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LXXV. FOLES PT.2

Corri os olhos pela Foles do modo mais despreocupado que consegui estampar. Um palco circular elevado projetava-se da parede em frente ao bar curvo de mogno. Várias escadas em espiral levavam a um segundo piso, muito parecido com uma sacada. Acima dele se via um terceiro nível, menor, que mais lembrava uma sacada elevada contornando o salão.

Bancos e cadeiras circundavam todas as mesas do térreo. Também havia bancos recuados em nichos nas paredes. Lâmpadas de simpatia se misturavam às velas, conferindo ao aposento uma luz natural, sem empestar o ar com fumaça.

— Bem, essa foi muito esperta — disse Leif, mal-humorado. — Ardonai misericordioso, procure me avisar antes de fazer outras gracinhas, sim?

— O que foi? — perguntei. — A conversa com o porteiro? Leif, você está nervoso como uma prostituta adolescente. O homem foi amável. Gostei dele. Qual é o problema de lhe oferecer uma bebida?

— O Droch é dono disto aqui — rebateu Leif com rispidez. — E tem absoluto horror a que os músicos lhe puxem o saco. Há duas onzenas pôs um sujeito no olho da rua por tentar dar-lhe uma gorjeta. Na verdade, atirou-o na rua. Longe a ponto de ele quase cair na fonte.

Ah! — exclamei, justificadamente assustado.

Olhei de relance para Droch, que conversava com outra pessoa na porta. Vi os músculos grossos de seu braço se retesarem e relaxarem quando ele fez um gesto para o lado de fora.

— Ele lhe pareceu aborrecido? — perguntei.

— Não, não pareceu. Isso é que é o mais esquisito.

Alastor se aproximou de nós.

— Se vocês dois puderem parar de mexericar e ir para a mesa, eu pago a primeira rodada, Thyn?

Seguimos para a mesa que ele havia escolhido, não muito longe de onde Radagon estava sentado no bar.

— O que querem beber? — perguntou Alastor, enquanto Leif e eu nos sentávamos e eu acomodava meu estojo com o alaúde na quarta cadeira.

— Hidromel com canela — respondeu Leif, sem parar para pensar.

— Mocinha — disse Alastor, em tom vagamente acusatório, e se virou para mim.

— Sidra — escolhi. — Sidra sem álcool.

— Duas mocinhas — comentou ele, e partiu em direção ao bar.

Apontei para Radagon com a cabeça.

— E ele? — perguntei a Leif. — Pensei que ele fosse o proprietário.

— Os dois são. O Radagon cuida da parte musical.

— Há alguma coisa que eu deva saber sobre ele? — indaguei, visto que minha quase catástrofe com Droch havia aguçado minha ansiedade.

Leif abanou a cabeça.

— Ouvi dizer que é muito animado, mas nunca conversei com ele. Não faça nenhuma besteira e ficará tudo bem.

— Obrigado — respondi com sarcasmo, afastando a cadeira da mesa e me levantando.

Radagon era de estatura mediana e usava um traje elegante, verde-escuro e preto. Tinha o rosto redondo e barbudo e uma barriguinha discreta, que provavelmente só era perceptível por ele estar sentado. Sorriu e fez sinal para que eu me aproximasse, usando a mão que não estava segurando um caneco impressionantemente alto. 

— Olá! — disse, em tom animado. — Você tem um ar esperançoso. Veio tocar para nós esta noite? — Levantou uma sobrancelha especulativa.

Agora que estava mais perto, notei que o cabelo de Radagon era de um branco claro e tímido, que se escondia-se no loiro quando a luz incidia nele pelo lado errado. Um contraste absoluto ao seus olhos vermelhos escarlate.

— Espero que sim, senhor. Mas estava planejando esperar um pouco.

— Ah, certamente. Nunca deixamos ninguém arriscar seu talento antes do pôr-do-sol.

Ele parou para tomar um gole e, quando virou a cabeça, vi que tinha uma gaita-de-foles de ouro pendurada na orelha.

Com um suspiro, enxugou alegremente a boca na manga.

— E o que você toca? Alaúde?

Fiz que sim.

