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Mais uma Noite

แฟนตาซี
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Synopsis

Um one-shot escrito em uma noite de insônia.

Chapter 1Mais uma Noite

Califenas se levantou de sua cama.

Não que seu povo precisasse dormir. Após abandonado o corpo, a necessidade logo desaparece.

Contudo, o hábito era interessante aos seus, especialmente por permitir sonhos proféticos.

Nesse dia, nenhum lhe veio. Mas, ainda assim, uma sensação perene em seu peito lhe dizia que seria um dia especial.

Ao colocar seu robe escuro e ser notificado da sua tabela de tarefas para o dia, sua face espectral revelou um olhar surpreso.

Califenas já havia a muito abandonado ideais de beleza mortal. Mas nem por isso se privava de assumir a forma de um – andrógino, nem homem nem mulher.

As sobrancelhas grossas mas bem mantidas contrastavam com o nariz curto e a boca fina, na face levemente oval e feminina.

Alguns lhe diriam de aparência estranha. Ele não se importava. Era a que gostava de assumir para si mesmo. Caso fosse necessário, bastava mudar.

E, para hoje, seria.

Olhando para o espelho de seu quarto, um suspiro escapou de seus lábios. Os olhos se fecharam e a face mudou.

A sobrancelha se tornou mais fina, o rosto mais aquilino. Traços masculinos começaram a aparecer no mesmo.

Não havia dor nem prazer. Era apenas uma mudança de feição. Sua essência permanecia inalterada.

Após a face, se alterou seu pescoço. Os ombros mudaram, se tornando mais amplos. As mãos manifestaram dedos longos, a pele se tornou pálida.

Califenas tocou a campainha ao lado da porta. Estava pronto. Uma voz suave lhe respondeu pelo sistema de auto-falantes do quarto.

"Boa noite Doutor."

"Boa noite."

Uma pequena saudação nunca sai de moda. E era especialmente importante se acostumar a usá-las quando se trata dos vivos.

"Seu paciente lhe aguarda na sala de consultas."

"Abra a porta, estou indo"

O médico espiritual ajustou sua vestimenta, olhando ao redor uma última vez. Seu quarto não era frio nem escuro. Era até bastante aconchegante. Com uma cama espaçosa, uma escrivaninha com bastante espaço para escrever e um cavalete de pintura.

Caso abrisse a porta ou a janela, Califenas encontraria outros espaços. Para fora, um jardim com galinhas e outros animais que lhe lembravam seu tempo viva.

Para dentro da casa, uma coleção de cômodos que se adequavam ao seu desejo.

O mundo dos que abandonam a carne não é limitado ao que desejam as mentes coletivas do mundo, e Califenas havia garantido que não seria incomodado em seu próprio lar.

Para entrar ou sair de seu pequeno mundo, era necessária sua permissão. Os relatórios que chegavam a ele, exceção. A voz suave vinda do teto, uma adaptação inteligente.

Afinal, mesmo no outro mundo, ainda haviam leis e regras naturais. Apenas diferentes daquelas que conhecem os mortais. Muito mais abstratas, simples e ao mesmo tempo complexas.

Um pequeno universo particular, construído sobre medida, não é incomum. Basta conhecer as pessoas certas, e pagar o preço pelo serviço.

'Tão diferente do que eles vivem...' – um pensamento passou pela mente do espírito, enquanto um pequeno objeto começou a emitir leve brilho alaranjado, próximo ao criado mudo colocado ao lado da porta de seu quarto.

"Contato reconhecido. Assinatura espiritual confirmada. Iniciando transferência."

Califenas tocou a chave, e em poucos instantes já não estava mais em seu próprio mundo. Caso algum convidado lhe visse nesse momento, perceberia que simplesmente desapareceu.

Caso houvesse tocado em seu ombro no momento em que sua mão envolveu a chave, veria a sua frente uma porta de pedra e musgo flutuando no vazio.

A porta se abriu.

"Vamos ao trabalho" – Califenas deu um passo, sua voz sendo ouvida por ninguém além da Inteligência Artificial responsável pela transferência de um local a outro.

"Volte quando quiser!" – E, como esperado, a voz do conforto e cuidado que lhe respondeu foi nenhuma exceto aquela dessa mesma Inteligência Artificial.

***

"Ai, minha cabeça" – uma voz de homem de meia idade podia ser claramente ouvida em meio ao silêncio do saguão pouco movimentado.

O Hospital de Resgate aos Insanos e Dementes de Nova Esperança (HOREIDE-NE) possui várias salas como essa.

Com piso de azulejo azul claro, paredes brancas e teto alto, a presença de confortáveis poltronas de velcro marrom apenas torna a cena mais pitoresca.

Em uma das salas, um pequeno grupo de espíritos se colocava ao redor de um outro. Eram os Guias Espirituais de um homem que se encontrava ainda ligado a carne.

Quase todos de pé, com apenas um deles sentado a frente desse encarnado, a cena era como tantas outras, e pacífica até - se comparando com o que normalmente se encontra nos saguões do Hospital.

"Calma fio. Respira fundo e continua acordado. Se você começar a dormir volta pro corpo." – Disse o espírito sentado em frente ao encarnado, um grande amigo de diversas vidas.

Não obstante, os olhos espirituais do encarnado, cópia quase exata de seus claros olhos físicos, insistiam em baixar as pesadas pálpebras.

"Estou aqui."

As palavras de Califenas fizeram pouca diferença para o encarnado, que apenas percebeu sua presença, sem lhe dar muita atenção.

"Até que enfim" – Disse a bela moça vestida de vermelho, que de perto acompanhava o encarnado.

Califenas lhe ignorou. A pesar das farpas trocadas, era verdade que um único momento mais tarde poderia significar o fim daquela oportunidade.

"Podem iniciar o procedimento" – Califenas indicou, ao que um dos demais espíritos no grupo, de corpo esguio e face séria, tirou do bolso uma seringa.

Califenas olhou para o lado.

A pesar de reconhecer a eficácia do procedimento, não se acostumava com a ideia desse grupo de guias espirituais.

Em sua visão, se alguém não estava pronto para viver a vida espiritual ao mesmo tempo em que vivia a física, não havia porquê forçar a situação a ocorrer.

Que deixassem que o pobre encarnado vivesse na ignorância quanto ao mundo em que eles viviam. Bilhões permaneciam nessa situação, porquê ele tinha de ser diferente?

