Os dias passavam como folhas caindo no outono, e agora o inverno havia finalmente se instalado na cidade. O ar gélido penetrava pelas brechas das construções, fazendo os moradores se encolherem sob suas capas e casacos, enquanto o chão de pedra se tornava traiçoeiro, acumulando uma fina camada de gelo que obrigava a todos a caminharem com cuidado. No entanto, para Ana, a estação fria trazia um novo ritmo de trabalho. Com o subsolo impróprio para a pesquisa devido às baixas temperaturas e à umidade que dificultava a operação de alguns maquinários, ela transferiu seus experimentos para a torre mais alta do castelo. O lugar havia se tornado um observatório improvisado, um refúgio onde podia contemplar a cidade e ao mesmo tempo dar continuidade aos seus estudos.
— Tem certeza disso? — A pergunta ecoou pelo local, vinda de um rádio triangular e elegante que estava firmemente encaixado entre as escápulas de Letícia, quase parecendo uma extensão de seu corpo. A voz que emergia dele era suave, mas mantinha o toque estático característico de frequências sussurradas, um som que parecia distante e ao mesmo tempo íntimo.
Ouvindo a pergunta, Ana sorriu consigo mesma, lembrando-se das palavras de Marlene quando ela mencionou a possibilidade de Letícia ser sua assistente de pesquisa.
"Você quer ela como assistente? Isso é ótimo, ela é tão louca quanto você. Bem, talvez um pouco menos."
Era um comentário que, apesar de carregado de humor, resumia bem o espírito da jovem mulher planta ao seu lado.
Com um gesto despreocupado da mão, Ana sinalizou para que Letícia interrompesse suas perguntas incessantes. Ao invés de responder diretamente, caminhou até a janela do observatório, deixando seus olhos se perderem na visão ampla que se estendia abaixo.
A cidade parecia minúscula vista daquela altura, um emaranhado de ruas, construções e pessoas que se moviam como pequenas sombras. Do alto, Ana conseguia ver as mudanças que ocorriam em seu domínio. Era uma visão que a fazia lembrar de tempos antigos, de um passado que agora parecia uma memória distante e borrada onde diariamente suas mãos trabalhavam organizando inúteis maços de papel.
— É uma lembrança de merda…
Em meio a suspiros e resmungos, continuou sua contemplação. Mesmo no inverno rigoroso, a gigantesca arena estava em plena construção, erguendo-se como um colosso de pedra e madeira, dominando o horizonte como uma cicatriz marcante no tecido urbano. Bloco após bloco, a estrutura se erguia com uma majestade brutal, uma obra de dedicação e suor sob a liderança diligente de Cassandra. Ao redor, pequenos grupos de curiosos assistiam ao progresso, conversando entre si enquanto esfregavam as mãos enluvadas para afastar o frio.
A cidade das máscaras, que antes era apenas um refúgio discreto, agora atraía aventureiros de todos os cantos. Mercenários experientes, astutos comerciantes em busca de novos mercados, exploradores em busca de terras desconhecidas e até mesmo caçadores puristas, aqueles que, apesar de sua lealdade à humanidade, não se importavam em conviver com outras raças. Todos encontravam ali um novo lar.
A promessa de riqueza e novas oportunidades era um imã poderoso. Barueri, conhecida por seu controle rígido através das guildas, não oferecia a liberdade que muitos buscavam. Aqui, ao contrário, a chance de ascensão era mais real, ainda que com seus próprios desafios. No fim, poder e dinheiro ainda ditavam as regras do jogo, e a cidade estava aprendendo a tirar proveito disso.
Os conselheiros de Ana, por sua vez, trabalhavam incansavelmente para manter o ritmo de crescimento. Emitiam missões regularmente, desde tarefas simples como "Encontre uma mina de minério X" ou "Recupere ossos da criatura Y" até pedidos de escolta para proteger comboios em viagens perigosas, mantendo o fluxo constante de trabalho e recompensas. E claro, a famosa cerveja de mana local continuava a atrair muitos para uma visita. A bebida, com seu sabor único e revigorante, tornara-se quase um símbolo da cidade. Não era algo exclusivo de lá, outros faziam algo semelhante, mas os ingredientes usados em sua composição pareciam de primeira linha, levando os aventureiros a passarem horas a fio embriagados em conversas e jogos de azar.
