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LXXXIII. CARIDADE

No dia seguinte compareci à loteria do exame de admissão ostentando minha primeira ressaca.

Debilitado e com uma vaga náusea, entrei na fila mais curta e procurei ignorar a barulheira das centenas de estudantes que circulavam comprando, vendendo, trocando e, de modo geral, reclamando dos horários sorteados para suas provas.

— Vanitas, filho de Meridan — disse eu, quando enfim cheguei à frente da fila. A mulher de ar entediado assinalou meu nome e me mandou tirar uma pedrinha da sacola de veludo preto. Dizia: "Haeten: meio-dia."

Dali a cinco dias, tempo de sobra para eu me preparar.

Quando me virei para o Cercado, entretanto, ocorreu-me uma ideia. De quanta preparação eu precisava, de verdade? E, o mais importante, quanta poderia realmente conseguir sem ter acesso ao Arquivo?

Depois de refletir, levantei a mão acima da cabeça, com o polegar e o dedo médio esticados, em sinal de que tinha um horário dali a cinco dias e estava disposto a vendê-lo.

Não demorou muito para que uma aluna desconhecida se aproximasse.

— Daqui a quatro dias — disse-me, exibindo sua pedrinha. — Eu lhe dou um iyane para trocar.

Abanei a cabeça. Ela deu de ombros e se afastou.

Galvin, um A'scor da látrica, aproximou-se. Ergueu o indicador, mostrando que tinha um horário para essa mesma tarde. A julgar pelas olheiras e pela expressão angustiada, não me pareceu que estivesse ansioso por se submeter à prova tão depressa.

— Você aceita cinco iyanes?

— Eu gostaria de receber um crimo inteiro...

Ele assentiu com a cabeça, girando sua pedrinha entre os dedos. Era um preço justo. Ninguém queria submeter-se ao exame de admissão no primeiro dia.

— Mais tarde, talvez. Primeiro vou dar uma olhadinha por aí.

Ao observá-lo afastar-se, admirei-me com a diferença que um simples dia era capaz de fazer. Na véspera, cinco iyanes teriam parecido todo o dinheiro do mundo. Nesse dia, porém, minha bolsa estava pesada...

Eu me perdia em vagas ruminações sobre quanto dinheiro tinha realmente ganho na noite anterior quando vi Alastor e Leif se aproximarem. Alas parecia meio pálido sob a tez cealdama e morena. Achei que também devia estar sofrendo os efeitos de nossa noite de curtição.

Sim, por outro lado mostrava-se alegre e ensolarado como sempre.

— Adivinhe quem sorteou horários para hoje à tarde — disse, fazendo um sinal com a cabeça por cima do meu ombro. — O Drazno e vários amigos dele. É o quanto basta para me fazer acreditar num universo justo.

Virando-me para examinar a multidão, ouvi a voz de Drazno antes de vê-lo:

— ...da mesma sacola, o que significa que mexeram as pedras como a cara deles. Deviam recomeçar toda essa impostura mal administrada e...

Ele caminhava com vários amigos bem-vestidos, cujos olhos vasculhavam a aglomeração à procura de mãos levantadas. Drazno estava a uns 4 metros de distância quando finalmente olhou para baixo e percebeu que a mão para a qual se dirigia era a minha.

Parou, fechando a cara, depois deu uma risada súbita, tossida.

— Coitadinho! Todo o tempo do mundo e não tem como gastá-lo. O Loran ainda não o deixou entrar?

— Martelo e bigorna — disse Alas às minhas costas, cansado.

Drazno me deu um sorriso.

— Vamos fazer o seguinte: eu dou meio lumen e uma das minhas camisas velhas pelo seu horário. Assim você terá alguma coisa para vestir enquanto estiver lavando essa aí no rio.

Alguns de seus amigos riram atrás dele, olhando-me de alto a baixo.

Mantive uma expressão indiferente para não lhe dar a menor satisfação. A verdade é que eu tinha plena consciência de que só possuía duas camisas e, após dois períodos letivos de uso constante, elas estavam ficando surradas. Mais surradas. E, pior, eu as lavava mesmo no rio, já que nunca tinha dinheiro de sobra para a lavanderia.

— Dispenso — retruquei, em tom despreocupado. — As golas das suas camisas são um pouquinho tingidas demais para o meu gosto.

Puxei a frente da minha camisa, para deixar clara a ideia. Alguns estudantes próximos riram.

— Não entendi — ouvi Leif dizer baixinho a Alas.

— Ele deu a entender que o Drazno está com... — Alas fez uma pausa — ...Terand tass, uma doença que se pega com prostitutas. Ela dá um corrimento...

— Está bem, está bem — apressou-se a dizer Leif. — Já entendi. Argh! E, ainda por cima, o Drazno está de verde.

Enquanto isso, Drazno obrigou-se a rir da minha piada com os outros:

— Acho que mereci essa. Muito bem, moedinhas para os pobres. Quanto você quer? — perguntou, pegando a bolsinha e sacudindo-a.

— Cinco crimos.

Ele me encarou, paralisado no ato de abrir a bolsa. Era um preço escandaloso. Alguns espectadores se cutucaram, obviamente torcendo para que, de algum modo, eu tapeasse Drazno e o fizesse pagar várias vezes o valor real do meu horário.