Afinal, o custo quem pagaria depois seria o próprio encarnado. Cada injeção daquelas lhe daria ampla capacidade espiritual pela noite, mas lhe deixaria também cansado e sonolento durante todo o dia seguinte, talvez até por dois dias.

O guia espiritual perfurou a nuca do encarnado, injetando a substância transparente-arroxeada diretamente em seu cérebro espiritual. Ao se retirar a seringa, não restou marca alguma.

Algo fatal aos vivos, mas de pouca consequência aos espíritos.

Em poucos instantes, as pálpebras cansadas começaram a piscar mais rapidamente.

"UUUFH!" – O encarnado moveu sua cabeça, esticando os ombros em seguida.

"Que inferno esse sono. Obrigado Maik." – Ele disse, enquanto esticava o corpo.

"O prazer é todo meu. Agora vá se alongar." – Respondeu o guia, seu olhar claramente guardando segredos que o próprio guiado ignorava.

"Beleza. Só um instante Doutor."

"Disponha." – Califenas respondeu mecanicamente, enquanto o encarnado se levantava da cadeira e começava a alongar o corpo. Ele já havia perdido a conta de quantas vezes essa rotina se repetiu em sua frente. E ele sabia exatamente o que viria a seguir.

Em breve um dos guias lhe chamaria de lado, contando histórias e compartilhando relatórios e impressões quanto a como havia sido o dia do seu paciente.

Iriam lhe oferecer duas versões. A mecânica, gerada pelos aparelhos de vigilância colocados para monitorar as ações do paciente e manter registros de seu estado físico e espiritual; e a pessoal, um consenso dos guias quanto ao que se transpirou, qual sua opinião a respeito e indicações do que gostariam que fosse trabalhado durante a sessão de terapia daquela noite.

"Licença seu moço" – E, como esperado, foi como ocorreu. Califenas ouviu atentamente a ambos os relatórios trazidos pela moça de vermelho – como quase sempre fazia – e tirou a mesma conclusão de sempre:

'Cada um tem os guias que merece.'

Suas impressões, claro, ficaram para si mesmo. Enquanto ouvia os relatórios, Califenas prestava atenção em seu paciente.

Após os alongamentos vieram rotinas de exercícios respiratórios e aulas de filosofia disfarçadas de conversas amigáveis.

A rotina era sempre a mesma. Após a primeira Injeção, o paciente se tornava agitado e inconsistente demais para tirar proveito das sessões. Então era necessário um período de adaptação antes de se seguir ao tratamento.

Por fim, ao fim de duas horas, os relatórios do dia colhidos e a impressionante – mas incômoda – moça de vermelho satisfeita, o paciente finalmente pôde ser dado a segunda injeção da noite.

Essa, intravenosa em seu braço direito.

O líquido dessa vez era esbranquiçado, com tons de dourado. A seringa de vidro, e a agulha de prata.

Ao adentrar o braço do paciente, sua compleição aos poucos mudou. Se tornou emaciada, e um pouco difusa. Como se fosse vista a partir de um vidro embaçado.

"Efeito Hasemberg" – Califenas disse, um olhar acusador lançado em direção a Malik – "Você exagerou na dose".

"Ele aguenta. Podem ir." – A resposta desagradou Califenas, mas não havia muito o que pudesse fazer. A utilização de substâncias ectoplásmicas e espirituais no espírito de um encarnado era, por Direito Espiritual, de responsabilidade e guarda de seus guias.

Em outros lugares, talvez ele pudesse recorrer a algum meio para anular ou ao menos diminuir o efeito da substância.

Mas não no Hospital.

"Que seja. Josué, venha." – Califenas chamou o encarnado, que se levantou com um olhar bobo e perdido, claramente vendo o mundo da mesma maneira que o mundo lhe via – embaçado e confuso.

Em poucos momentos, os guias espirituais haviam ficado para trás. Josué lhe seguia, e Califenas precisava apenas desejar e cada porta que abria lhe levava para mais longe deles.

Um exercício um pouco inútil – pois tendo a Guarda daquele encarnado, seus guias espirituais tinham direito amplo a estarem em sua presença. Mas, ainda assim, algo que ao menos daria a ele, um modo de mostrar qual era sua opinião a respeito do tratamento que lhe davam.

Por fim, chegaram a sua sala de consultas.

"Consultório" talvez passasse a impressão errada. As salas de consulta do Hospital Nova Esperança (como por vezes se refere ao HOREIDE-NE) possuíam a mesma tecnologia que Califenas tinha disponível para si mesmo, em seu próprio quarto.

Eram pequenos mundos, apenas personalizados para a pessoa e tratamento a ser realizado.

Califenas olhou para trás, e percebeu Josué lhe seguindo no que parecia ser câmara lenta, cada passo aparentemente tomando minutos inteiros para ser dado.

O efeito de Distorção Temporal já estava ativo.

'Ótimo' – Pensou Califenas, antes de dar suas ordens a Inteligência Artificial – "Iniciar análise de paciente, determinar configuração de Sala de Tratamento a partir de Relatório Médico".

"Deseja pré-visualizar e configurar manualmente, Doutor?" – A Inteligência Artificial respondeu.

"Sim" – Califenas se ocupou então da tarefa em questão. A sua frente apareceram seleções de portas e salas. Califenas imediatamente descartou todas as marcadas como "Terapia de Choque". Na sua opinião profissional, o que o paciente menos precisava naquele momento eram mais traumas na sua psiquê.

Ao invés, escolheu um ambiente que considerou acolhedor e relaxante – uma sala a meia-luz, parecida com um consultório psicológico terrestre. Evitou o sol direto, como sugerido automaticamente pelo sistema, pois sabia que era um truque de um dos guias espirituais do paciente.

Lhe cansava ter de lidar com aqueles que tinham acesso a Interface Hospitalar mais amplo que o seu próprio, mas era parte de seu próprio caminho de crescimento espiritual por meio da cura.

Por fim, Josué deu um passo em sua direção.

A distorção temporal havia terminado, e ambos, paciente e médico, entraram na sala.

***

"E então?" – quem perguntou foi o guia espiritual que estava anteriormente sentado em frente a Josué, lhe aconselhando.

Sua forma espiritual no momento era a de um homem velho, negro, sem camisa e de calça e barbas brancas.

Agora, já havia retomado a forma que lhe era mais confortável – e que utilizava quando não estava cuidando de seu guiado. Seu nome era Hashin-Baier.

