"Tudo o que eu mais desejo é que isso pare... Por favor, seja apenas um sonho muito ruim..."
"Eu posso fazer isso parar."
"Como você pode fazer isso...?"
"Não se preocupe com isso. Eu apenas preciso que faça algo para mim em troca. Isso é tudo."
"Eu aceito..."
***
Aquela é uma bela tarde de sexta-feira. Ao alarmar do som já conhecido por todos, os estudantes deixam apressadamente os portões da escola. Todos estão igualmente animados pelo fim de semana que está por vir, afinal de contas a semana mostrou-se incrivelmente testadora e atribulada para todos ali. Isso poderia ser visto em suas expressões. Alguns caminhavam com amigos de volta para suas casas, outros decidiam parar em locais e conversar enquanto o odor dos agradáveis doces da cafeteria, localizada na avenida, atravessam o ar. Alguns dos estudantes voltam para as casas com seus pais, felizes e animados com a promessa de uma viagem a um bom local nessas férias.
Sim. O período estudantil se finalizara por ali, e agora todos mantinham em suas mentes e mãos as expectativas de viver um mês inteiro sem ter que frequentar aquele local.
E enquanto muitos caminhavam acompanhados, uma figura solitária se destaca no meio da multidão. Ele caminha sozinho, trilhando seu caminho sem pressa alguma, pensando em algo um tanto quanto tolo enquanto encara o cruzamento de vias que se pusera em sua frente.
Ele já estava acostumado com aquela realidade, afinal, caminha sozinho de volta para casa desde que se conhece como gente. Não se considera alguém sofredor devido a isso no entanto, agarrando sua solitude com toda a satisfação.
Aquele jovem cruza a via assim que a passagem pode se dar, e vendo o horizonte alaranjado a se estender pelo céu, pensa consigo mesmo.
"É um fim de tarde bonito."
Ele não tem muitos planos para aquele período de parada da rotina, e muito provavelmente apenas ater-se-ia a escrever mais um de seus livros. O jovem em questão encontra em sua imaginação o que não pode ou até mesmo o que não deseja vivenciar em sua vida real. Sozinho, já criou belos universos ficcionais, com pessoas diferentes das presentes em seu mundo, lugares em que a esperança realmente prevalece no coração das pessoas, e em que o altruísmo e a luta pelo o que acredita é a consolidada verdade universal.
Ele apenas escreveria mais e mais, distanciando-se do mundo real por aqueles meros momentos. Uma experiência poderosa e significativa, capaz de reanimar sua mente e desejo de mudança.
É uma curta caminhada até a local em que vive, logo, pode tomá-la com a dada paciência. Ele caminha devagar, apenas para conseguir observar os cenários que se passavam ao seu redor. Vários trabalhadores a se apressarem no retorno para suas casas, trajados de vestes corporativas e de Síndrome de Burnout. Na cafeteria, as garotas jovens que discutiam acerca de assuntos não pertinentes a ele, que não lhe cabiam, mas que contudo, de toda maneira, ele sabia que fazem parte da realidade.
Suas histórias, os textos que escreve, são todos baseados na realidade. Uma história bem-sucedida necessita de dois elementos primordiais: coração e realidade.
Não se pode escrever quando não se pode sentir o que está escrevendo. Uma cena de drama ou um romance é bem mais significativo e emocional em ocasiões em que o próprio autor reconhece e está em sintonia com esses sentimentos. O mesmo pode ser afirmado de uma cena que causa pavor. O medo deve ser sentido na pele.
E por fim, toda história deve possuir aspectos de realidade, mesmo que se trate de uma ficção. Com a realidade, é possível dar vida ao texto e autonomia aos personagens, e é por esse motivo que não se pode criar algo que seja desvinculado da realidade como a conhecemos, do mundo real, de prédios altos e glorificação do dinheiro.
Uma história sem esses elementos é algo morto, e é por isso que ele continua a observar, mesmo que isso teoricamente não o conduza a lugar nenhum.
Os pensamentos veem seu fim ao atingir da porta da residência. Sem mais delongas, o rapaz gira a maçaneta, abrindo a porta.
Um momento. Algo aqui está errado.
A porta estava simplesmente aberta. Ele sempre possui o costume de empurrar levemente a porta antes de abrí-la, e nunca, durante o decorrer de seus 17 anos de vida, o jovem deparou-se com uma porta aberta. A quebra de rotina estava esquisita.
De toda maneira, ele entra. Seus pais devem ter esquecido a porta aberta por puro acidente, e deve ter sido isso. Nada de mais há de ter acontecido.
