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Um Encontro Cortês

— Lalala, lalala…

Ana caminhava despreocupadamente, seus pés movendo-se com uma leveza que contrastava com a densidade da floresta ao seu redor. O silêncio absoluto da natureza a envolvia como um cobertor, quebrado apenas pelo som suave de sua voz cantarolando uma melodia sem ritmo que parecia deslocada naquele cenário. Havia algo de quase mágico na tranquilidade do ambiente, mas também algo perturbador.

— Tá quieto demais — resmungou, interrompendo sua cantoria por um momento. Olhou ao redor com um olhar cansado, apertando os olhos para ver mais além nas sombras da vegetação densa. — Eu devia ter trazido a Nyx.

Já era o segundo dia de caminhada solitária, e o silêncio, apesar de uma benção, estava trazendo certo tédio.

Às vezes, Ana corria, tentando forçar sua mente a esquecer um pouco do mundo, e outras vezes apenas andava devagar, contemplativa. A floresta era calma, excessivamente calma. Pequenos animais, esquilos e pássaros, se escondiam por entre as árvores, mas algo maior estava ausente. Tudo parecia... vazio. Não havia sinais de grandes predadores, exceto pelos lobos cinzentos que ocasionalmente corriam à distância, quase como sombras fugazes.

Foi então que seus olhos captaram algo entre a vegetação: uma torre semi-destruída, suas pedras antigas e manchadas de musgo dando um ar ainda mais misterioso à paisagem.

— Hmm, ouvi falar disso... — murmurou, semicerrando os olhos, observando cada detalhe da velha construção. Reproduzindo o mapa em sua mente com seus mínimos detalhes, calculou mentalmente a distância para Myrmeceum. — Mais meio dia de viagem, talvez?

Voltando à sua melodia descompromissada, dessa vez um pouco mais animada, bateu as mãos com um estalo e começou a correr em uma explosão de energia. Entretanto, após apenas três passos, sentiu algo muito próximo de seu corpo.

Ela parou abruptamente, seus pés girando em um movimento ágil, enquanto sua mão já estava no cabo da espada nas costas.

Foi instinto. 

Não houve som, não houve brisa, não houve nada. Mas Ana sabia que algo estava errado. Muito errado.

Sem pensar duas vezes, acionou o mecanismo de liberação rápida que prendia sua arma. O tamanho da lâmina era grande demais para ser desembainhada da maneira comum, então as amarras se romperam com um estalo, e a espada girou ao redor de seu corpo, que assumiu uma postura defensiva.

"Eu nem ouvi ela se aproximar... "

A figura que se erguia à sua frente parecia ter surgido do próprio chão, como um fantasma.

Uma velha, de aparência acabada, estava parada ali, a encarando, como se tivesse vindo de um pesadelo. Seu corpo estava coberto por trapos sujos, pendendo de forma desajeitada sobre a pele enrugada. O cabelo, um emaranhado branco seco e sem brilho, caía sobre o rosto, ocultando parte de seus olhos esbugalhados.

Os dentes da velha eram pretos, como carvão queimado. Podres ou pintados? Ana não conseguia dizer, mas pelo odor ácido e rançoso que sentiu, inclinou-se para a primeira hipótese.

No entanto, o que mais chamou sua atenção, foram as asas. Das costas da mulher brotavam duas asas cinzentas, caídas e desajeitadas, tão grandes que mal pareciam pertencer àquele corpo franzino. Estavam enrugadas, sem vida, pendendo como uma capa.

— Tu é bicho? — a voz da velha saiu como um sussurro distorcido, como se o som se arrastasse por entre as palavras.

Ana mal teve tempo de processar a pergunta quando, em um piscar de olhos, a velha já estava quase colada em seu rosto, observando-a a poucos centímetros, tão perto que conseguia ver as veias avermelhadas em suas pupilas dilatadas, cheias de uma insanidade que ela conhecia bem. Seu olhar lentamente fixou-se na grande espada negra, observando a lâmina com um fascínio desconcertante.

Em um movimento rápido, Ana saltou para trás, com seu coração, para sua surpresa, disparando em um alerta de perigo. 

A velha pareceu não se importar com a reação. Ela parou de olhar a espada por um instante, seu corpo permanecendo estático enquanto, de forma antinatural, apenas sua cabeça girava completamente para encarar a mercenária fugitiva, como se desafiasse as leis da anatomia.