"Daqui a pouco eles chegam. Não precisa se preocupar." – A mulher de vermelho, agora vestindo-se com um terno feminino branco e sapatos confortáveis, respondeu a Hashin-Baier com um tom monótono na voz.

Cuidar de Josué era uma batalha constante contra a Insanidade que dele irradiava. Após mais de 500 anos, até eles, antes espíritos considerados de alto grau de evolução espiritual, se encontravam interiormente em frangalhos.

Traumas, dores, esquecimentos. A insanidade de seu pupilo já lhes tinha infectado profundamente, a níveis onde quase se esqueciam de quem eram, e se prendiam a lapsos de clareza para construir as bases de alguma estabilidade para si mesmos e para ele. A missão tinha sido escolhida por eles mesmos, e pouco depois se mostrou maior do que esperado. Mas não se abandona um posto espiritual após assumido o mesmo. Não sem que alguém mais capacitado para o cargo tome o mesmo, e não sem que haja aprovação direta dos Altos Comandos, mortais, imortais e divinais, do mundo.

Quanto tempo de tratamento seria necessário, e quando conseguiriam voltar ao que antes tinham? Ninguém tinha uma resposta. Josué era um daqueles raros casos considerados "perdidos". Uma pessoa infectada por algo que ninguém sabia o que era, e era missão deles descobrir, categorizar e, se possível, curar.

"Eu não vou conseguir esperar mais. Preciso ir." – Malik, aquele que havia injetado Josué, disse em um tom seco.

Sendo muito menos preparado do que os demais para a função assumida, Malik havia se proposto a guiar Josué na vida física por uma vida, a duzentos anos.

Por cento e setenta anos após esse dia, ele havia se preparado. E mesmo assim, o peso da tarefa lhe consumia.

"Pode ir. A gente cuida daqui." – Suzu, o mais antigo guia de Josué, disse em voz de riso.

Diferente de Hashin-Baier e da mulher de vermelho, Shuzu acompanhava Josué a mais de três mil anos.

Exceto pela aparente incapacidade de voltar seu corpo espiritual a forma adulta, não parecia em nada afetado pela doença do mesmo.

Mas talvez fosse o mais infectado, dentre todos os presentes.

Possuindo com ele intenso e antigo laço, inquebrável e impossível de ser removido, curar a Josué seria obter a sua própria paz e libertação.

Por isso, insistia. Sem descanso nem desânimo, continuava ao seu lado.

Malik olhou para Hashin-Baier de canto de olho. A pesar de saber que Shuzu deveria ser o mais resistente de todos eles, sabia também que não podia confiar em tudo que dizia.

Mesmo os aparentes erros da Eterna Criança um dia se mostravam acertos, e não erros. Mas o caminho entre o erro e a prova de que era acerto costumava ser dolorido – para se dizer o mínimo.

"Pode ir, pode ir." – Hashin-Baier respondeu a Malik com um aceno de mão, ao que o mesmo se afastou com passos rápidos. Precisava de descansar e se preparar para quando tivesse de agir no controle e disciplina de Josué, no dia seguinte.

"Pronto, pode falar." – Hashin-Baier se virou para Shuzu, mais acostumado a seu modo indireto e um pouco críptico de agir e se comportar.

"Nada de mais. É só que é pra passar uma mensagem." – Shuzu disse, um sorriso no rosto e uma bala dura nas mãos. A compulsão por doces duros que pudesse destruir com os dentes havia surgido a três anos apenas, sendo um bom substituto pela compulsão de falar do que poderia dar errado em tudo que era feito.

A mulher de vermelho lhe olhou de canto de olho, a boca entortando levemente em uma expressão de desgosto.

Algo estranho aos olhos de quem via de fora. Teatral, quase. Mas orquestrado entre eles para permitir que Shuzu falasse sem ser impedido.

"Fala então." – Disse a mulher de vermelho.

"É que o relatório dele de hoje foi incompleto." – Disse a Eterna Criança.

"Ai meu deus do céu..." – Hashin-Baier se sentou em uma das poltronas do saguão do hospital, uma mão indo ao rosto – "de novo...?"

Shuzu sorriu de canto de boca.

"Vai resolver."

***

Califenas ouvia as confissões de Josué em silêncio.

A substância nele injetada lhe dava a impressão de estar falando consigo mesmo, buscando sentindo na sua própria mente, enquanto as palavras do Médico Espiritual eram entendidas como vindas de sua própria consciência.

Era de comum uso para com esse paciente, o mesmo recebendo quatro ou cinco doses por dia, em um dia sem muitos acontecimentos.

Ou ao menos é o que lhe diziam seus relatórios. Sua desconfiança é de que os guias estavam dando muito mais a ele do que isso.

As palavras saiam da boca do paciente sem que ele sequer percebesse que falava. Na sua percepção, estava apenas pensando, ou talvez sonhando.

E do que ele dizia, Califenas começou a montar um diagnóstico em sua mente.

Até que não conseguiu mais. Não perante o que estava sendo dito por seu paciente.

"Eu sinceramente não sei porquê. Acho que é uma questão espiritual mesmo. Eu quero dominar sexualmente todo homem que se interessa na minha mulher. Em algum nível eu acho que, se eu fizer dele uma mulher na minha cabeça, não tem problema que ele e a minha esposa tenham algo. É quase como... se fossem duas mulheres, minhas. O que elas têm entre elas não me ameaça. Eu ainda estou no controle."

Califenas não conseguiu mais pensar.

Sua mente congelou e ele se esqueceu de tudo. De como avaliar um paciente, de como fazer um histórico. De como tratar.

Josué congelou no tempo. O mecanismo de contenção temporal de emergência havia se ativado.

Quando voltou a si, Califenas estava em seu quarto.

Um amigo de longa data estava ao seu lado, e lhe contou do ocorrido.

"Você surtou legal lá." – Disse Matias, seu amigo – Começou a xingar o seu paciente, disse que ele tinha era que morrer logo e ir pro inferno. Que ele era um caso perdido e que não sabia porquê ainda trabalhava com ele.

Califenas respirou fundo.

"Tiveram que fazer neurotomia da memória?" – Ela perguntou, se preparando interiormente para a resposta.

"Dessa vez sim. Foi fundo demais." – Matias parecia abalado, mas preparado. Esse era um risco que corriam todos que se aventuravam a tentar trabalhar no HOREIDE.