Estranho. A casa está tomada por um pesado silêncio, uma inércia do tempo que se pressiona de forma passivamente violenta sobre aquele espaço. As luzes estão apagadas, e apenas o brilho âmbar que entra pelas janelas serve de alguma fonte de orientação.
Por que haviam deixado as luzes apagadas? Será que não há ninguém em casa naquele instante? Se não, por que deixariam a porta aberta daquela maneira descuidada, tendo em mente que este é um bairro relativamente perigoso e violento?
Do núcleo de seu ser, ele pede com toda a força que tudo aquilo seja apenas uma grande coincidência do destino, e que sua família esteja ali, apenas bastante silenciosos, esquecidos e com uma afeição estranha pela escuridão que corria pelo ambiente.
Ele sobe utilizando os degraus de madeira. Eles rangem. Seu pai havia, ontem mesmo, prometido que os consertaria hoje. Por que não aconteceu? O jovem sabe que, independentemente das circunstâncias, seu pai nunca deixaria de cumprir o que promete.
Chegando ao andar de cima, novamente é notado que não há presença, seja humana, animal, ou de qualquer outra coisa. Aquilo tudo estava muito esquisito para um dia comum.
Após repousar suas coisas sobre a cama, ele encara a janela. Já estava escurecendo e sequer havia notícia de ninguém.
Ele resolve descer. Aparentemente, ninguém realmente está em casa, e o máximo que ele poderia fazer é esperar que alguém chegue. As férias já haviam se iniciado, logo, é possível que seus pais tenham até mesmo viajado, contudo, eles não o fariam sem ao menos avisá-lo a respeito antes.
Mas se esse for mesmo o caso, então está tudo bem. Isso significa mais tempo para escrever.
De mente mais tranquila, ele abre a porta da cozinha, que range, revelando uma cena que certamente não era esperada para aquele período de recesso escolar.
O jovem cai de joelhos no chão ao perceber o que se passa ali. Ele não sabe o que pensar de nenhuma das coisas que vê, e tudo é um grande choque. Seus braços se tornam anestesiados e a força o falta.
"O que diabos...?"
Ali, iluminados pelo fraco brilho da noite, estava sua família. Sim. Todos realmente estavam ali, apenas não da maneira que ele esperava que estivessem.
Sentados na mesa, parados e sem reação, estão os membros de sua família, os dois pais e a irmã. A mãe olhava para cima, pescoço virado para trás, olhos vidrados no teto. Uma enorme mancha vermelha que se expandia periodicamente tem seu abdômen como origem.
O pai estava com o rosto deitado sobre a mesa. Uma face de horror cujos olhos apontavam diretamente para o jovem, olhando para a porta da cozinha. Era um olhar de desespero, mas ao mesmo tempo quase punitivo, como se estivesse culpando-o pelo estado em que estava. A lâmina da faca permanecia atravessando sua nuca, com o fim avermelhado do metal tingido a sair de sua boca, quase gritando.
Ao lado da mesa estava sua irmã. A jovem mantinha seu agarro firme na tigela que segurava. Quatro estacas metálicas pregavam os membros ao chão e à mesa, mantendo-a de pé. Sua cabeça, oculta pelos longos e ondulados fios pretos não era visível.
Aquele cenário é o que mais o perturbou. Ele havia escrito aquela mesma cena, há bastante tempo no passado em uma de suas histórias. Todos os pequenos detalhes, a composição do cenário, o horário, o modo como tudo estava disposto pelo cômodo. Ele já havia escrito aquilo previamente com bastante afinco e dedicação.
Seu coração corria, assim como as lágrimas que se uniam em pequenos rios, escorrendo por seu rosto. Seria isso sua punição? É este o futuro dos escritores? Ver os piores e mais desumanos aspectos de suas histórias a se tornarem realidade?
Ele apenas consegue encarar o chão, deixando com que todo aquele cenário continue. O que teria acontecido ali? Por que aquilo estava acontecendo com ele? Nenhuma daquelas coisas fazia o mínimo sentido, afinal de contas, uma história é apenas uma história, um conjunto de palavras que se unem para gerar algum significado, cada uma destas palavras sendo formadas por marcas com formatos específicos, imbuídas de um sentido, as letras.
Não. O massacre de sua família foi algo bem maior de que apenas um conjunto de palavras. Foi "coração" e "realidade", os dois elementos necessários para um escritor. Aquela já não era mais apenas uma narrativa em um texto digital ou uma folha de papel. Tudo era real, e isso doía bastante.
