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Mau Presságio

A faca estava firmemente segura entre os dedos, movendo-se com precisão cirúrgica enquanto riscava a madeira do baú. A resistência da madeira sob a lâmina, o som baixo e raspado de cada entalhe, e a leve vibração que ecoava pela madeira eram sensações que lhe traziam um prazer peculiar. Seus olhos brilhavam com intensidade focada, refletindo seu domínio, ainda que não absoluto, sobre a técnica. A lâmina se movia com um controle preciso, como uma extensão de seu próprio corpo, e ela se deixava envolver na tarefa com a mesma seriedade de um escultor criando sua obra-prima.

— O que você tá fazendo? — disse, de repente, o entediado mentalista, tentando desvendar o que aqueles padrões significavam.

Ana não respondeu de imediato, terminando o entalhe antes de se erguer e circundar o baú, inspecionando a simetria das linhas como se fosse uma crítica de arte avaliando uma peça valiosa. Só então, com um leve sorriso, ela se voltou para ele, estranhamente animada.

— Runas em dupla camada — respondeu, dando de ombros como se fosse algo óbvio. — Depois da conversa de mais cedo fiquei ansiosa para fazer alguns testes. Até chegarmos ao destino, pretendo entalhar runas de compressão em cada um desses baús. — Sua expressão se tornou levemente irônica enquanto completava. — E, por baixo, algo… aleatório, só pra criar uma pequena bagunça, se possível.

Luiz franziu o rosto, sem conseguir compreender por completo o que ela estava planejando, mas optou por ficar quieto. Seus olhos passavam dos entalhes para o rosto de Ana, e percebendo a confusão dele, a rainha continuou, explicando pacientemente.

— Pólvora por si só não é tão poderosa assim. O que quero é fazer com que esses baús se comprimam em si mesmos quando ativados, criando contêineres de alta pressão. Isso deve aumentar o impacto e a força da explosão.

Luiz assentiu devagar, tentando processar a explicação.

— Entendi… bem, ao menos o básico, mas e a segunda camada? Qual o propósito?

Uma expressão de diversão surgiu no rosto da rainha, e então deu uma pequena pausa antes de responder, relembrando algo de tempos atrás.

— Essa parte é só um toque de instabilidade criativa — Ana puxou um novo baú, sentando-se por cima dele enquanto começava as novas marcações. — Alguns anos atrás, acabei estragando um conjunto de equipamentos rúnicos enquanto treinava engenharia mágica. Os entalhes fizeram a energia se tornar caótica, incontrolável, e a maioria ficou inútil... mas o que restou foi uma espécie de "bomba improvisada".

Ela fez uma pausa, inclinando a faca de forma pensativa e dando uma risada seca.

— Naquela vez, de cinco supostas bombas, só uma explodiu de verdade. Numa batalha, não servem pra muita coisa. A ativação era incerta, demorada, e dependia de pura sorte, então deixei a ideia de aprimorar aquilo de lado — ela ergueu o olhar para Luiz, seu sorriso adquirindo um toque perigoso. — Aqui, o objetivo é simplesmente destruir o máximo possível. Se acabar não funcionando, nada vai mudar, mas se der certo… bem, deve aumentar um pouco o estrago.

O homem observou o trabalho dela, ainda com alguma perplexidade, mas também com fascínio. Ele percebia o nível de detalhamento e o cuidado que Ana dedicava ao processo. A mulher parecia tão concentrada no trabalho, tão à vontade naquela combinação entre risco e controle, que ele simplesmente a deixou seguir em frente, sem incomodar mais.

Sua visão então se desviou para a proa, onde Niala estava de olhos fechados, imóvel. Ela parecia distante, como se estivesse em um transe profundo. Ana acompanhou o olhar dele e, ao perceber onde estava mirando, arqueou uma sobrancelha e perguntou casualmente.

— E a doida ali, o que tá fazendo?

— Não sei ao certo… Mas parece… sei lá, feliz?

Ana apenas bufou com a resposta incerta, voltando ao trabalho, com o interesse pelo estado da cativa desaparecendo. Da mesma forma, alheia a dupla que conversava a suas costas, Niala sentia o mundo à sua volta se dissolver em uma serenidade que mal lembrava existir.

"Em meio ao caos, um raro instante de tranquilidade", pensou, respirando fundo, deixando que o ar fresco lhe enchesse os pulmões como se tentasse capturar o momento e guardá-lo consigo.

Ao abrir os olhos, seu olhar encontrou ao longe as margens verdejantes do rio, o contraste das sombras e da luz que dançavam entre as folhas. A vastidão da natureza ao redor a envolvia, sussurrando segredos esquecidos, e Niala quase podia ouvir a liberdade que tanto lhe escapava. Era um chamado suave, uma promessa de tranquilidade.