Doenças Mentais Infecciosas. Por vezes, a única solução era isolar a parte do cérebro espiritual afetada e removê-la cirurgicamente. Até uma cura ser encontrada, aquela parte de si ficaria eternamente congelada em alguma sala cristalina do hospital, aguardando o momento certo.

"Essa é a última vez então. Já foram três Quedas. Eu não aguento mais uma." – Califenas disse, um olhar de alívio em seu rosto e, ao mesmo tempo, decepção.

"Pois é. Quer ajuda para montar seu Relatório?" – Matias respondeu, ajudando a amiga a se levantar da cama.

"Por favor." – Um sentimento de carinho e cuidado lhe inundou o peito. Matias já lhe acompanhava a tanto tempo, e agora continuava lhe dando forças. Califenas só podia ser grata por tê-lo ao seu lado.

Relatório Médico – Entrega de Caso

12/nov/2011

Colônia Espiritual Nova Esperança – PE

Hospital de Resgate aos Insanos e Dementes (HOREIDE)

Médico Reportante: Califenas Ataíde

Coordenador Receptor: Rashin-Satep

DECLARO, para todos os fins, que falo e reporto a Verdade conforme a vi.

Conforme decreto-resolução interna, eu, Califenas Ataíde, médico responsável pelo paciente Josué Mario, peço remoção do mesmo do meu quadro de pacientes por motivo de Incapacidade Terapêutica.

DECLARO ainda que, para todos os fins, encontrei obstáculo atualmente intransponível em minha prática terapêutica, advindo do contato com o paciente, e que não acredito, em meu melhor julgamento, ter capacidade de continuar com minha ação médica-psicológica.

Peço ESCUSO DE FUNÇÃO.

***

Anexo I

Arquivo HOREIDE-NE

Histórico Médico de Paciente

Josué Mario

O paciente Josué Mario deu entrada no HOREIDE-NE ao dia 02/abr/2021, apresentando caso de insanidade demencial degenerativa de origem e classe desconhecidas, sendo movido a unidade de tratamento intensivo ao dia 03/abr/2021.

O paciente apresenta corpo físico encarnado, e foi decidido por banca diretora a realização de terapia auxiliar a estabilização do estado psíquico do paciente.

O paciente teve seu histórico espiritual reiterado pelos guias espirituais guardiões que lhe acompanham, e em seguida foi alocado a companhia do médico DOUTOR CALIFENAS ATAÍDE, que colheu o seguinte histórico:

Paciente apresenta histórico de manipulação espiritual re-direcionada, indicando situação espiritual instável.

Paciente se encontra em relacionamento amoroso terreno e apresenta filha e esposa.

Paciente se encontra em situação de conflito marital e dificuldade no cuidado com a filha.

Paciente relata que a esposa abertamente se interessou por amigo em comum.

Foi notada obsessão espiritual derivativa de amigo em comum, e teia kármica complexa.

Se identificou a presença de ação Abissal, e deterioramento da Sanidade nos membros da família.

Ação preventiva foi realizada, mas impedida por Força Maior Externa.

Paciente relata realização de um ebó por parte do interesse amoroso de sua esposa, com intenção de "Revelar Toda a Verdade" da situação em que viviam.

Análise independente indica situação de apego kármico intenso. Para motivos de clarificação e simplificação, o interesse amoroso da esposa de operador será chamado "X".

X se encontra como devedor para com sua mãe, sendo o fundador de linhagem familiar matrilinear com acesso a reinos espirituais de prazer e liberdade, com objetivo de estabelecimento de reino espiritual independente aos reinos espirituais comuns associados ao plano físico, a aproximadamente 250 anos.

Durante a fundação da linhagem familiar, X realizou aborto de um filho, que viria a ser matriarca de sua linhagem familiar, aproximadamente 100 anos após ocorrido o aborto.

X buscou re-adentrar a linhagem familiar a esse ponto, com objetivo de atualização e revitalização das bases espirituais da linhagem, mas foi punido por essa matriarca, por meio de maldições familiares e abusos. Em efetiva ação, não houve renovação nem atualização.

Como resultado, a linhagem familiar iniciou declino espiritual devido a falta de renovação das bases espirituais da linhagem.

Atualmente, X reencarnou na linhagem familiar, como filho da matriarca, que ocorreu de ter sido seu filho abortado.

A esposa do paciente ofereceu auxílio a X para atualização e renovação das bases espirituais de sua linhagem familiar, ao que X se aproximou do paciente.

Contudo, devido a necessidade de laço de sangue para que pudesse haver adentrar da esposa do paciente na linhagem familiar de X, foi proposta a concepção de um filho.

O paciente se encontra em conflito interno intenso, visto que sua esposa lhe representa pilar de sustento espiritual a sua sanidade, e para permanecer com ela será necessário aceitar a presença de X em sua vida familiar e criação de família onde se compartilhem intimidades sexuais e descendência sanguínea entre ele, sua esposa, e X.

A situação de conflito se agravou perante a ação de vários espíritos de outros campos de atuação, com interesses diversos na situação.

O paciente relatou que foi dada a X a escolha de assumir seu relacionamento para com sua esposa e, indiretamente, para com ele, mas que X não o fez – ao invés, escondendo o relacionamento de sua mãe e família.

Segundo o paciente, a pesar da família de X possuir bases de ação espiritual, se encontra atualmente voltada a dicotomia de deusxdiabo e acredita que os deuses de seu culto, se cultuados por outros, são demônios.

A situação, em análise independente, se demonstra como de conflito de interesses entre três partes.

O paciente e sua esposa, que apresentam possibilidade de abertura para reestruturação espiritual familiar de X, desde que se decida esse por abrir mão de seus métodos de atuação espiritual e controle atuais.

X, que se apresenta incerto, inseguro e inconformado, pois deseja a reestruturação espiritual oferecida pela esposa do paciente, mas também deseja o perdão, aceitação e submissão de sua mãe a seus planos.

A mãe de X, que guarda sentimentos de superioridade e protecionismo para com o filho, lhe acreditando enganado e enfeitiçado por servos do "demônio".

Perante o quadro atual, o paciente apresenta variações de constituição do ego e agravamento de seu caso.

Por esse motivo, se requisita ação de REAVALIAÇÃO DE RISCO para o paciente.