— Caralho, quando construíram isso? — pensou a rainha em voz alta, franzindo o cenho ao notar uma série de novas estruturas próximas às plantações. Eram armazéns robustos, prontos para armazenar reservas de alimentos para tempos de escassez. Um sorriso involuntário curvou seus lábios enquanto pensava que sequer havia notado os operários trabalhando.
A cena a lembrou de Marlene e da Divisão Dríades. Mesmo durante o inverno, as plantações continuavam produtivas, tudo graças ao trabalho árduo do povo verde. Após meses de refeições monótonas à base de carne e raízes, a cidade finalmente podia variar seus pratos com vegetais frescos e outros ingredientes que brotavam a um ritmo impressionante.
Ana então ativou uma habilidade que havia começado a treinar recentemente em seus momentos de introspecção. Com um leve brilho em seus olhos, direcionou a mana para os vasos sanguíneos ao redor de suas retinas, ampliando seu alcance visual.
Já vira Lúcia usar muitas vezes, mas a técnica, apesar de básica, ainda consumia mais energia do que sua regeneração natural através das flores. Felizmente, com treino suficiente, havia aprendido a manter controle para que sua reserva não caísse abaixo do nível seguro.
Foi assim que notou algo curioso: pequenos pontos amarelos brilhavam do lado de fora dos muros da cidade. Balançavam suavemente, e lembravam manchas de sol em um inverno cinzento. Dríades dançavam graciosamente entre eles, realizando movimentos ritualísticos enquanto cuidavam das plantas. A visão era, no mínimo, intrigante, e por um momento, ela se perguntou qual era o objetivo daquela plantação tão peculiar.
— Girassóis?
— Marlene tem trabalhado em alguns projetos — respondeu Letícia, com um tom sereno, mas carregado de entusiasmo. — Se isso for um problema, posso pedir para removê-los, senhorita.
Ana deu de ombros, ainda observando a cena vibrante do alto da torre.
— Não, deixe como está. Até que traz um contraste interessante ao cenário.
A plantínea, percebendo que Ana estava prestes a se perder em seus pensamentos novamente, limpou a garganta para chamar a atenção de volta para a questão inicial.
— Então, sobre a pesquisa...
Ana piscou algumas vezes, como se voltasse de um devaneio profundo, antes de finalmente se virar para ela e responder com um leve sorriso.
— Ah, sim, desculpe. Vamos começar logo.
Puxando as mangas do jaleco, Ana estendeu o braço, deixando à mostra as marcas recentes de pequenos experimentos que vinham se acumulando em padrões quase artísticos na sua pele. Na mesa ao seu lado, Letícia fazia os ajustes finais, preparando uma seringa que parecia fora de lugar, com um líquido cintilante de cor amarelada.
A grossa agulha perfurou sua pele com um leve estalo, e a substância começou a ser introduzida em seu sistema. O ardor percorreu suas veias, irradiando a partir do ponto de injeção como uma onda que descia por seus braços e se espalhava por seu peito. A sensação era desconfortável, mas não exatamente dolorosa.
— E aí, como está se sentindo? — perguntou Letícia, inclinando-se para analisar a reação da rainha.
— Parece tudo bem. Dessa vez, não sinto nada queimando.
— Não se esqueça: qualquer reação anormal, pare a circulação da mana imediatamente.
— Eu sei, eu sei.
Ana assentiu, mas sua mente já estava focada no próximo passo. Deixou a agulha no braço por mais alguns segundos antes de retirá-la e, em seguida, fechou os olhos, concentrando-se em sentir a energia das novas células. Começou a circular a mana pelo corpo, conduzindo-a através de suas artérias e veias, guiando-a até os pontos onde a substância deveria começar a agir.
No último mês, Ana havia decidido ser sua própria cobaia, utilizando seu corpo como um campo de testes para explorar os efeitos das infusões de DNA. Havia ponderado em testar em outras pessoas, talvez alguns corrompidos, mas o tempo que levaria para monitorar os resultados a fizeram desistir da ideia. Mais do que isso, havia certo orgulho e confiança que a atraia, afinal, ela mesma faria os cálculos, como poderia estar errada?