Acima dela, pássaros voavam em círculos despreocupados, suas asas batendo no ar em um ritmo constante e seguro. A rainha inseto os observou com uma melancolia quase palpável. Era a primeira vez em muito tempo que ela podia escutar o som puro do canto das aves sem os murmúrios da colônia. Por um instante, se permitiu ouvir, realmente ouvir, aquele som que trazia a paz de um mundo que não era mais o seu.

— Eu realmente devo ser uma rainha?

A pergunta escapou como um sussurro que foi incapaz de conter, acompanhada por um sorriso irônico que navegava sutilmente por seus lábios. Ali, sozinha com seus pensamentos, as dúvidas que geralmente reprimia surgiam livres. Não era mais a figura imponente e decisiva que todos viam, mas sim uma pessoa comum, cheia de preocupações. 

Uma de suas pernas aracnídeas deslizou suavemente até a água, submergindo-se no fluxo do rio. A sensação era fria e renovadora, como se o toque do do líquido apagasse, ainda que brevemente, todas as responsabilidades que a prendiam. Era fácil esquecer o fardo de sua posição quando estava ali, conectada ao mundo ao redor, sem compromissos, sem povo, sem guerra. A cada segundo, o silêncio confortável a envolvia mais, fazendo o tempo parecer suspenso.

Foi então que uma sutil vibração na água a despertou de sua tranquilidade. Sem muita pressa, ela abaixou os olhos, ainda balançando sua fina perna de inseto no rio, como se brincasse com algum peixe curioso que pudesse ter se aproximado.

Mas, então, o rio mudou.

Uma a uma, pequenas sombras começaram a crescer nas profundezas. A princípio, as formas escuras pareciam meras ondulações, mas, aos poucos, elas tomaram corpo, ganhando movimento. Fascinada, ela inclinou-se mais para a borda, os olhos estreitando enquanto tentava identificar o que estava se formando lá embaixo.

De repente, a superfície da água foi rompida com uma súbita distorção, lançando-se direto em direção ao seu rosto. No instante em que ela arregalou os olhos em surpresa, sentiu uma mão firme agarrar a gola de sua túnica, puxando-a bruscamente para trás.

— No que estava pensando, idiota? — Ana murmurou com uma voz dura e ríspida, ainda segurando-a com força.

— Obrigada… — balbuciou Niala, o rosto corando levemente com a adrenalina. Ajustando sua postura, perguntou, ainda atônita. — O que foi… aquilo?

Ana soltou a roupa dela, e lentamente apontou para a superfície onde, agora, dezenas, ou talvez centenas, de peixes saltavam em torno do barco em uma espécie de dança caótica. 

As criaturas tinham escamas espessas e reflexos metálicos. Suas cores eram um misto de verde-escuro e bronze, cintilando à luz difusa como lâminas afiadas, cada uma com um brilho ameaçador.

Os olhos, grandes e esbranquiçados, transmitiam uma aura de cegueira, dando a impressão de que os movimentos eram feitos somente por um estranho instinto, sem saber realmente para onde estavam indo. Nadadeiras largas e irregulares cortavam o ar antes dos peixes mergulharem de volta ao rio com precisão e força, levantando respingos pesados que pareciam reverberar como trovões no silêncio dos arredores. 

— São lindos... — comentou a rainha inseto, absorta no momento.

— São Kiaraks — disse Ana. — Monstros pequenos que vivem no fundo do rio. Nunca os tinha visto pessoalmente, mas fazem parte da fauna local identificada pelos mascarados.

— Não é algo que se vê todo dia! — exclamou Luiz, que agora também observava com fascínio.

Ana deu um leve suspiro, mantendo o rosto rígido.

— Não mesmo. E se eu pudesse escolher, não gostaria de tê-los visto hoje — murmurou ela enquanto os outros dois a encararam, confusos. — Se estão se comportando dessa forma, é porque alguma coisa os perturbou, é raro virem a superfície.

Luiz franziu o cenho, prestes a perguntar mais, quando uma sensação estranha começou a pulsar sob seus pés. Era como uma leve vibração, um tremor quase imperceptível que, no entanto, se espalhava pelo convés do barco. O som era baixo e ressonante, um "tum-tum" abafado que parecia presente no próprio ar. 

Os três se entreolharam, sentindo a tensão aumentar. Ana inclinou-se para a borda, os olhos fixos na margem mais próxima, notando que não era apenas o barco, arbustos e pequenas pedras também vibravam em um ritmo cadenciado.

— Vocês sentem isso? Parece… uma marcha? — o mentalista perguntou, sussurrando como se o próprio ato de falar alto pudesse alertar o que quer que fosse.

Ana soltou rapidamente mais algumas velas para aumentar o ritmo da embarcação.

— Precisamos nos apressar — disse em um murmúrio, deixando claro a seriedade da situação.

Niala observava com uma expressão grave, a admiração pelos peixes agora completamente esquecida. O instante de paz se transformava numa tensão opressiva, como uma tempestade que se arma no horizonte.

***

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