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III.

O som do cartucho cheio de balas 9 milímetros sendo colocado dentro da pistola semi-automática de Amelia chamou a atenção de Liam que não conseguiu evitar de checar de canto de olho. Ela estava fazendo uma última verificação durante o caminho até a zona industrial no norte da cidade. O jovem sentiu seu coração apertar pela segunda vez naquela madrugada. A parceira tinha costume de andar armada, apesar de dificilmente disparar, mas se ela estava revisando era porque estava mais do que pronta para usá-la. 

O couro do volante reclamou pelo aperto dele mais uma vez. Naquela hora, Amelia reparou, já que estava no banco do carona. 

— Relaxa… — disse bufando. — Não pode ficar nervoso toda a vez que sairmos. 

— Não é toda vez que saímos… — ele rebateu. Era só quando a vida dela estava em jogo. 

Depois de alguns anos de amizade, ele sabia bem o quão instável ela poderia ser e era por isso que Gary concordava com ele sempre estar com ela. 

Liam, diferente da morena, nunca foi o tipo de cara que se envolvia em confusão. Ficar em casa trabalhando com segurança cibernética, hackeando grandes redes sociais para ganhar uma grana… Esse era seu plano. E era o que ele pretendia com a Diamond Rose. Jamais imaginou que eles o achariam e muito menos que o recrutariam. O chefe já tinha decidido mandá-lo para a inteligência, com os outros "nerds", mas tudo mudou quando… Amelia. Ela era o evento de sua vida. 

A química dos dois, sua sincronia… Era perfeita. Gary não podia separar sua melhor dupla de recrutas. Mesmo um sendo medroso e o outro maluco. Liam ainda lembrava do dia em que a garota foi promovida a número dois. O burburinho na organização foi intenso por semanas. Os rumores começaram desde nepotismo até prostituição. E óbvio que ela fez questão de achar cada um que falava essas coisas e arrebentar seu rosto até que tivesse dobrado de tamanho. Assim ela foi ganhando o respeito, e o temor, dos homens abaixo dela.

Durante as missões, a função de Liam era ser quem mantinha Amelia "sob controle". Claro que isso era algo utópico, não há como controlar uma alma selvagem. Mas ele conhecia aquela personalidade como a palma de sua mão, talvez até melhor, e sempre tinha uma maneira de acalmar os ânimos da amiga. E ela gostava disso. Sabia que quando perdia as estribeiras as coisas ficavam feias bem rápido e se não voltasse aos seus sensos poderia comprometer a organização, e erros eram inaceitáveis. Mas além de ajudá-la a seguir os planos com cautela, ele tentava ao máximo protegê-la. Para ele, não era sobre a família e sim sobre ela. Seu maior medo era que em algum momento ela perdesse a cabeça e se machucasse. Ou morresse. E ele sabia que isso era uma possibilidade latente. 

— Você sabe que sei o que estou fazendo. — a voz da morena era calma e até um pouco ríspida, como se quisesse mostrar pra ele que estava bem. 

— Eu sei? — perguntou ironicamente. Um sorriso brincalhão surgiu no canto dos lábios dele. Amelia revirou os olhos, fingindo estar irritada. 

— Não enche…— resmungou.

Quando desceram do carro, do outro lado da rua do pequeno prédio comercial onde os servidores ficavam, o céu começava a ficar mais claro ao leste, indicando que eles não tinham muito tempo até o sol nascer e as calçadas começarem a encher. A garota bateu a porta logo depois de esconder a arma no coldre debaixo do braço esquerdo, sob a jaqueta de couro. Enquanto atravessava o asfalto, as mãos claras amarraram os cabelos, contrastando com os fios escuros. Liam apertou o passo logo depois de trancar o veículo antes que a perdesse de vista. Ao chegar próximo da entrada, o jovem já se colocou em alerta enquanto a parceira destrancava a fechadura eletrônica ao lado da porta de vidro. O edifício não tinha nenhuma identificação do lado de fora. Eram quatro andares com janelas escuras, uma estrutura um pouco velha, nada chamativo. Quem via de longe até poderia imaginar que algumas empresas tinham salas comerciais para seus funcionários ali. Por dentro era outra história. Os corredores que levavam aos escritórios eram claros e limpos, não havia nenhum rastro de que alguém frequentava o local diariamente. Já atrás das portas havia várias mesas, cubículos, computadores… Mas nenhuma companhia. Era tudo fachada. 

Amelia caminhou com cautela, ouvindo o eco de seus passos a cumprimentando. Esperava encontrar a outra equipe, mas tudo parecia vazio, intocado. Dentro do coração do amigo, porém, uma sensação de que alguma coisa não estava certa martelava tão alto que ele tinha certeza que ela estava ouvindo.

— Ames, tem algo errado… — tentou alertá-la, mas ela já estava concentrada demais para ouvir. 