Os primeiros experimentos foram, em sua maioria, tentativas de compreender as variações genéticas das diferentes raças e seres que agora habitavam a cidade, e como tais características podiam ser transferidas. Era um trabalho tedioso, que exigia um rigor quase obsessivo em cada detalhe, mas que começava a apresentar resultados.
. Um dos testes iniciais usou DNA de algumas variantes com características de pássaros noturnos. Não tinham asas ou coisas do tipo, mas ganharam uma visão incrível durante a noite. O resultado foi, de certa forma, um sucesso. Ao olhar pela janela, viu cada canto escuro com uma nova nitidez, mas o ganho foi temporário e difícil de mensurar, desaparecendo poucas horas depois. Haviam pensado que seria uma mutação permanente, mas as células dominantes rapidamente eliminavam as invasoras.
Outra tentativa envolveu a replicação da aderência de exos membros de alguns estranhos visitantes que escalavam paredes, mas, nesse caso, os resultados foram decepcionantes: um leve formigamento nas extremidades dos dedos e nada mais.
Para sua sorte, havia material mais que suficiente para aprimorar aos poucos, então tinha esperança de conseguir algo mesmo nos testes falhos. Quando iniciou esses experimentos, havia considerado a possibilidade de sequestrar corrompidos para melhores estudos, mas um estranho senso de justiça distorcido a fez mudar de ideia e, em vez disso, fez um anúncio público, buscando voluntários.
Os sequestraria apenas se ninguém aparecesse.
Para sua surpresa, não faltaram candidatos. Alguns vieram para mostrar boa vontade para a rainha, com ambições pessoais ou torcendo por melhorias para suas famílias. Outros estavam simplesmente interessados na ideia de se tornarem mais fortes, de transcender suas limitações naturais caso a pesquisa desse certo. E havia, é claro, os que vinham por pura curiosidade, fascinados pela mistura de ciência e fantasia que Ana prometia. Assim, suas tardes eram passadas no laboratório, enquanto era vista na forja pelas noites, aperfeiçoando sua engenharia mágica.
Claro, existiam momentos em que sua rotina mudava, e esses momentos se mostravam principalmente quando ela sentia os dedos começarem a coçar, ansiando por algo que a despertasse do cansaço da rotina. Como um dádiva dos céus, a solução para eliminar tais vontades brotou na sua frente sem que precisasse fazer nada.
Ringues clandestinos estavam pipocando nos becos sombrios da cidade, lugares onde a adrenalina fluía sem restrições.
Isso se devia aos escamosos que haviam chegado recentemente. Eles pularam de felicidade ao saber que fizeram a escolha certa em ir até os mascarados, pois finalmente teriam um lugar para mostrar sua força adequadamente. Tentaram aguardar ansiosamente pela inauguração oficial da grande arena ao invés de criar brigas atoa, no entanto, sua impaciência acabou prevalecendo.
As lutas eram espetáculos em miniatura que aconteciam em círculos de espectadores, onde as luzes fracas mal iluminavam os corpos em combate. Era uma briga de cães, onde cada golpe era dado com um sorriso, e cada queda era apenas uma promessa de mais um round. Os ferimentos eram frequentemente graves, braços deslocados, dentes quebrados, ossos que se partiam. Era um ambiente caótico, mas as regras táticas de não matar e respeitar a derrota mantinham uma certa ordem. Assim, Ana fechava os olhos para isso, como se não existissem, e deixava o som dos golpes e grunhidos preencherem seus ouvidos.
Quando visitava essas sessões de pancadaria, vestia uma máscara simples, algo desassociado ao visual da rainha que todos atrelaram a sua máscara monocromática. Era uma decisão simples, mas efetiva, pois ali ela se tornava apenas mais uma figura mascarada.
Foi entre esses golpes e quedas que viu pela primeira vez os efeitos da regeneração do povo de Carapicuíba.
Dias depois de terem sofrido fraturas múltiplas ou ferimentos profundos, lá estavam eles de novo, inteiros, prontos para mais uma rodada. O que Ana sentia ao observar aquilo era algo próximo de inveja. Não demorou para que a ideia gananciosa de absorver aquela habilidade surgisse. Felizmente, com todo o equipamento recuperado, isolar o DNA responsável pela regeneração usando métodos de biotecnologia avançada não foi um processo demorado. Crispr, uma ferramenta que outrora pertencia aos cientistas do mundo antigo, se mostrava ainda mais primoroso nas mãos da rainha milenar.