— Desculpe. Você precisa que eu converta esse valor? — perguntei.

Era sabido que Drazno se dera mal na parte de aritmética do exame de admissão para o período letivo anterior.

— Cinco é um valor ridículo. Você terá sorte se arranjar um, tarde como já é.

Forcei um dar de ombros despreocupado.

— Eu aceitaria quatro.

— Você aceitará um — insistiu Drazno. — Não sou idiota.

Respirei fundo e soltei o ar, resignado.

— Imagino que eu não consiga fazê-lo chegar a... um e quatro, talvez? — perguntei, enojado com o tom lamuriento da minha voz.

Drazno deu um sorriso de tubarão.

— Façamos o seguinte — disse, com ar megalomaníaco. — Dou-lhe um e três. Não me acanho em fazer uma caridade de vez em quando.

— Obrigado, senhor — retruquei em tom manso. — Fico-lhe muito agradecido.

Senti a decepção da plateia ao ver que eu me humilhara feito um cão pelo dinheiro de Drazno.

— Não há de quê — fez Drazno, convencido. — É sempre um prazer ajudar os necessitados.

— Em moeda de Mitreza, são dois nóbulos, seis laskas, dois lumens e quatro gusas.

— Sei fazer minha própria conversão — rebateu ele. — Viajo pelo mundo inteiro com o comitiva do meu pai desde pequeno. Sei como se usa o dinheiro.

— E claro que sabe. Bobagem minha — disse eu, baixando a cabeça.

Depois ergui os olhos com uma expressão de curiosidade.

— Quer dizer que você esteve em Serenia?

— É claro — respondeu ele, distraído, enquanto continuava a enfiar a mão na bolsinha e a tirar um sortimento de moedas. — Aliás, estive na câmara alta de Sershaen. Duas vezes.

— É verdade que a nobreza sereniana vê a barganha como uma atividade desprezível para as pessoas de linhagem nobre? — perguntei com inocência. — Ouvi dizer que ela a considera um sinal certeiro de que a pessoa é de baixa estirpe, ou enfrenta dificuldades realmente aflitivas...

Drazno me olhou, parando a meio caminho no ato de catar moedas na bolsa. Seus olhos se estreitaram.

— Porque, se for verdade — prossegui —, é uma enorme gentileza sua descer ao meu nível só pela diversão de uma barganhazinha. Nós, os Therion, adoramos pechinchar.

Houve um murmúrio de riso na aglomeração à nossa volta. A essa altura, ela havia aumentado para várias dezenas de pessoas.

— Não é nada disso — retrucou Drazno.

Meu rosto se converteu numa máscara de preocupação.

— Ah, sinto muito, milorde. Eu não fazia ideia de que o senhor estava passando por dificuldades... — comentei.

Dei vários passos em direção a ele, mostrando minha pedrinha do exame de admissão:

— Tome, pode ficar com ela por apenas meio lumen. Também não me acanho em fazer um pouquinho de caridade. — Parei bem diante dele com a pedra na mão. — Por favor, eu insisto, é sempre um prazer ajudar os necessitados.

Drazno fuzilou-me com os olhos.

— Pois pode engoli-la e morrer engasgado — sibilou para mim em voz baixa. — E lembre-se disso quando estiver comendo feijão e lavando a roupa no rio. Ainda estarei aqui no dia em que você for embora sem nada nos bolsos além das mãos.

Virou as costas e se foi: a própria imagem da dignidade afrontada. Houve uma pequena salva de palmas na multidão que nos cercava. Fiz mesuras cheias de floreios em todas as direções.

— Que nota você daria a essa? — perguntou Alas a Leif.

— Dois para o Drazno. Três para o Vani — disse Leif, virando-se para mim.

— Não foi o seu melhor trabalho, na verdade.

— Não dormi muito esta noite — admiti.

— Toda vez que você faz isso torna a represália eventual muito pior — comentou Alas.

— Não há nada que possamos fazer além de desfeitear um ao outro. Os professores se certificaram disso. Qualquer ato extremo nos levaria a sermos expulsos por Conduta Imprópria de um Membro do Arcano. Por que você acha que não transformei a vida dele num inferno?

— Porque é preguiçoso? — sugeriu Alas.

— A preguiça é uma das minhas melhores características — retruquei serenamente.

— Se eu não fosse preguiçoso, poderia ter me dado ao trabalho de traduzir terand tass e ficado terrivelmente ofendido ao descobrir que quer dizer "pingadeira dos Therion". — Tornei a levantar a mão, com o polegar e o dedo médio esticados. — Em vez disso, prefiro presumir que a expressão se traduz diretamente pelo nome da doença, coserria, e assim prevenir qualquer tensão desnecessária na nossa amizade.

Acabei vendendo meu horário para um A'scor desesperado da Ficiaria, chamado Jaxon. Pechinchei um bocado e troquei meu horário por seis iyanes e um favor, a ser indicado posteriormente.

O exame de admissão correu tão bem quanto seria de esperar, considerando-se que não pude estudar. Hilme continuava ressentido. Loran mostrou-se frio. Elohkar baixou a cabeça na mesa e pareceu adormecido. Minha taxa escolar custou seis crimos inteiros, o que me deixou numa situação Interessante...

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