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Insana Voracidade

O som de pequenas criaturas rastejando nas sombras, o leve murmúrio de um riacho distante, o bater de asas de algo voando nas proximidades. O abismo não era silencioso como parecia; era um eco de vida oculta, uma sinfonia macabra que ressoava nas profundezas. Nuances que antes passavam despercebidas começaram a ser notadas por Ana. Os rítmicos gotejamentos que ecoavam, misturados com o estalar ocasional de pedras deslocando-se, talvez devido a algum pequeno animal ou simplesmente pela umidade que lentamente desgastava as paredes da caverna.

— Esse lugar está mais vivo do que eu pensava — murmurou para si mesma, sentindo uma estranha conexão com o ambiente. A escuridão que antes a oprimia agora parecia familiar, quase acolhedora.

Com o tempo, começou a notar padrões no mundo escuro, podendo sentir o vento nas correntes de ar que passavam por sua pele e a mudança de temperatura quando novas criaturas se aproximavam. Seres diferentes tinham ritmos diferentes, e seu corpo respondia instintivamente ao sentir predadores, ajustando a direção de sua caminhada para evitar confrontos desnecessários. O som de passos pesados às vezes ecoava nas proximidades, como se seres gigantes passassem ao seu lado, ignorando sua presença. Esses momentos a faziam prender a respiração, cada fibra do seu ser esperando que as enormes figuras não a notassem.

— Como podem ser tão grandes e ainda não me ver? — questionava-se, sentindo a vibração do chão enquanto as criaturas passavam.

Os dias se tornaram um borrão. Ana caminhava sem rumo, guiada apenas pelas sutis sensações. Ocasionalmente, era forçada a lutar novamente contra as criaturas felinas que pareciam dominar aquela região. As batalhas eram ferozes, mas Ana se tornava cada vez mais hábil em enfrentá-las. Seus movimentos eram precisos, suas reações rápidas. Aprendera a antecipar os ataques, perfurando os fracos felinos com um único movimento da espada. Suas lutas, embora brutais, começaram a tornar-se quase monótonas ao enfrentar tantas vezes o mesmo oponente.

Ana continuou a se alimentar do que matava, devorando as criaturas que caçava para saciar sua fome. Cada refeição era uma batalha contra o desgosto e a náusea, mas seu paladar aos poucos se acostumava conforme devorava dezenas de monstros.

— Isso é novo — sussurrou em uma das refeições, com os lábios ainda ensanguentados, ao sentir algo dentro de si. Seu estômago ardia com uma estranha sensação, deixando-a intrigada. 

Ela olhou para suas mãos, vendo o grande coração meio comido. Pela primeira vez em séculos, seu corpo pareceu se fortificar um pouco. Não era uma força significativa, mas sentia-se mais energética, mais desperta.

— Talvez… sejam resquícios de mana? — supôs, vendo os vasos azuis ainda pendurados no órgão. — Parece que terei que fazer mais algumas provas para confirmar.

 Haviam partes mais repugnantes do que outras nas criaturas mortas, a mercenária costumava comer apenas a carne superficial do que matava, evitando o interior da criatura, a não ser que fosse realmente necessário. Ela já havia comido corações antes, mas dessa vez, por desejo de um sabor diferente, foi a primeira coisa que abocanhou quase no mesmo momento em que a criatura morreu. 

— Parece que as lendas antigas tem um fundo de verdade. Quem diria que costumes de tribos indígenas não seriam só fruto de uma loucura pouco civilizada?

Dias se passavam assim, em uma rotina de caça e sobrevivência. Sua teoria se comprovou com o tempo, com Ana começando a arrancar os corações assim que o combate acabava. Era uma energia que ela nunca havia sentido, seu corpo pulsava por alguns minutos, mas a baixa quantidade apenas permitia que ela removesse o cansaço, ficando acordada por dias a fio.

Com o tempo, ficou mais sensível a isso, notando que não era apenas o coração, mas sim a própria carne que continha resquícios permanentes de mana. Não eram tão efetivos, pois não davam energia ou qualquer tipo de benefício, mas ela sentia que estava lá sempre que mastigava.

— Como alguém pode ser fraco com algo assim fluindo continuamente pelo corpo? Ironia divina, vocês eram um bando de incompeten… — em meio a seu resmungo, um som diferente atingiu seus ouvidos. Era um pequeno farfalhar que ela não havia ouvido nenhuma vez nesse mundo rochoso — Galhos secos! 