***

Anexo II

Arquivo HOREIDE-NE

Requisição de Reposição de Deposto

15/Nov/2021

EU, Rashin-Satep, COORDENADOR RECEPTOR do Hospital de Resgate aos Insanos e Dementes, colônia espiritual Nova Esperança, CONVOCO o Médico Califenas Ataíde para RETORNO DE FUNÇÃO nos cuidados do paciente Josué Mario, afirmando ser de interesse geral de nosso Hospital e para seu Crescimento Espiritual e aperfeiçoamento na senda da Cura, sob as bênçãos de Nosso Senhor Jesus Cristo, assim DECRETO E DETERMINO INDEFERIDO o pedido de escuso de função.

***

Califenas olhou pra Josué, sem lhe ver direito.

Não lhe importava mais o estado de seu rosto. O médico espiritual apenas se sentia aliviado e temeroso. Aliviado pois, mediante o incansável falatório do paciente, tudo era dirigido a ele mesmo.

Temeroso pois não havia como saber quando o próximo surto viria.

Quando ele falaria algo que não deveria?

Quando suas palavras, coisas tão inócuas e incapazes de fazer mal, serviriam de canal e vaso para a Loucura?

Ele já havia entendido.

Não era o que era dito. Era como. Havia um certo tom de voz. Uma certa maneira de falar. Que carregava, a cada vez que era emitido, a Insanidade em si.

Ele havia tentado impedir-se de ouvir. Havia tentado programar a Inteligência Artificial para iniciar uma distorção temporal quando o tom de voz viesse.

Mas nessas horas, era inútil.

A distorção temporal se desfazia como papel-machê em água morna. Ele ouvia cada palavra, cada gancho psíquico e mental.

Elas entravam em sua mente, corroíam buracos, se instalavam nas memórias que tinha.

Ele havia pedido ajuda. Até exoneração. Os guias espirituais de Josué lhe garantiram que iriam buscar outro hospital. Seu coordenador disse que não havia emitido a nota de convocação, e na frente dele, emitiu uma nota de deferimento de seu pedido.

Escreveu, palavra a palavra.

E elas foram mudadas e distorcidas, na sua frente, para seu oposto.

O coordenador tentou escrever em papel. Falar ao quadro de diretores.

Distorção. Mudança. Seu coordenador pediu exoneração. E recebeu uma negativa de superiores seus, que tentaram lhe dar deferimento.

O HOREIDE-NE foi fechado e entrou em quarentena. Todos os afetados foram diagnosticados e isolados. Ao menos não transmitiam, apenas eram afetados.

A doença parecia imbatível. Imparável. Se espalhava sem que a tecnologia espiritual pudesse fazer nada contra. E, por fim, a única solução foi fazer, com todos os afetados e também com o hospital, o mesmo que fizeram com ele mesmo.

As salas de neurocirurgia espiritual estavam lotadas, e o risco de se passar por uma estando o equipamento hospitalar comprometido era um que, aos poucos, mais e mais funcionários aceitavam como um mal necessário.

O único efeito positivo – conquanto Califenas não deixasse o hospital, aqueles que passavam pela cirurgia conseguiam ter recuperação plena.

Era estranha a sensação, e mais desesperadora ainda a situação, quando tal efeito foi descoberto.

Califenas aceitou passar por nova Neurotomia pouco depois de ser descoberto o efeito da presença do paciente no hospital, mas, assim que saiu, recebeu notícia de que era para voltar.

Todos os demais funcionários operados no mesmo dia tiveram recaída e insucesso em seus procedimentos.

O médico recostou a cabeça no ombro de Matias. Sua única companhia naquele momento.

"Porquê?" – Foi a única coisa que conseguiu perguntar, já exausta.

"Ninguém sabe. Mas eu estou aqui para você." – Matias respondeu, enquanto segurava sua mão.

Segundo os guias espirituais de Josué, conquanto ele não conhecesse alguém e não lhe confiasse seus íntimos pensamentos, a doença não se alastraria.

Matias podia ouvir o que Josué dizia, mas não podia se apresentar ou fazer conhecido. Assim, não seria infectado.

"O que você acha? Do Josué?" – Califenas perguntou, ciente de que Matias afetaria o processo terapêutico com suas palavras, mas já cansada demais para se importar.

Matias parou, pensativo. Como responder? Ele também estava em dúvidas. O paciente continuamente falava de magia, demônios, ebós e outras coisas.

Porquê complicar tanto?

O respeito a cultura religiosa dos pacientes era algo que ele aceitava como bom e adequado, mas o excesso de detalhes desconexos lhe incomodava.

Josué falava hora de deuses cristãos, hora de divindades yorubas. Misturava conceitos de extra-terrestres com psiquismo, espiritismo com bruxaria e magia cerimonial com drogas alucinógenas.

Era impossível compreender.

"Acho que ele ainda não entendeu o problema em que está. É tanta informação que ele se perdeu nela." – Respondeu por fim Matias.

"É, não é?" – Califenas olhou para Josué, que começava a ficar lento. Cada movimento de sua boca podia ser visto em câmera lenta. A Distorção Temporal protegendo seus ouvidos daquilo que sua doença não iria querer que ele escutasse.

"Bem, eu não sou o especialista. Mas, pelo que entendi, ele estava em um relacionamento difícil. A esposa se apaixonou por outro. Ele decidiu tentar continuar com a esposa, e ainda iniciar algo com o amante dela." - Matias narrava.

"Potencial amante. Eles nunca tiveram contato físico íntimo. Nem beijos nem nada, só conversas e mais conversas." – Califenas interferiu, reforçando um ponto importante de ser compreendido. Caso Matias não adicionasse isso a seu resumo da situação, o Disturbio Temporal iria ser revertido – e Josué começaria a falar intensamente rápido e furioso.

Califenas já havia visto isto muitas vezes.

"Sim, isso. Aí... deu algo de errado? O potencial amante não amava a esposa dele, ou algo assim? Isso ainda me confunde." – Matias continuou, ao que Califenas resolveu terminar seu resumo.

"Eles ouviram claramente, mas nunca tomaram Consciência, de que o rapaz mesmo disse não amar a esposa dele, mas que queria uma relação conjugal de aparências. Ela seria mãe de um filho dele, responderia como esposa dele na família, e ele ficaria livre para explorar seu desejo de vida homossexual sem ofender os pais. Ele queria uma mulher disponível para criar uma imagem para que ele pudesse se apresentar como normal e bem-sucedido aos olhos dos outros, enquanto fazia o que realmente gostava pelas costas. Foi o que ele propôs." – Califenas olhou para Josué, dessa vez tão lento que parecia paralisado no tempo.