Os dois se dirigiram até o fundo do local, entrando em um espaço que parecia um refeitório. Algumas mesas no centro rodeadas com armários discretos e eletrodomésticos comuns, geladeira, dois microondas, uma cafeteira… Tudo extremamente limpo, parecia que aquela sala havia sido mobiliada há poucos meses. Quando passou pela porta, sua mão automaticamente foi até o interruptor no lado esquerdo, o movimentando com uma certa velocidade. Nenhuma luz pareceu acender. Mas havia energia nos postes externos… Será que era uma pane elétrica? Enquanto a mente dela procurava respostas, Liam iluminou o espaço com a pequena lanterna de bolso que sempre carregava. 

— As luzes do corredor estão ligadas? — perguntou enquanto ia até uma das estantes de armazenamento, enfeitada com utensílios de cozinha, potes de biscoito e latas de refrigerantes. Ela se agachou, levando as mãos até a penúltima prateleira, tateando a parte inferior da mesma. Um som de clique se ouviu mas, mais uma vez, nada aconteceu. 

— Só as de emergência. — a resposta do amigo veio depois dele checar mais uma vez pela fresta da porta. — Essa entrada não é alimentada pelo gerador?

— Deveria ser… — disse Amelia, enfiando a mão no bolso da calça, tirando um chaveiro discreto, com quatro chaves, apenas. Os dedos pareciam confusos procurando o buraco da fechadura escondida ali. Demorou uns bons segundos, mas ela conseguiu. Quando virou a chave, o móvel pareceu se soltar da parede. Liam se aproximou a ajudando a levantar e puxar aquela abertura secreta. Era como uma porta de um cofre de banco, pesada com o interior metálico. Uma nova passagem se revelou, porém, estava banhada pela escuridão. Com a luz da tela de seu celular, ela iluminou uma escada que levava para um porão fundo, igualmente sombrio.

Suas pernas não demoraram para iniciar a descida e o amigo teve que se apressar atrás dela, tentando clarear os próximos passos dela, e seus também. As luzes de emergência pareciam estar sem bateria, como se tivessem ficado ligadas por muito tempo.

A ansiedade parecia estar prestes a partir o coração de Liam em dois. 

— Olha, Ames… Isso tá estranho… A gente deveria procurar a equipe que desa-

— Nossa prioridade é o servidor, L. Você sabe disso. — ela o interrompeu.

— A sala é blindada… É melhor a gente garantir que tá seguro antes de se arriscar assim… 

— Se arriscar? — indagou impaciente. Era claro que só pensava em checar os aparelhos. 

— Ames… — ele sussurrou. Ela estava irredutível.

No final daquele corredor tinha uma porta grande, metálica, com um pequeno teclado numérico ao lado. As teclas estavam iluminadas em azul. Somente Gary e ela sabiam as senhas das salas dos servidores. E era assim porque o chefe sabia que ela perderia até a própria vida antes de revelar aqueles seis números. Os dedos finos, com unhas pintadas de esmalte preto levemente descascadas, digitaram código fazendo os bipes soarem pelo breu do local. 

E mais uma vez, como a entrada de um carro forte, o ferro pesado soltou-se da parede dando passagem para a sala iluminada com milhares de luzes que piscavam. Eram inúmeras torres pretas, com portas de vidro. No fundo, algo vermelho chamou a atenção dos olhos de Amelia. Quando chegou mais perto ouviu um som agudo, como uma máquina com defeito que pedia por reparo, intermitente. Abriu uma das folhas transparentes que protegia os computadores, puxou uma gaveta e abriu uma pequena tela de algo que parecia um laptop.

Ela sabia o que estava fazendo, graças a Liam. Ele ensinou tudo o que pode sobre aquele universo. Claro que ela tinha seus limites, mas sabia o bastante para identificar o problema.

— Está quente aqui… — a voz preocupada dele observou. 

— Uhum… — ela concordou, gesticulando com a cabeça para que ele se aproximasse de onde estava. — O sistema de controle superaqueceu e entrou em modo de segurança. 

Os olhos dele olharam a tela por cima do ombro dela. Ele queria se sentir aliviado por ser algo simples de resolver, mas aquela sensação de estarem em perigo não saía de seu peito. 

— Ah… É por isso que perdemos a conexão… Mas e o gerador? — perguntou, apontando para a tela onde ela deveria ir. Ela seguiu a instrução com o mouse.

— Hm… Desligado. Está sem combustível… As placas solares até conseguem alimentar o ar condicionado durante o dia, mas a noite a bateria é dedicada só para os computadores. 

— Ok… Então só precisamos esperar o sol nascer e reiniciar. Durante o dia é mais fácil mandar um time para verificar o gerador. 

Então ela o olhou com o olhar que ele estava temendo ver naquela noite. Era o olhar de quem tinha um plano diferente. 

— Por que esperar? Se reiniciarmos agora, vai demorar até o sistema aquecer… Enquanto eu fico aqui, você checa o gerador. 

— Você… Você só pode estar de brincadeira. — Liam parecia perder a paciência. — Ames, isso é claramente o que a Suzan quer! Alguém dela deve estar esperando a gente lá! 

