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Capítulo - 07

Finalizei o primo piatto* e já parti para o prato seguinte.

O calor da cozinha me embalava, tal como os aromas. Aquilo me fazia não pensar em nada, apenas nos ingredientes que se misturavam para formar algo delicioso.

Naquele dia, dei o meu máximo na cozinha do Romano's. Talvez para esquecer as coisas que rondavam a minha mente, talvez para abafar todos os meus problemas, ou talvez como uma válvula de escape.

Quando o turno acabou estava fazendo frio, tanto frio que espirais de fumaça saíam da minha boca ao respirar ou falar.

Enquanto eu tirava minha bicicleta do local onde estava presa vi o carro de Lorenzo passar em velocidade média. O vidro estava fechado, mas pude ver seu rosto e sua expressão. Uma expressão que dizia que ele estava pensando em parar e oferecer carona, mas não sabia se realmente queria fazer isso.

Então facilitei as coisas, subi na bicicleta e pedalei sem nem olhar para trás. Porque eu não suportaria ter que conversar com ele agora.

Martina estava assistindo "Laços do Amor" quando cheguei na pensão. Tirei meu casaco e corri para a sala de televisão me jogando no sofá ao seu lado.

— Como andam os irmãos Martínez e Regina Teresa? — perguntei como saudação.

— Perdidamente apaixonados e furiosos — respondeu, também como saudação.

Martina sorriu, mas logo franziu a testa.

— Espera só um pouco — disse. — Você não veio com Lorenzo?

— Não. Pensei que ele já havia chegado — dei de ombros querendo prestar atenção na novela mexicana.

— E eu pensei que vocês vinham sempre juntos para casa.

Dei uma risada que mais pareceu um suspiro.

— Ele passaria com o carro por cima de mim se pudesse — resmunguei baixo.

Martina checou as horas no celular.

— Tratarei isso com ele amanhã. Vocês vão e voltam para o mesmo lugar, é sem sentido que não façam isso juntos.

Meu coração disparou.

— Por favor, não faça isso. Está mais do que explícito que não nos damos bem, e isso com certeza pioraria as coisas — disparei.

Martina suspirou como que em rendição e fiquei agradecida.

Assistimos por um bom tempo, até ela pegar no sono no sofá e eu ter que acordá-la para que fosse para seu quarto.

Resolvi comer algo antes de ir dormir, optei por pão com antepasto e suco. Enquanto eu preparava tudo na cozinha coloquei uma música para tocar baixinho. Para mim cozinhar com música fazia todo sentido, tanto sentido quanto respirar.

Não pude não dançar quando começou a tocar "Girls Just Want To Have Fun" de Cyndi Lauper.

Não sei em que parte da música Lorenzo apareceu na cozinha, eu só esperava que não tivesse sido no refrão.

Abaixei o som e voltei a agir como se nada tivesse acontecido. Ele também, porque se ocupou em guardar algumas compras na geladeira. Me concentrei em cortar as fatias do pão, entretanto era difícil ignorar o clima presente na cozinha.

— O cheiro está bom, fica ainda melhor se colocar um pouco daquele tempero à sua esquerda — Lorenzo disse cortando o silêncio.

— Então agora você fala comigo — falei baixinho.

Mas ele escutou, porque parou o que estava fazendo e levantou a cabeça na minha direção.

— Martina deve tê-lo obrigado a se desculpar — ri cética sem virar para trás para olhá-lo.

— Ela não me mandou fazer nada — rebateu em um tom afiado. — Estou querendo resolver a nossa situação como uma pessoa madura.

Desisti de fazer o que eu estava fazendo e me virei para encarar aqueles olhos verdes pinho detestavelmente lindos.

— É sério? — ri magoada. — Quando ia me contar?

Ele pareceu confuso quando se levantou de onde estava.

— Eu não sei do que você está falando.

— Estou falando de responsabilidade emocional. — Minha garganta estava seca, como se eu tivesse engolido areia. — Estou falando do fato de você ter aproveitado que tive amnésia momentânea para limpar o seu filme comigo.