"Uma coisa que não entendi – ela aceitou isso ou não?" – Matias perguntou, se lembrando de momentos no próprio passado.

"Ela negou, claro. Mas não antes de vir uma enorme confusão por todos eles. Muita gente tentando fazer isso acontecer, enquanto eles mesmos ficavam inconscientes e perdidos em ideias tortas do que estava acontecendo." – Califenas se aconchegou melhor nos braços do amigo, sem pretensões de esconder o que pensava. Na situação onde estavam, ela não precisava mais se fingir médico. Não precisava sequer assumir a postura e corpo de homem. O paciente estava já alterado demais para saber da diferença.

"O rapaz teria tudo que queria. Uma mulher e um filho para apresentar para família, que quando ele voltasse para casa iriam para as próprias vidas. Ele poderia levar a própria vida adiante, deixando os pais ignorantes do que ele vivia. Teria o poder espiritual familiar nas mãos, recebendo-o sem dizer para quê nem porquê. E aproveitando para o que quisesse, enquanto o paciente e a esposa simplesmente.... viviam a serviço de dar isso a ele?" – Matias parecia inseguro de sua análise. Parecia simplória demais.

"Sim. E o paciente e a esposa foram enganados e massacrados. Perderam empregos, dinheiro, adoeceram. Foram estimulados a irem um contra o outro, a baterem na filha. A se afastarem e a se odiarem. O próprio rapaz foi estimulado a dizer que iria se fazer amar a esposa do paciente, para que ela fosse recompensada no amor. Mas ela não aceitou isso e quis mais." – Califenas olhou para Josué, percebendo súbitas alterações no seu campo de Distorção Temporal. – "COBRE OS OUVIDOS!" – gritou, o pânico na voz.

Em poucos minutos, veio a Insanidade.

"Eu não sei. Essa questão toda... e se ele estava sendo sincero? E se mudou...? Quer dizer, ele e minha esposa vem do mesmo planeta. Os egos deles não são da Terra. Talvez tivesse havido ali uma compreensão mútua, algo diferente? Eu não entendo disso. Não tenho como ter certeza, sabe? Só queria mesmo que ficasse tudo claro, mas acho impossível. Acho que vamos acabar morrendo e renascendo milhares de vezes, até ficarmos tão elevados e puros que vamos lembrar disso daqui e ver tudo exatamente como é, sem nada ficar escondido. AÍ nós vamos entender."

Matias segurou Califenas em seus braços, enquanto ela chorava. Cobrir os ouvidos era desnecessário para ele, mas ele fez mesmo assim. Era a maneira de manter a sua amiga calma. E seria necessária muita calma ainda.

***

RELATORIO DE ANORMALIDADE

GOV. TERRA

Ministério da Lei Divina

03/jan/2022

Sob determinação de Vossa Exc. o JUIZ ESPIRITUAL Tzain-Mabelek, fica determinada PRISÃO PREVENTIVA ao espírito JOSUÉ MARIO por denúncia e investigação em crime de PROPAGAÇÃO INTENCIONAL DE DOENÇA MENTAL.

DECRETO E ORDENO QUE SE FAÇA CUMPRIR

Tzain-Mabelek

Juiz Espiritual, Ministério da Luz Divina

***

Hashin-Baier olhou para Josué.

Ele dormia, em sono profundo, após mais uma noite de terapia.

Seus sentimentos para com seu protegido eram mistos e confusos.

Em parte por causa do apego criado durante as eras.

Em parte por causa da insanidade.

A Doença sempre foi parte integrante de sua existência. Desde os mais remotos tempos de sua memória espiritual, o guia se dedicou a seu estudo, compreensão e cura.

Apenas lhe escapava das mãos, como tratar aquela que via a sua frente.

Em sua memória espiritual, doenças espirituais eram assunto privado. Não existia contágio. Não existia como passarem de uma pessoa a outra.

Ao menos não em seu mundo. Talvez os terráqueos fossem imunes a essa forma em específico de adoecimento.

Historiadores da medicina espiritual costumavam aceitar essa teoria, até que, nos últimos 300 anos, as coisas mudaram.

Desde os anos 1700, sinais de que Doenças Mentais Contagiosas haviam chegado ao mundo começaram a ser reportados.

Com o tempo, pistas e mais pistas foram desvendadas.

Até que o consenso foi que sempre existiram.

Ainda assim, ele duvidava.

Em meio a sua própria insanidade, em meio a sua própria clareza, Hashin-Baier, o Velho da Montanha Escura, encontrava padrões que outros não viam.

E se as Leis da Natureza estivessem mudando, e não sendo redescobertas "como verdadeiramente eram"?

E se aquilo que foi considerado Verdade no passado era de fato a Verdade, mas o que mudou foi a Verdade, e com ela o Tempo e a História do Mundo?

Haviam pistas, haviam possibilidades.

Haviam indicativos. De que era verdade, até 300 anos atrás, que Doenças Mentais não eram passiveis de contaminar os demais.

E que se tornou falso. Que a história foi reescrita.

Doenças Temporais.

A partir de um Evento, a partir da sua Chegada no Mundo, reescreviam a História, se inserindo no Presente, no Passado e no Futuro.

Eram Doenças que desafiavam a causalidade, a linearidade do Tempo.

Eram Doenças que ele não compreendia, pois mesmo seus milhares de anos de medicina, jamais lhe prepararam para um mundo onde a doença se espalhava no Rio do Tempo.

Hashin-Baier interrompeu o próprio pensamento.

Era hora de tomar um pouco de clareza. Parar de pensar. Cabeça vazia, oficina do diabo. Cabeça cheia, o diabo agora tem um torno elétrico e um martelo hidráulico na oficina.

"E então, como está a situação?" – Sua companheira lhe perguntou. Novamente utilizando um vestido vermelho, e dessa vez fumando um cigarro, Hashin-Baier notou sua entrada no quarto sem muita cerimônia.

"Continua piorando. Vamos ter que trabalhar a família e as influências que ele recebe do sangue. Está havendo muito conflito ali." - Hashin-Baier respondeu, observando como Josué dormia, seu sono intenso e raso – "não tem como continuar assim".

"E você, o que acha?" – Sua companheira virou-se para a figura sempre ao lado da esposa de seu guiado. O guardião evitou fazer comentários. Ainda assim, a mensagem foi passada.

Ele não tomaria lados. Sua função era acompanhar sua guiada e protege-la. O que fosse feito com Josué não lhe dizia respeito.