— Até agora, nenhum sinal de rejeição — comentou a mercenária de repente, interrompendo o silêncio da sala.
— Não comemore antes da hora, ainda temos muito o que verificar — Letícia respondeu, mas a animação em sua voz traía sua tentativa de parecer profissional.
O próprio ar parecia compartilhar da animação das mulheres, mas o verdadeiro teste viria agora, quando o corpo receptor se adaptaria às mudanças, ou brigaria contra ela. A substância, ainda instável, se fundia à própria essência de Ana lentamente, e, aos poucos, a sensação quente do líquido foi se dissipando, sendo substituída por uma corrente gelada que impregnou seus membros. A rainha deixou um suspiro escapar e abriu os olhos.
— Acho que não vai além disso.
Como se vendo se ainda funcionava, girou o braço, testando os movimentos, buscando algum sinal de dor ou desconforto. Ela riu, a voz carregada de uma satisfação ligeiramente insana.
Com um gesto despreocupado, pegou um bisturi de uma das mesas, fazendo-o dançar entre os dedos. Sem hesitar, traçou um corte limpo em seu próprio antebraço, retirando um pequeno pedaço de carne, uma ferida que deveria sangrar abundantemente, mas que, para surpresa de ambas, apenas liberou algumas gotas de sangue antes de coagular de imediato.
— Interessante... — murmurou a cientista vegetal, a curiosidade iluminando seu olhar.
Ana fechou os olhos, concentrando a mana ao redor da área danificada, guiando-a em espirais sutis para acelerar o processo de cicatrização. Sentiu a pele começar a se reorganizar, como uma teia que se tece sozinha. Com um toque casual, ela encaixou de volta o pedaço removido, como se estivesse fechando a tampa de um compartimento. Percebeu ele se reintegrando devagar ao seu corpo como uma peça de quebra cabeça.
— Não é nada milagroso, mas deu certo. Talvez, com alguns ajustes, eu possa conseguir algo ainda melhor... — Ana comentou, com um toque de frustração na voz. — Se aquele maldito líder lagarto nos desse umas partes do corpo, eu conseguiria resultados melhores. O que falta é qualidade.
Por fim suspirou, limpando a crosta de sangue já seco com a ponta dos dedos, enquanto Letícia fazia anotações rápidas em um caderno de couro desgastado.
Foi nesse momento que Miguel entrou na sala. O mascarado estava com sua expressão habitual, a máscara branca escondendo traços de emoção, mas o modo como seus olhos brilharam ao ver a cena denunciava um certo desapontamento.
— Ah, Miguel, sempre tão sério.
— Você se esqueceu da reunião do seu grupo, Ana. Eles estão esperando há meia hora.
Como se picada por um inseto, a mulher bateu a palma da mão na testa, e a lembrança surgiu em sua mente de forma explosiva.
— Droga, realmente esqueci — ela coçou o antebraço onde a seringa havia perfurado sua pele recentemente, sentindo ainda um leve formigamento. Em seguida, jogou de lado o jaleco branco que usava, deixando-o em uma cadeira qualquer, e fez um aceno para Letícia. — Arrume tudo por aqui, eu volto depois.
A assistente retribuiu o aceno, já começando a organizar os instrumentos. Miguel, sempre meticuloso, retirou de sua mochila um casaco pesado feito de pele, com um forro quente de tecido escuro que contrastava com o exterior branco e peludo. Ele o estendeu para Ana, que aceitou o gesto com um sorriso de satisfação.
— E é por isso que adoro você, Miguel — disse ela, enquanto vestia o casaco. O material denso era perfeito para enfrentar o frio constante que fazia do lado de fora. O toque da lã quente contra sua pele era um alívio bem-vindo, e a capa longa que acompanhava o casaco se arrastava levemente pelo chão enquanto ela caminhava.
— Eu sei — respondeu Miguel, sem qualquer traço de emoção, mas o tom seco de suas palavras fez Ana soltar uma risada abafada.
Com a nova veste firme em seus ombros, Ana desceu rapidamente as escadas da torre. Do lado de fora, a neblina acumulava-se nas bordas do rio, que agora corria gelado sob a ponte que levava à entrada da caverna de Garm, onde rostos conhecidos a esperavam, irritados e com frio.