De um segundo para o outro, o jovem cai ao chão completamente. Ele jamais desejou que isso acontecesse, certo?
Errado. Em seu coração, aqueles atos haveriam de acontecer, posto que uma cena não possui vida quando o coração de seu escritor não está em sintonia com ela. De uma forma muito súbita, ele desejou que isso acontecesse na realidade.
Ele se sentia culpado por tudo aquilo. Toda escrita é imbuída, inerentemente, de um senso de responsabilidade, e nesse momento ele percebe que foi isso que o faltou. A criação de uma realidade é algo perigoso.
Meia hora já havia se passado, e suas lágrimas não diminuíam em intensidade. Ele tinha despeito de si mesmo, de todas as crueldades que escreveu em suas histórias. E se todas as coisas ruins que já gravou em escrita já aconteceram em algum lugar do mundo, e alguma pessoa sofreu por causa delas?
E se houvesse um modo de desfazer aquilo? Não. Não há. Uma vez imaginada e escrita, uma narrativa vive até mesmo após sua forma física ser apagada. Pode-se queimar o papel, apagar os arquivos, triturar e explodir todos os restos e inclusive a máquina que foi utilizada na escrita, mas enquanto as memórias dessa nova e dolorosa realidade se mantiverem nas mentes daqueles que a leram, a narrativa viverá.
Deitado no chão, ele pode apenas lamentar com intenso pesar acerca de todos os pecados que cometeu em seu escrita, uma atividade tão boba e inocente.
... ... ...
"Tudo o que eu mais desejo é que isso pare... Por favor, seja apenas um sonho muito ruim..."
Ele pedia com todas as forças, mesmo sabendo que o que pede é impossível.
Mas, de repente, uma voz ecoa da escuridão.
"Eu posso fazer isso parar."
Aquela voz surge do nada. Não havia presença alguma na sala. O jovem desesperadamente olha em seus arredores, buscando pelo autor daquela voz andrógina, não masculina, mas não feminina, também.
"Não tema. Não estou aqui para ferí-lo, mas sim para ajudá-lo."
O rapaz pensa um pouco, e logo questiona aquele ser.
"Como você pode fazer isso...?"
"Não se preocupe com isso. Eu apenas preciso que faça algo para mim em troca. Isso é tudo."
Ele pensa um pouco. Confiar naquela voz parece e é bastante duvidoso, no entanto, realmente não há mais nada restante para ele.
"Não posso trazer sua família de volta, contudo, posso realizar algum outro desejo que possua. Obviamente, tenho algo que desejo de você, também."
Aquele ser já deixou suas intenções claras. Ele olha para sua família, massacrada pelas palavras que ele mesmo escreveu e sem hesitação aceita a proposta.
"Eu aceito... Me diga o que tenho que fazer."
"Em primeiro lugar, me diga o que você deseja."
O jovem não consegue tirar seus olhos daquelas imagens, e consumido por mais uma ponta de desgosto próprio e tristeza, dirige sua voz àquela entidade.
"Eu desejo que tire de mim essas duas coisas: coração e realidade. Quero me livrar disso."
A entidade demora um pouco em responder.
"Esse é seu desejo final?"
"Sim." Ele não hesita.
"Muito bem. Irei retirar de você essas coisas. Agora, vamos discutir minha parte do acordo."
Ele levanta-se, escutando aquela voz.
"Para essa missão, irei conceder-lhe algumas habilidades que lhe serão úteis no caminho. Use-as sem hesitação quando precisar. Tenha em mente que, uma vez aceitado o acordo, o mesmo não pode ser desfeito. Você pode rejeitar esse acordo enquanto conversamos, assim, continuará vivendo sua vida comum."
Ele não deseja viver uma "vida comum", ao menos não daquela maneira. O jovem rapaz de 17 anos aceita o compromisso com toda a dedicação.
"Posto que você aceitou, irei contá-lo o que deve fazer. Preciso que faça o seguinte..."
***
Seus olhos estavam um pouco pesados, mas isso era tudo. No meio daquela verde planície, com a cabeça deitada em uma pedra, ele desperta, sendo acordado pelo sol forte e céu azul que cobriam a extensão de todo o horizonte. Várias flores de diferentes cores são balançadas pelo vento, e aves voam graciosamente pelo espaço aéreo.
Ele sentiu a terra sob suas mãos. Estava um pouco molhada.
Apoiando-se em duas pernas, ele analisa seus arredores. Sua missão estaria prestes a se iniciar.