Seus olhos logo assumiram uma sombra, então eu já sabia o que viria a seguir.

— Eu estava tentando concertar as coisas...

— Ficando feliz por eu não me lembrar de como você me insultou, não só uma, mas duas vezes — Senti minha carótida pulsar. — e o modo torto como tentou se desculpar mas acabou me fazendo ter um colapso?

Ele esfregou o rosto com ambas as mãos.

— Era assim que queria consertar as coisas? — Odiei o modo como minha voz saiu fraca.

— É, eu errei, sei disso. Mas eu estava apenas tentando proteger a minha avó — respondeu claramente irritado. — E sim, eu fiquei feliz por você não se lembrar do que eu havia dito, porque só assim você pararia de me olhar do jeito que está olhando agora! Só assim você pararia de ser sempre a vítima. — Sua voz reverberou como um trovão.

— Se queria consertar a situação, Lorenzo, lamento dizer que você falhou. — Não percebi que eu ainda estava com a faca na mão.

Larguei tudo na bancada atrás de mim e saí do cômodo. Já estava cansada de brigar, estava cansada de ser a estranha, cansada de ter que lidar com Lorenzo.

Eu não merecia estar passando por aquilo. Não mesmo.

Lorenzo

Havia um motivo pelo qual eu estava agindo desse modo. Talvez fosse a obsessão por controle de situação, talvez fosse por pura proteção. Mas havia.

Camila gesticulava, ainda segurando a faca que usava para cortar pão, enquanto me enfrentava. Eu queria dizer que tinha mil razões para o que eu fiz, mas não tinha. Tudo o que eu queria era acabar com o clima de incerteza e raiva que pairava entre nós.

Para ser sincero, nada do que eu fazia ultimamente tinha sentido. Nem mesmo os exames.

Enquanto ela saía da cozinha senti pontadas fortes no coração, o estresse diário cobrava seu preço por fim.

No dia seguinte quando cheguei em casa minha avó assistia a uma novela na sala. Eu já tinha visto Camila acompanhá-la vendo essa novela cujo os nomes dos personagens eram sempre estranhos. Mas hoje ela estava sozinha.

Passei por ela dando-lhe um beijo em seus cabelos grisalhos.

— Olá, Bambino*.

— Oi, nonna*.

Me sentei ao seu lado passando a observar a televisão também.

— Isso não é saudável — disse ela sem tirar os olhos da tela.

— Tem razão, ver muita televisão pode derreter o cérebro — brinquei fazendo cócegas em suas costelas. — A senhora vivia me dizendo isso quando eu era criança.

Levantei para beber água, quando ela disparou:

— Estou falando de você e da Mila.

Suas palavras me fizeram congelar no meio da sala. Virei-me para ela com vários argumentos na ponta da língua, mas bastou um olhar sério dela para que eu desistisse de falar qualquer coisa.

— Não é segredo que gosto da menina, acho que ela tem um espírito que ilumina qualquer ambiente. E você também, Lorenzo. Por isso quero que vocês se deem bem, não porque eu adoraria vê-los juntos, é claro, mas porque quero o bem de vocês. Juntos ou separados. Tenho certeza de que seriam bons amigos se fizessem a única coisa da qual não estão fazendo.

— E o que seria? Devo dar um beijo surpresa nela?

Ela joga uma almofada em mim.

— Francamente! Estou falando de comunicação. Basta que vocês conversem para se entenderem.

Meu sorriso foi se fechando. Comunicação. Eu costumava ser bom nisso, antes de ter que afastar todo mundo. Minha avó esperava uma resposta minha, vi isso em seus olhos.

— Eu não sei, a conversa de ontem não deu muito certo. — Dei de ombros seguindo meu caminho para a cozinha.

Enchi um copo com água e passei a separar os remédios que eu tomava todas as noites antes de jantar. Ouvi a porta se abrir permitindo que uma lufada de vento gelado entrasse na pensão.

— Mi cara*, o que aconteceu com você? — minha avó pergunta e ouço Camila rir.

Me dei conta de que aquele era um dos poucos momentos em que eu pude escutar sua risada.

— O céu está caindo! — Sua voz ecoou pela casa.