— Tem alguma ideia do que vai usar para nos seduzir?

— Isso depende, senhor. Alguém já tocou O Lar de Sir Silver Thelliar ultimamente?

Radagon levantou uma sobrancelha e pigarreou. Alisando a barba com a mão livre, respondeu:

— Bem, não. Alguém arriscou uma tentativa uns meses atrás, mas o mundo era maior do que ele podia abarcar com as pernas. Errou uns dois dedilhados e desmoronou — concluiu. Abanou a cabeça e completou: — Em termos simples, não. Não ultimamente.

Bebeu outro gole do caneco e engoliu, pensativo, antes de tornar a falar:

— A maioria das pessoas acha que uma canção de dificuldade mais moderada lhe permite exibir seu talento — disse, com ar cauteloso.

Intuí seu conselho não verbalizado e não me ofendi. Sir Silver era a música mais difícil que eu já tinha ouvido. Na trupe, meu pai tinha sido o único com habilidade para executá-la e eu só o ouvira tocá-la diante de uma plateia talvez umas quatro ou cinco vezes.

A música durava apenas uns 15 minutos, mas esses 15 minutos exigiam um dedilhado rápido e preciso que, se corretamente executado, fazia duas vozes cantarem ao mesmo tempo no alaúde: a melodia e o acompanhamento.

Era complicado, mas nada que um músico habilidoso não pudesse tocar. Sir Silver era uma balada, e a parte vocal era um contracanto cujo ritmo contrastava com o do alaúde. Difícil. Se a música fosse adequadamente executada, com um homem e uma mulher alternando os versos, complicava-se ainda mais por causa do contracanto da voz feminina nos refrões. Se bem executada, ela era de cortar o coração. Infelizmente, poucos músicos conseguiam apresentar-se com calma em meio a tamanha tempestade melódica.

Radagon tomou outro gole grande do caneco e enxugou a barba na manga.

— Você vai cantar sozinho? — perguntou, parecendo meio empolgado, apesar de sua advertência. — Ou trouxe alguém para fazer o contracanto? Um dos rapazes com que você veio é castrati1?

Lutei para reprimir o riso ao pensar em Alastor como soprano e abanei a cabeça.

— Não tenho nenhum amigo que saiba cantá-la. Pretendia dobrar o terceiro refrão, para dar a alguém a oportunidade de entrar no papel de Aloise.

— No estilo das trupes, hein? — comentou ele, dirigindo-me um olhar sério. — Filho, não cabe a mim dizer isso, mas você quer mesmo se candidatar à gaita-de-foles cantando com alguém com quem nem sequer ensaiou?

Tranquilizou-me ver que ele percebia como seria difícil.

— Quantas gaitas-de-foles estarão aqui hoje, mais ou menos?

Ele pensou por um instante.

— Mais ou menos? Oito. Doze, talvez.

— Então é muito provável que haja pelo menos três mulheres que tenham recebido o prêmio, não?

Radagon assentiu com a cabeça, observando-me com um ar curioso.

— Bem — ponderei lentamente. — Se o que todos me disseram é verdade, se só a verdadeira excelência consegue ganhar a gaita-de-foles, uma dessas mulheres saberá cantar a parte de Aloise.

Radagon bebeu outro gole grande, vagaroso, observando-me por sobre a borda do caneco. Quando enfim o pôs no balcão, esqueceu-se de enxugar a barba.

— Você é orgulhoso, não é? — comentou com franqueza.

Corri os olhos pelo salão.

— Aqui é a Foles, certo? Ouvi dizer que é o lugar em que o orgulho é recompensado com a prata e toca como ouro.

— Gostei disso — disse Radagon, quase falando consigo mesmo. — Tocar como ouro — repetiu. Bateu com o caneco no bar, fazendo um pequeno gêiser espumante irromper do topo. — Raios, garoto, espero que você seja tão bom quanto parece achar que é. Eu bem que gostaria de ter mais alguém por aqui com a neve de Ullien — e afagou o próprio cabelo com um sorriso perspicaz. 

— Espero que este lugar seja tão bom quanto todos parecem achar que é — retruquei, em tom sério. — Preciso de um lugar para uma nevasca.

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