Ela suspirou, um pouco irritada com aquela atitude. Odiava quando ele a questionava. 

— Liam, o gerador fica no telhado do prédio. Como ela estaria lá? A gente teria visto nas câmeras. No máximo ela deve ter cortado a energia da rua e esperou alguém aparecer para se vingar do Gary pelos caras que ela perdeu… Se ela estivesse esperando a gente já teria nos atacado… — A linha de pensamento dela quase fez sentido na cabeça dele. — Por favor, vai… Você sabe que ela é baixa, mas é covarde. 

O mais novo esfregou o rosto tentando amenizar o estresse que estava sentido. Ficou pensando por alguns segundos enquanto suspirava como se fosse a escolha mais difícil do mundo. Só não queria a deixar sozinha. Ele tentou afastar os pensamentos ruins olhando para o rosto da garota que tanto gostava. Reparou os olhos vermelhos, as olheiras escuras, uma veia dilatada perto da orelha… Ela também estava cansada. E ali seu coração amoleceu. O que ele não faria por ela? E era Amelia que tinha o conhecimento tático, não é? Seu coração ainda estava inseguro. 

— Está bem… — disse, relutante. Ele mordeu o lábio inferior antes de continuar. — 10 minutos. Eu vou subir e você fica aqui, sem sair. Se eu não voltar em 10 minutos, você chama reforços.

— Tá bom. — concordou, desviando o olhar pra ele. 

— E não abre essa porta se não tiver certeza de que sou eu, entendeu? 

— Tá! Vai logo… — ordenou. 

Os passos de Liam demoraram para apontarem para a porta. Ele queria ter certeza que ela havia entendido o plano e ver o rosto dela mais uma vez. Depois que saiu da sala, subiu as escadas pulando alguns degraus com suas pernas compridas, tomando cuidado para não tropeçar no escuro. Eram mais 5 andares depois que voltasse para o térreo. Sua mente não parava de cogitar todas as possibilidades, positivas e negativas, se preparando para qualquer coisa que pudesse acontecer. 

Enquanto isso, os dedos de Amelia batiam impacientes contra uma das molduras metálicas de uma porta de vidro enquanto via uma barra de progresso encher lentamente. Aquele era o servidor mais antigo e já estava clamando por uma atualização. O que aconteceu ali jamais aconteceria em qualquer outro. Ela pendeu a cabeça de um lado para o outro, esticando o pescoço, tentando relaxar. Depois de longos minutos, o sistema estava de volta online fazendo um sorriso confiante aparecer em seu rosto. Enquanto fazia os últimos testes, uma notificação apareceu no canto inferior da tela. 

"Sistema de câmeras: FALHA CRÍTICA!"

A pequena caixa estava decorada com um triângulo amarelo com uma exclamação no meio. Instintivamente ela clicou pelo menos 8 vezes naquela mensagem. Quando a interface da segurança apareceu, haviam inúmeras gravações com um aviso de "não sincronizado". Ali ela percebeu que ela tinha cometido um erro grave. 

Liam abriu a porta do telhado, se deparando com um céu um pouco mais claro do que quando entraram. O dia começava fazendo a temperatura subir um pouco mais do que o dia anterior. Ou será que era o cansaço de todos os lances de escada que subiu? Ele afrouxou um pouco a gravata caminhando até o gerador, cruzando o concreto daquele terraço. Seus passos eram pesados, igualmente cansados aos da amiga, mas ele precisava manter-se presente, alerta. 

E seu coração quase parou quando viu dois homens de sua organização estirados no chão. 

"Amelia!"

Antes que pudesse identificar se alguém respirava, ele deu meia volta. Correu mais rápido do que achou que conseguia para se deparar com a porta do telhado trancada. O coração que quase parou agora fez uma força enorme para acompanhar o choque de adrenalina que apanhou o jovem. 

Os olhos de Amelia percorriam a tela com pressa, tentando identificar o que tinha sido perdido das gravações. Liam estava certo. Os homens de Suzan estavam no telhado. Eles atacaram a equipe anterior e invadiram o prédio em peso. Eram muitos, mais do que conseguia contar nas imagens. Ela queria ir atrás do amigo, mas precisava ter certeza de que ninguém tinha descido atrás dela. Antes que terminasse de assistir os vídeos, ouviu quatro batidas na porta. Ela conhecia aquelas batidas. Era como Liam avisava que era ele. 

Seus passos foram rápidos para ir até ele. Se ficassem juntos ela sabia que iam dar conta. 

— Liam, você estava certo! E-Eles subiram e - — seu sangue gelou quando viu que atrás da parede blindada de metal, tinha uma mulher. Loira, de quadris largos, um vestido vermelho de grife. Podia jurar que tinha saído de algum jantar da alta sociedade. 

— Ei, gracinha. Quanto tempo. — Suzan cumprimentou-a, mostrando as lentes dos dentes por entre os lábios rubros.