Sem hesitar mais, Ana girou em um movimento fluido, fintando um golpe na altura do peito da mulher, mas mudando a direção para atingir as pernas no último momento. Contudo, com um pequeno salto, a estranha visita desviou facilmente, pousando no outro lado da lâmina com a leveza de uma folha.

— Tu é bicho? — repetiu a velha.

Vendo a falta de resposta de Ana, ela voltou novamente a focar na arma com uma curiosidade infantil. Então, sem qualquer aviso, mordeu a lâmina com força. Seus dentes pretos se cravaram no metal, emitindo um som alto de ranger, como se a velha estivesse realmente tentando comer a lâmina.

"Mas que merda é essa?", pensou Ana, totalmente sem reação, mas já se preparando para um novo ataque, quando uma voz autoritária quebrou a miraculosa cena.

— Suca, deixe a viajante em paz. Você acabou de almoçar.

Cada pisada do homem que se aproximava trazia uma sensação de poder bruto. Ele usava roupas simples, quase modestas, mas nada poderia mascarar a imponência que emanava de seu corpo. Sua cabeça era adornada por dois enormes chifres curvados para cima, e no lugar de pés humanos, ele possuía cascos, cada um tão grande quanto a cabeça de Ana.

Diferente de sua aparência intimidadora, seu tom de voz era educado, quase cortês, embora a gravidade do som fizesse o peito dos ouvintes tremerem.

A velha imediatamente soltou a espada da boca, dando um último olhar malicioso para Ana antes de se virar para o recém-chegado. Seus olhos insanos brilharam com uma estranha afeição, e ela correu para o lado dele como uma criança travessa que sabia que tinha ido longe demais.

— Peço desculpas, minha cara — disse o homem, fazendo uma leve reverência com a cabeça. — Nossa pequena Suca... é um produto com defeito.

Ana ergueu uma sobrancelha, ainda mantendo sua guarda. 

— E com "nossa" você quer dizer...?

O homem sorriu, seu olhar estudando a viajante de cima a baixo, como um caçador avaliando uma presa, mas com um toque de respeito genuíno. Ele demorou um segundo a responder, como se quisesse saborear a expectativa no ar.

— Eu sou Taurus. Um nome pouco criativo, eu sei — ele disse finalmente, uma leve nota de diversão em sua voz. — Pode nos considerar seus novos vizinhos. Somos apenas um grupo que gosta de... experimentar algumas coisas.

— Vizinhos? Algum reino nas proximidades?

— Na verdade não. Pense em um contexto maior.

O olhar do homem passeou rapidamente pela espada de Ana, mas ele não demonstrou qualquer preocupação com a lâmina erguida. Em vez disso, seus olhos se demoraram na armadura que cobria o braço esquerdo da mulher. Ele parecia intrigado, especialmente quando, após alguns segundos, notou a mão oposta à armadura, onde as flores vivas se mesclavam à carne

Seu sorriso imediatamente cresceu, com grandes dentes amarelados deixando clara sua alegria.

— Parece que podemos nos dar bem, minha jovem.

Antes que pudessem seguir a conversa, a velha Suca o cutucou com um cotovelo magro e pontudo, apontando para Ana.

— Essa é bicho?

Taurus soltou uma risada grave, mas não desdenhosa, e sacudiu a cabeça.

— Não. Esta é sapien.

— Pufft… — o rosto da velha se iluminou com uma gargalhada abafada, seus ombros tremendo enquanto tentava conter o riso. — Sapien num guenta!

Com um suspiro, o homem colocou uma mão gigantesca e firme na cabeça da velha, segurando-a no lugar como quem segura um cachorrinho desobediente. Suca, no entanto, começou a se contorcer, balançando o corpo de um lado para o outro para tentar se livrar do aperto, mas ainda rindo de forma quase sufocante. 

Foi nesse momento que Ana notou as cicatrizes nas costas da mulher, as marcas profundas que revelavam uma verdade sombria: aquelas asas não eram dela. Foram implantadas de forma grosseira e cruel, e o que uma vez poderiam ter sido membros poderosos, agora eram apenas restos pendentes, inertes como se pertencessem a um cadáver.

— Essa é diferente, Suca, é uma sapien com pedigree — comentou o homem com uma risada gutural, ainda mantendo a velha em seu lugar. — Novamente, peço desculpas… viajante. 

— Me chame de Ana — respondeu a rainha, notando sua própria falta de cortesia.

— Oh sim, Ana. É um bom nome. Apenas não se sinta ofendida, estamos apenas de passagem por esse território. O clima dos povos daqui parece... tenso, então talvez seja melhor que finja que nunca nos viu.