"E como você pretende fazer isso?" - Hashin-Baier recebeu a pergunta de sua companheira sabendo o que era desejado dele. Que respondesse de maneira clara. E não se negou a responder como desejado.

"Vamos abrir tudo. Mostrar para ele como funciona. Limpar, limpar, limpar. E torcer para deus olhar pela gente. Não tem outra opção."

"Muito bem. Apenas avise a menina de que você vai fazer isso".

Hashin-Baier sorriu de canto. Seria um desastre, mas do tipo que coloca a Doença em um canto e a força a revelar suas verdadeiras origens.

"Temos um outro problema também" – Ele adicionou – "O ebó".

"Um pedido feito ao Deus da Justiça. Em quem caiu a responsabilidade de dar o primeiro passo?".

"Neles" - Hashin-Baier respondeu a mulher vestida de vermelho. Sua palavra não trouxe resposta.

***

Notícia de Despejo

Ao Sr. Josué Mario

Informo ao Sr. que, pelos termos de nosso contrato de locação, venho requerir a desocupação do imóvel ora locado, assim como o pagamento dos aluguéis em atraso.

O prazo de desocupação é de um mês a partir do recebimento desse aviso.

***

Josué finalizou o trabalho com muito custo, mas sucesso.

Após entregar as chaves do apartamento que locava e se comprometer com dívida que não tinha como pagar, conseguiu enfim alguns momentos de paz.

Ainda assim, ao entrar no barracão onde agora morava com sua família, não teve prazer.

O sono foi intenso, e ele se alegrou um pouco com a possibilidade de dormir um pouco antes de ter que continuar com as tarefas do dia.

'Só mais um pouco' – Pensou ele – 'As coisas vão melhorar. Tenho certeza disso'.

Com uma esperança que fazia pouco mais que lhe dar um leve sorriso, adormeceu para ser levado, em espírito, a outro lugar.

***

No Hospital, restavam agora poucos. Califenas se permitiu respirar aliviado com a ideia, enquanto repetia para si mesmo.

"Só mais alguns dias. Mais alguns dias e vai estar tudo resolvido."

Entrar na Sala de Tratamento foi difícil. Sozinha, mais ainda.

Matias foi removido após Josué adivinhar seu nome. Uma forte culpa lhe assaltou a memória ao se lembrar do dia.

Vê-lo gritar foi doloroso. Vê-lo passar pelo que ela mesma passava a meses... foi dilacerador.

Sem outra opção, a especialista em tratamento de doenças mentais espirituais se sentou debaixo de uma árvore.

Distante, em algum lugar em meio a vasta floresta em que ela se encontrava, estava Josué.

E, a algum momento, ele iria dizer algo.

Califenas abraçou seus joelhos.

Se ela aguentasse apenas mais alguns dias...

Três pessoas.

Só faltavam três procedimentos, e ela estaria livre, para ir e nunca mais voltar.

"Assim, não é que eu ache ele um cara maldoso... ou melhor dizendo, não sei. Realmente não sei."...

Lágrimas começaram a rolar dos olhos da médica.

"mas que tem algo de errado ali, tem. Porquê ele disse que iria tentar e depois tentou exigir tempo? Nós não temos tempo. Nós negamos os dois anos que ele pediu. E mesmo assim ele age como se tivéssemos aceitado. Como se pudesse só dizer que vai tomar dois anos, ir embora e voltar para tudo estar do jeito que deixou. E eu... eu sinto isso. Eu sinto algo de errado. É como se ele estivesse nos forçando a ficar como estamos, entende? Nos forçando a voltar ao mesmo ponto em que ele foi embora, de miséria, de desgraça, de tudo dar errado..."

Califenas começou a gritar.

Baixinho.

Apenas alto o suficiente para ouvir ela mesma. Para confundir sua voz com aquela que chegava a seus ouvidos.

"eu não sei exatamente com o que a minha esposa concordou. Mas sei que depois deixamos claro que não estava dando certo e que ou mudava, ou acabava. E parece que isso foi ignorado. Parece que... ele esqueceu por querer. Por ser conveniente. É isso."

Um momento depois, e tudo tinha acabado.

Califenas se deitou em sua cama. Ali ele não podia entrar. Ali o drogado, incapacitado, imóvel, paciente psiquiátrico em constante vigilância... ali ele não poderia chegar nela.

"Só mais uma noite. Só mais uma noite, e vai acabar."

Califenas sentiu um toque frio em sua testa.

Em breve a Inteligência Artificial iria começar o procedimento.

Iria tirar outra parte de si.

Remover outro foco de doença.

E mais um pequeno pedaço do seu ser estaria preso.

Perdido, escondido. Removido dela para sempre... ou até o dia em que uma cura fosse encontrada.

E isso não lhe incomodava.

Califenas permitiu.

As vezes é melhor estar em pedaços, do que em dor.

Essa era uma dessas.

***

DECISÃO FINAL

GOV. TERRA

Ministério da Lei Divina

08/out/2022

Sob determinação de Vossa Exc. o JUIZ ESPIRITUAL Tzain-Mabelek, fica determinado o ENCERRAMENTO de prisão preventiva ao espírito Josué Mario e o reestabelecimento de sua liberdade condicionada a encarnação.

EU, Tzai-Mabelek, JUIZ ESPIRITUAL, assim determino a INOCÊNCIA do réu, anulando e removendo toda ordem de prisão ou vigilância a JOSUÉ MARIO.

Assim DECRETO E ORDENO que se FAÇA CUMPRIR.

***

Matias aguardava ansioso. Estava assim desde antes da saída do último membro da equipe do Hospital de Resgate aos Insanos e Dementes de Nova Esperança, e a demora apenas piorou sua sensação de desalento.

Tudo estava seguindo como o planejado. Eles estavam dentro do tempo previsto, e nada de incomum estava ocorrendo.

Mas, ainda assim, não havia nada que ele pudesse fazer.

Esse momento era de ansiedade, e não só para ele.

Haviam outros ali – colegas, amigos, vizinhos, família.

Todos esperando por ela.

Os minutos passaram lentamente, e desejos mistos podiam ser vistos entre todos.

Alguns queriam correr. Desaparecer. Desistir da tentativa de superação do trauma.

Outros queriam ir ao encontro de Califenas. Pensando no seu sofrimento, no quanto havia suportado pelo bem de todos, queriam apenas chegar até ela e lhe dar um abraço.