Animada, largou a carcaça que estava em suas mãos e disparou em direção ao ruído. Ana sentiu uma alegria quase esquecida, um vislumbre de esperança no meio do abismo sombrio. Com cuidado, tocou os finos gravetos. Eles quebravam-se em seus dedos com um toque leve, pouco nutridos demais para sobreviver de forma adequada, mas ela os viu como um oásis em meio ao deserto.

Cantarolando, Ana pegou o máximo de gravetos que pôde e levou-os ao local em que estava comendo anteriormente. Seu sorriso se alargava cada vez mais conforme ela cortava uma perna da criatura em pequenas tiras, um cuidado que não foi necessário desde que chegou aqui. Ela caminhou até algumas grandes pedras enquanto saltitava, e com sua espada, raspou um pouco do esverdeado musgo que existia em abundância. 

— É perfeito! Podia ser só um pouco mais salgado.

Cortando a cabeça da criatura, fez uma panela improvisada. Suas mãos massageavam os duros músculos em conjunto com o musgo, trazendo um cheiro forte de plantas que faziam cócegas no nariz de Ana.

— Viu? Eu aprendi bem!

Ela preparou uma fogueira improvisada, arranjando os gravetos em uma pequena pilha e usando uma pedra afiada para acender uma faísca. O fogo logo começou a crepitar, lançando sombras dançantes que se estendiam por vários metros. A garota se sentou ao lado do fogo, aquecendo as mãos, mas sem remover o capacete para observar as chamas.

Com uma gargalhada feliz, começou a assar a carne do monstro sobre o fogo, usando sua própria espada como uma grelha improvisada. A carne chiava e soltava um aroma tentador. Ana sentia-se como uma chefe de cozinha em um programa de culinária, detalhando o processo em sua mente.

— Deixe dourar bem de ambos os lados! — exclamou, virando as tiras com cuidado. — Ah, o cheiro está incrível. Muito melhor do que carne crua, com certeza.

Enquanto a carne dourava, Ana usou o tempo para recolher mais musgo e misturá-lo com um pouco de sangue, criando uma pasta que espalhou sobre a carne para adicionar sabor.

— Nunca pensei que estaria cozinhando em um lugar como este — disse, lembrando-se das refeições que preparava em tempos mais tranquilos.

Vendo que já estava adequadamente selada, ela improvisou um espetinho, usando galhos finos e firmes que encontrara, espetando neles os pedaços de carne temperada. Ao girar o espeto lentamente sobre a fogueira, ela se certificava de que cada lado recebia o calor de maneira uniforme.

— Gabriel, você acreditaria nisso? — perguntou, com uma voz baixa e nostálgica. — Um banquete no meio do abismo. Quase parece com aquela vez na floresta, lembra?

Ana estava atenta a cada detalhe, escutando o crepitar da gordura que escorria na chama e inalando o cheiro que despertava uma fome ainda maior. Ela sabia que a textura certa faria toda a diferença, então pressionava levemente a carne com os dedos para verificar a maciez, mesmo que ardesse um pouco pela alta temperatura. 

— Estava chovendo tanto, uma verdadeira tempestade! — Ela sorriu, dando mais voltas no espeto improvisado. — Você sempre dizia que se eu queria ficar viva precisava estar preparada para qualquer coisa enquanto eu me alimentava daquelas plantas estranhas. Acho que isso inclui cozinhar carne de um gato bizarro, não é mesmo? — riu, embora seu riso fosse um pouco forçado.

Um longo suspiro saiu de seus lábios, e com um espreguiçar rápido, voltou a focar na preparação.

— Sei que você não come, mas fico feliz que esteja aqui comigo. 

Quando a carne estava finalmente pronta, Ana pegou um pedaço cuidadosamente e o mordeu de forma ansiosa. O sabor era suculento e satisfatório. Não se comparava a carne bovina, mas era uma delícia comparada ao que vinha comendo. No entanto, conforme saboreava, sua expressão foi escurecendo aos poucos. Algo estava errado. Curiosa, pegou um pedaço cru que havia sobrado e provou.

— Então é isso… — murmurou, pensativa ao sentir a energia suave em sua língua. — As propriedades se perdem quando a carne é preparada.

Ela refletiu sobre o fato, compreendendo porque nunca havia lido sobre carne imbuída em mana nos livros ou fóruns sobre o novo mudo. Quem seria louco de comer carne de monstro crua? A ideia a irritou.

— Merda de mana — resmungou, resignada, enquanto jogava a carne grelhada para longe de forma brusca e pegava mais um pedaço cru. — Se é isso que me mantém alerta o suficiente para ficar viva, que seja...

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