Ele fez uma pausa, o sorriso de mistério retornando.

— A não ser, é claro, que tenha interesse em nos acompanhar — Taurus inclinou levemente a cabeça, os chifres brilhando na luz suave, sua voz sedutora como o canto de uma serpente.

Ana ignorou a maior parte de tudo o que ele disse até aquele ponto. Suas palavras eram como ruídos de fundo, sem importância. Mas ao ouvir a proposta inesperada, algo dentro dela estremeceu. Seu coração bateu mais forte.

— Clar... — começou ela, sem perceber a resposta empolgada e automática que surgia em seus lábios.

Mas então parou, como se tivesse sido puxada bruscamente de volta à realidade. Ela ficou ali, congelada por um momento.

"Luiz, seu desgraçado."

"Insídia, reino de merda."

"Myrmeceum, filhos da puta."

Aos poucos se recompôs, um leve tremor correndo por seu corpo enquanto sua mão apertava a empunhadura da espada com mais força.

— Infelizmente, não poderei aceitar — respondeu finalmente, sua voz firme e desanimada. — Tenho obrigações urgentes. Mas não se preocupem, não há conflito entre nós. Não falarei sobre vocês.

O homem soltou uma risada alta e satisfeita.

— Gosto de você, garota — disse ele, retirando do bolso um pedaço de couro fino. 

No centro, havia um símbolo desenhado em um vermelho intenso, uma estranha representação do Homem Vitruviano. Cada um de seus braços, pernas e partes do corpo era composto de diferentes texturas e formatos, como se fossem partes de criaturas diferentes, uma colcha de retalhos grotesca e bizarra. Uma mutação monstruosa e aterradora.

Os olhos de Ana brilharam com uma curiosidade intensa ao ver tal símbolo. Lentamente, abaixou a espada e pegou o objeto.

— E como os encontro, Taurus?

O homem deu de ombros. 

— Isso eu não posso dizer. Na verdade, não tenho como — ele deu um passo para trás, o sorriso ainda nos lábios. — Por enquanto, somos nômades, então fica a cargo do destino se nossos caminhos voltarão a se cruzar.

Virando-se para a mata, o homem soltou um som gutural, como o bramido de um touro. Em resposta, alguns sinos ecoaram pela floresta, e logo Ana avistou um grupo de pessoas se aproximando entre as árvores. 

"Vinte… não, talvez um pouco mais… Corrompidos?"

Logo balançou a cabeça, negando a própria hipótese. Havia algo diferente neles. Seus olhares eram intensos, predatórios, famintos. Atrás dos viajantes, três carroças grandes e pesadas se moviam lentamente, rangendo sob o peso do que quer que estivesse sendo transportado.

Ana refletiu por um momento, o coração ainda acelerado, mas decidiu não pensar muito sobre aquilo. 

— Bem, então me despeço — ela disse, inclinando a cabeça levemente. — Tenham uma boa viagem, seja lá para onde forem.

Taurus também curvou a cabeça em resposta, seus olhos não deixando de estudá-la.

— Vá com cuidado, Ana.

Ao lado dele, Suca, com um grande sorriso no rosto, levantou o polegar para a rainha, antes de sair pulando ao lado do homem, cantarolando alegremente.

— Sapien, sapien, sapien...

Ana ficou ali, observando-os até desaparecerem da sua linha de visão. Quando finalmente estavam longe, soltou um longo suspiro de alívio. Ela percebeu que estava suando, mas, ao invés de medo, sentia uma excitação inexplicável.

— Que porra foi essa? — murmurou para si mesma, sentando-se no chão para enrolar a espada de volta.

Durante o processo, pequenas marcas em um semicírculo chamaram sua atenção. Haviam aparecido bem no meio do corpo da arma, quase como cicatrizes. Ela passou a mão por elas, sentindo os pequenos sulcos, e olhou uma última vez na direção de onde o grupo havia partido. Era quase como se pudesse ouvir a voz da velha, repetindo a música em sua mente.

"Sapien, sapien, sapien…"

Uma gargalhada inesperada saiu de seus lábios. Alta, estridente, louca. Ela largou a espada e se jogou de costas na grama, olhando para o céu.

— Novos vizinhos, hein? Esse mundo é realmente interessante…

Então, com uma decisão repentina, ela se levantou e começou a correr novamente. Tinha que acabar essa guerra o mais rápido possível.

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