Outros se entediavam, e alguns olhavam com desgosto para o grupo de guias espirituais levemente distanciados.

Os guias espirituais de Josué Mario.

Havia ficado claro a muito, que era de conhecimento deles que o quadro do seu guiado era contagioso.

Em defesa própria, disseram que o quadro foi informado a equipe do Hospital em detalhes.

E, ao se ler com cuidado os papeis apresentados, de fato se encontravam múltiplos avisos quanto a possibilidade de contágio e métodos de prevenção.

Ainda assim, ninguém viu.

Nenhum médico, nenhum coordenador. Ninguém da equipe que cuidava do doente. Ou viram... e esqueceram.

O pensamento era revoltante. O pensamento era nauseante. E o desejo... era de que sumissem.

De que desaparecessem do mundo, para o bem de todos.

Perante doença tão perigosa, como ousavam continuar a existir? A estar em meio aos demais, a não se afastar para todo sempre?

Como ousavam sequer trocar palavra?

"CALIF!" – Matias gritou, correndo em direção a Califenas.

Um abraço apertado, um beijo. E ela colapsou em seus braços.

Atrás de si, o hospital. Nele, única e exclusivamente Josué Mario.

A curiosidade em sua mente deu lugar ao cansaço, quando o fogo começou a se espalhar.

O incêndio não o mataria. Se fosse tão fácil assim destruir aquela pessoa, nada disso teria acontecido.

Nem o Tempo, nem o Vazio, nem os Elementos ou o Destino.

Aquela doença não seria destruída por nada disso.

Era desesperador, era triste, era incompreensível.

Era mais do que ela deveria, precisava ou se dispunha a tentar compreender.

Califenas desistiu de pensar. Se entregando ao abraço do seu amado, seu corpo se tornou leve e o sono lhe tomou. Ela queria sonhar. Ela queria se esquecer. E queria seguir adiante.

Matias lhe abraçou e levou consigo.

O pesadelo havia acabado.

***

"Faltou o aviso de que a doença seria atacada, junto com todo o resto" – Shuzu, a Eterna Criança, comentou enquanto mastigava um pirulito – "O problema das pessoas, é achar que doença é um bicho burro, ou bactéria em laboratório. Tem doença que é maior que a gente."

Malik não se importou com o que dizia Shuzu. Tinha coisas melhores a pensar.

"Malik, prepara doce pra mim?" – Shuzu disse, puxando sua blusa.

"Caramelo com gengibre moído" – Malik disse, transmitindo pela voz a ideia, imagem e visão que teve daquilo que saciaria a vontade do seu companheiro de tarefa.

"Pode ser." – Shuzu se sentou por cima da barriga do corpo de Josué, aguardando.

Em breve ele teria mais o que fazer. Mais doces para comer, mais pessoas a quem avisar.

Pois quem avisa, amigo é.

"Aqui está." – Com o doce em sua frente, Shuzu ocupou seus dentes inquietos. Morder era o que lhe importava. Desde que pudesse morder algo, estaria satisfeito. – "No fim das contas, foi esse o problema?"

"Não. Só o que impossibilitou que qualquer coisa resolvesse mesmo. Tem deuses que fazem o que é normal para eles fazerem, mesmo sabendo que vai dar errado. É porquê eles são daquele jeito, fazem as coisas daquele jeito. Então atacaram a doença junto do Josué, e ela tornou tudo impossível de resolver. Mas o que precisava era, mesmo mesmo, muito simples." – Shuzu lambeu um de seus dedos, antes de continuar. - "Era só entender, que primeiro eles aceitaram ser ferramentas para o rapaz chegar onde queria, com confiança de que, com o tempo, podiam influenciar ele para chegar a um lugar melhor. Depois de serem maltratados e verem qual seria o custo, mudaram de ideia. E quando mudaram, avisaram que estava havendo mudança e que não seria mais aceito o que havia antes sido combinado. O rapaz então reagiu para forçar eles ao que tinham combinado antes... e aí tudo virou confusão."

"Se submeter para subverter" – Malik percebeu o que Shuzu pretendia dizer – "Mas o custo da submissão..."

"Era vida, destino, propósito, corpo, mente e espírito" – Shuzu deixou os doces de gengibre de lado, e se deitou no sofá, brincando com uma pena de pavão. – "Não valia a pena".

"Uma armadilha esperta, cobrar dos outros pelo 'benefício' de se submeterem ao seu poder e leis" – Malik colocou amêndoas em um copo com água – "Me pergunto como os guias da esposa do Josué não perceberam isso. Eles devem conhecer esse tipo de prática."

"Estavam ocupados demais tentando construir uma utopia, né? Ela assumiu para si um destino de trazer conforto e felicidade para o rapaz lá, encantada com como ele conversava bem e como fazia agrados para ela quando ela estava cansada, triste ou abalada. Achou que se ele fazia aquilo a distância, por perto ia fazer muito mais. Ela começou a trazer os planos para realidade... os guias dela tinham que correr para mudar tudo o melhor o possível, ou ia ser uma vida a serviço do conforto dele." – Shuzu guardou a pena de pavão e olhou para o teto. Em breve ia ser hora de acordar o seu guiado.

"Receber cuidado, ser nutrida, provida e dada segurança e amor amigo. No fim, é o que ela buscava" – Malik removeu o caroço de uma azeitona – "E com tanta sede que estava disposta a pagar quase qualquer preço para isso".

"Até a hora que ele mostrou que não ia trazer pra realidade quando ela precisava, sabe? Quando ela disse que precisava que ele começasse a se mover, isso era a deixa de que ela precisava de cuidado imediato. Que ela precisava que ele parasse de dar só carinho e cuidado a distância quando ela estava triste, e vir dar segurança e estabilidade presencial. Mas isso seria muito sacrifício para ele, então ele não quis. De que adianta dar cuidado só quando é de benefício para si mesmo? Não era isso que ela precisava." – Shuzu fechou os olhos, esticando os braços – "Ela precisava de quem a socorresse na hora da necessidade, e na hora da necessidade ele mostrou que não viria. Que só viria quando não fosse incômodo demais. Ele não estava disposto ao mesmo nível de sacrifício que ela estava, e quando a desigualdade apareceu, ficou claro que era uma exploração por tentação, e não por amor. A Verdade é essa".

"Você quer sua cocada com açúcar mascavo ou açúcar branco?" – Malik perguntou para Shuzu, que pulou de cima do guiado para responder - "Mascavo!".

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