— Dio mio, ragazza!* Desse jeito você vai pegar um resfriado dos graves!

— Ah, não. Tudo bem — ela riu. — De onde eu venho, a essa hora, até a lua estaria quente.

Peguei-me esboçando um sorriso que logo tratei de desfazer.

Ouvi as duas conversando animadas enquanto subiam as escadas. Minha avó era cuidadosa com todo mundo, mas ela tinha um carinho especial por Camila, eu podia ver isso. E eu não tinha ciúmes, só era cuidadoso com as pessoas que entravam nas nossas vidas, afinal muitas saíram de forma trágica delas.

Preparei algo leve para comer e me sentei à mesa.

— Por que não deu carona a ela? — vovó sussurrou para que Camila não escutasse.

— Antes de tudo, eu teria oferecido se ela não estivesse com tanta raiva de mim — me defendi, de boca cheia. — E eu precisei ir direto para uma farmácia quando fechei o restaurante, meu remédio tinha acabado e as dores estavam ficando cada vez mais fortes.

Sua expressão mudou e ela se sentou ao meu lado.

— Você está se sentindo bem?

Dei um sorriso para ela demonstrando que estava tudo bem e para tranquilizá-la.

— Eu estou bem, apenas esqueci de comprar o remédio.

— Não se esqueça novamente, por favor — pediu ela preocupada.

Assenti.

Era sábado, e nesses dias eu podia deixar o restaurante aos cuidados de Valenccio e tirar uma folga. Eu pretendia aproveitar o meu tempo estudando uma partitura nova no violão.

Camila apareceu para o café da manhã com uma cara péssima. Haviam olheiras debaixo de seus olhos e ela estava com o nariz e as bochechas vermelhos.

— Bom dia — disse ela de forma anasalada.

— Eu disse que você pegaria um resfriado. — Vovó balançou a cabeça.

— Não, eu estou bem.

Bebi mais do meu cappuccino as observando por cima da xícara.

— Vou trazer um chá para você, querida.

Camila levantou os olhos, que acabaram se encontrando com os meus. Repousei a xícara na mesa.

— Como está se sentindo?

— Meu nariz está entupido, meus olhos ardem e sinto como se tivesse corrido uma maratona. Como acha que me sinto?

Balancei a cabeça.

— Sempre na defensiva. — Ela tomou fôlego para falar, mas fui mais rápido. — Tire o dia de folga, não vai conseguir trabalhar estando desse jeito.

— Para você descontar do meu salário? — Riu cética.

— Para você descansar. Por que é tão difícil você escutar alguém? — Tentei não me irritar com a teimosia dela.

Ela revirou os olhos.

— Certo, mas que fique claro que foi você quem sugeriu.

Assenti.

Após o café da manhã ajudei minha avó a limpar algumas coisas na pensão. Mesmo que não houvessem mais hóspedes, ela gostava de manter tudo arrumado para a chegada de alguém. O que me deixava um pouco triste, levando em conta que as pessoas nunca vinham.

Acabamos na hora exata para o almoço. Enquanto eu preparava nhoque ao molho de tomate fresco me lembrei de que Camila estava doente, e que certamente precisaria de algo mais forte para se curar rápido.

Lembrei-me da receita de um ensopado e pus-me a trabalhar.

Quando terminei, inspirei fundo o aroma de tempero que se acomodou no ambiente. Arrumei o ensopado e salada de frutas para a sobremesa em uma bandeja e subi as escadas.

Bati três vezes na porta ao lado da minha, abri ao ouvir um "entre" meio abafado.

Camila estava encolhida no meio das cobertas, de modo que mal dava para saber que ela estava ali.

Respirei fundo antes de finalmente falar:

— Trouxe uma oferta de paz...

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Tradução das palavras com asterisco*

Primo piatto - É um primeiro prato em uma refeição, sendo comumente arroz ou massa.

Bambino - Criança ou menino; designação genérica para referir-se à alguém jovem.

Nonna - Vovó.

Mi cara - Minha querida.

Dio mio - Deus meu.

Ragazza - Moça; menina.