura.

— Estou falando sério. Posso lhe mostrar onde um deles me esfaqueou antes de eu conseguir fugir.

Como sobrolho carregado, Devi se levantou e contornou a escrivaninha pelo outro lado.

— Está bem. Mostre-me.

Hesitei, mas concluí que era melhor fazer o que ela queria, já que eu ainda teria favores a pedir.

Tirei a camisa e a coloquei na escrivaninha.

— Essa atadura está um nojo — declarou ela, como se o curativo fosse um insulto pessoal. — Livre-se disso — ordenou.

Foi até um armário nos fundos do cômodo e voltou com um estojo preto de fisiopatia e uma bacia. Lavou as mãos e olhou para meu tronco:

— Você nem mandou suturar isso? — perguntou, incrédula.

— Andei muito ocupado, correndo feito um louco e me escondendo a noite inteira.

Devi me ignorou e tratou de limpar meu tronco com fria eficiência, o que me deixou claro que havia estudado na Iátrica.

— Está uma sujeira, mas não é profundo — disse-me. — Nem chegou a cortar toda a epiderme em alguns pontos. Você vai precisar de uma sutura — completou, levantando-se e tirando umas coisas do estojo.

— Eu mesmo a teria feito, mas...

— .. mas é um idiota que nem se certificou de limpar isso direito — concluiu Devi. — Se infeccionar, é bem feito para você.

Terminou de limpar o corte e lavou as mãos na bacia.

— Quero que você saiba que estou fazendo isto porque tenho uma queda por meninos bonitos, doentes mentais e gente que me deve dinheiro. Considero que é uma proteção do meu investimento.

— Sim, senhora — assenti, respirando fundo quando ela aplicou o antisséptico.

— Achei que você não era de sangrar — comentou ela sem maiores rodeios. — Está aí mais uma lenda que se revela falsa.

— Por falar nisso — disse eu, movendo-me o mínimo possível para estender o braço, tirar um livro da sacola de viagem e colocá-lo na escrivaninha —, eu trouxe o seu exemplar de Os hábitos de acasalamento do Dracus comum, para devolver. Você tinha razão, as gravuras contribuíram muito para o texto.

— Eu sabia que você ia gostar — observou ela.

Houve um momento de silêncio enquanto começava a ficar numa posição confortável. Quando voltou a falar, quase todo o tom amistoso havia desaparecido da sua voz:

— Esses sujeitos foram mesmo contratados para matá-lo, Vanitas?

Fiz que sim.

— Tinham uma bússola rabdomântica e alguns fios do meu cabelo. Foi assim que souberam a cor do meu cabelo.

— Ora, senhores e senhoras, se isso não faria o Kelvin espumar de raiva! — exclamou ela, abanando a cabeça. — Tem certeza de que eles não foram contratados só para amedrontá-lo? Para lhe dar uma prensa, ensiná-lo a respeitar seus superiores? — indagou.

Fez uma pausa na sutura e olhou para mim:

— Você não cometeu a estupidez de pegar dinheiro emprestado com o Raffron e a rapaziada dele, não é?

Balancei a cabeça e respondi, sorrindo:

— Em matéria de gavião, para mim só existe você, Devi. Aliás, foi por isso que passei aqui hoje...

— E eu pensando que você simplesmente gostava da minha companhia — disse ela, retomando a sutura. Julguei detectar um toque de irritação em sua voz. — Deixe-me acabar isto primeiro.

Passei um bom momento pensando no que ela dissera. O sujeito altão tinha dito "Vamos fazer o que tem de ser feito e acabar logo com isso", o que poderia significar uma infinidade de coisas.

— É possível que eles não estivessem tentando me matar — admiti lentamente. — Mas ele tinha uma faca. Ninguém precisa de faca para dar uma surra em alguém.

Devi bufou.

— E eu não preciso de sangue para fazer as pessoas quitarem suas dívidas. Mas que ajuda, ajuda.

Refleti sobre isso enquanto ela dava o último ponto e começava a enrolar uma atadura nova em mim. Talvez a intenção tivesse sido uma simples surra. Uma mensagem anônima de Drazno dizendo para eu respeitar meus superiores. Talvez tivesse sido uma simples tentativa de me fazer ir embora, assustado.

Dei um suspiro, tentando não me mexer demais ao fazê-lo.

— Eu gostaria de acreditar nisso, mas realmente não é o que penso. Acho que eles queriam tirar sangue, de verdade. É o que meu instinto me diz.

Devi assumiu uma expressão séria:

— Nesse caso, vou soltar umas informações por aí. Quanto à parte referente a matar os cães deles, não sei, mas vou jogar umas coisinhas na fábrica de boatos, para que as pessoas pensem duas vezes antes de aceitar esse tipo de encomenda. — Deu um risinho gutural. — Na verdade, depois de ontem, elas já estão pensando duas vezes. Isso as fará pensar três.

— Fico muito grato.

— Não é problema para mim — retrucou Devi com descaso, levantando-se e sacudindo uns fiapos dos joelhos. — Um favorzinho para ajudar um amigo — acrescentou.

Lavou as mãos na bacia e enxugou-as na blusa, sem maior cuidado:

— Pode falar — disse, sentando à escrivaninha com uma súbita expressão profissional.

— Preciso de dinheiro para um cavalo veloz.

— Vai sair da cidade? — indagou ela, arqueando a sobrancelha loura. — Você nunca me pareceu o tipo que foge.

— Não estou fugindo. Mas preciso cobrir uma certa distância. Uns 110 quilômetros antes que passe muito do meio-dia.

Devi arregalou um pouco os olhos:

— Um cavalo capaz de fazer esse percurso custará caro. Por que não compra um bilhete de posta e vai trocando de cavalos pelo caminho? É mais rápido e mais barato.

— Não há estalagens no lugar para onde eu vou: em direção à nascente do rio, depois subindo as montanhas até uma cidadezinha chamada Nebron.

— Está bem. Quanto está querendo?

— Precisarei de dinheiro para comprar um cavalo veloz sem pechinchar. Além disso, hospedagem, comida, talvez uns subornos... Vinte crimos.

Devi soltou uma gargalhada, depois recobrou a compostura e tapou a boca.

— Não. Sinto muito, mas não. É verdade que tenho uma quedinha por jovens charmosos como você, mas Isso não me passa pela cabeça.

— Tenho meu alaúde — empurrei o estojo para ela com o pé — como garantia. E qualquer outra coisa que houver aqui — acrescentei, pondo a sacola de viagem na escrivaninha.

Devi respirou fundo, como se fosse dizer um não imediato, depois encolheu os ombros e espiou o interior da sacola, bisbilhotando. Tirou meu exemplar de Crítica e Retórica e, logo em seguida, minha lamparina portátil de simpatia.

— Ora — exclamou, curiosa, mexendo no interruptor e apontando a luz para a parede. — Isto é interessante.

Fiz uma careta:

— Tudo, menos isso. Prometi ao Kelvin que ela nunca sairia das minhas mãos. Dei minha palavra.

Ela me encarou com um olhar franco:

— Você já ouviu a expressão "quem pede não escolhe"?

— Dei minha palavra — repeti. Soltei da capa minha gaita-de-foles de prata e a empurrei pela escrivaninha, deixando-a ao lado do exemplar de Crítica e Retórica. — Isso não é fácil de conseguir, você sabe.

Devi olhou para o alaúde, o livro e a gaita-de-foles e respirou fundo, bem devagar.

— Vanitas, percebo que isso é importante para você, mas as contas não batem. Você não tem condição de pagar todo esse dinheiro. Mal pode pagar os quatro talentos que me deve.

Aquilo doeu, sobretudo por eu saber que era verdade.

Devi refletiu por mais um segundo, depois abanou firmemente a cabeça:

— Não, só os juros... Em dois meses, você me deveria mais de 35 crimos.

— Ou alguma coisa igualmente valiosa para trocar.

Ela me deu um sorriso gentil.

— E o que você tem que valeria 35 talentos?

— Acesso ao Arquivo.

Devi ficou imóvel. Seu sorriso de leve condescendência se cristalizou.

— Você está mentindo.

Abanei a cabeça.

— Sei que existe uma outra entrada. Ainda não a encontrei, mas vou encontrar.

— Isso soma um monte de incertezas — ela retrucou, em tom cético. Mas seus olhos se encheram de algo mais do que um simples desejo. Algo mais próximo da fome ou da lascívia. Percebi que tinha uma ânsia tão grande de entrar no Arquivo quanto eu. Talvez até mais.

— É o que estou oferecendo — declarei. — Se eu puder lhe pagar, eu pago. Se não puder, quando descobrir a maneira de entrar no Arquivo eu a compartilharei com você.

Devi olhou para o teto, como se calculasse mentalmente os riscos.

— Com essas coisas como garantia, mais a possibilidade de ter acesso ao Arquivo, posso lhe emprestar 12 crimos.

Levantei-me e joguei a sacola de viagem no ombro.

— Receio não estarmos barganhando. Apenas lhe informei as condições do empréstimo — disse, oferecendo-lhe um sorriso compungido. — São 20 crimos ou nada. Lamento não ter deixado isso claro desde o começo.