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Capítulo - 01

A chuva torrencial caía forte sobre mim, meu pobre guarda-chuva verde limão já não aguentava mais o baque da tempestade. Nem meus dentes, que se batiam.

Meu estômago deu algumas voltas quando parei na frente do restaurante onde eu faria uma entrevista. Parecia ter cheiro de azeite caro.

Ajeitei minha pasta debaixo do braço e me apressei para entrar. Deduzi que eu deveria primeiro falar com o homem de bigode que portava uma prancheta.

— Oi, eu sou...

— Veio para a entrevista? — interrompeu. Ele me observou de cima a baixo, e eu não julgava. Afinal eu deveria estar parecendo um pintinho molhado.

— Sim, onde posso...

— Deixe seus papéis comigo, siga pelo corredor a esquerda e aguarde.

Engoli em seco, mas obedeci.

O "corredor a esquerda" levava para um espaço com armários e bancos, como um vestiário. Haviam outras pessoas lá, algumas lendo papéis que deduzi serem receitas, outras conversando e outras apenas observando quem chegava. Uma mulher de voz forte me recebeu dizendo que seu nome era Silvia e que eu não tinha tempo para ficar enrolando. Ela empurrou para mim vestimentas brancas de cozinheiro e uma touca, apontou o banheiro e partiu para o próximo candidato assustado.

Me vesti rapidamente enquanto eu repassava na mente o que eu diria para quem quer que fosse o entrevistador. Amarrei meu cabelo revolto e o pus na touca, depois joguei um pouco de água fria no rosto e fui esperar com os outros.

Não demorou muito para que todos os candidatos fossem levados para a cozinha do restaurante. E sinceramente, eu me senti entrando em um coliseu com vários leões prontinhos para me atacar.

O espaço era enorme, as bancadas iam da entrada até o final da cozinha, haviam panelas perfeitamente limpas e utensílios novinhos.

— Muito bem candidatos, sejam bem vindos ao Romano's. — Um homem esguio de cabelo escuro se pôs na frente do nosso grupo. — Eu sou Valenccio, vice chefe, e estarei aqui para avaliar vocês. Quando prontos, seus pratos serão levados ao salão para a avaliação final do chefe, e isso completará a decisão se serão contratados ou não. — Sua voz soava firme e carregada de sotaque italiano. — Alguma dúvida ou já podemos começar?

A minha dúvida era: Quando eu pararia de tremer?!

Tudo aconteceu muito rápido, como a largada em uma corrida. Em questão de segundos todos já estavam, literalmente, com a mão na massa.

Como disseram que o tema era livre resolvi fazer o que eu mais gostava. Separei os ingredientes em um lado da bancada onde não havia ninguém e comecei a trabalhar.

A receita soava como uma canção na minha cabeça. Farinha, sal, açúcar e limão... Tudo junto em um bolinho na minha mão... Sova, estica e amassa... Prepare o forno então você assa...

Enquanto os bolinhos estavam assando fui preparando a calda que viria sobre eles. Só que eu tinha esquecido as castanhas e elas eram essenciais. Varri a cozinha com os olhos e achei um saco enorme delas em um canto, corri até lá com um pote na mão.

Eu estava prestes a pegar o ingrediente quando uma moça loira me olhou feio.

— Ei, eu peguei essas castanhas — reclamou olhando para mim, mas sem parar de mexer na panela.

Olhei de novo para o saco de quase quinze quilos.

— Ah fala sério, você não precisa de tantas castanhas assim! — E peguei o tanto que eu precisava.

Não quis olhar para o relógio que desafiava cada um ali a correr contra o tempo, aquilo só piorava a tensão. Em vez disso me concentrei nos aromas que se misturavam no ar. Era como se a cozinha estivesse preenchida por uma teia repleta de fios invisíveis que carregavam cheiros diferentes, alguns doces, outros mais fortes, cítricos e... queimado?

Senti alívio ao ver que não era na minha panela. Pelo menos hoje eu tinha que fazer tudo certo.

Alguém começou a reclamar em italiano seguido por outra voz também irritada. Captei apenas coisas como "fogo", "desastre" e algo sobre a mãe de alguém.

O vice chefe, passou por mim com um olhar examinador, devia estar pensando em tudo o que eu estava fazendo de errado. Consegui respirar novamente apenas quando ele se afastou.

Com o tempo restante que tinha preparei os bolinhos nos pratos dos juízes e os cobri com a calda quentinha, depois finalizei com raspas da casca de limão siciliano.

— Muito bem candidatos, faltam três minutos para o fim da primeira etapa! — Valenccio anunciou.

E foram os três minutos mais rápidos da vida, porque segundos depois nossos pratos já estavam sendo levados para o salão acompanhados de cartões com os nossos nomes.

Um a um os candidatos eram chamados e não voltavam mais. O que me pareceu um abatedouro de certa forma. Meu estômago dava voltas de novo com tanta aflição.

O homem de bigode da entrada me chamou e o segui até o salão, que por sinal era incrível. As paredes creme possuíam alguns adornos, o teto ostentava um lustre elegante, o chão era uma imitação de mármore preto e as mesas estavam forradas com algum tipo de tecido caro.

E não, o restaurante não tinha cheiro de azeite caro. Mas poderia.

Na minha frente havia uma mesa grande posta exatamente para a ocasião, nela estavam sentadas três pessoas. Valenccio, uma senhora de cabelos parcialmente brancos e sorriso fofo e um rapaz loiro que não devia ser muito mais velho que eu.

— Olá — minha voz saiu pequenininha naquele lugar grande.

— Camila Garcia, certo? — Perguntou o rapaz loiro.

— Certo. — Ele não tirou os olhos do cartão com o meu nome que estava em sua mão.

Eu estava prestes a perguntar se tinha algum problema quando ele disse:

— Nos fale sobre você.

Engoli em seco e sorri. Era agora que eu recitaria meu discurso ensaiado dia e noite.

— Meu nome é Camila Garcia, tenho vinte e um anos de idade, estou na Itália faz uma semana e...

— De onde você é, querida? — A senhora perguntou de forma firme e clara, e sua voz era exatamente como eu havia imaginado.

— Sou do Brasil, de São Paulo — respondi sorrindo para ela.

Seus olhos se iluminaram.

— O que veio fazer na Itália? Tem família aqui?

— Vim realizar um dos meus sonhos. E não tenho família aqui, estão todos no Brasil.

— Muito bem vovó, chega de conversas banais — interrompeu o rapaz. Agora ele estava com os meus papéis em mãos. — Você já fez bastante coisa em pouco tempo, por que?

— Gosto de descobrir coisas novas e de aprender, mas digamos que ainda estou descobrindo o que o meu coração quer — respondi.

— Eu posso ver — rebateu ele erguendo as sobrancelhas. — Aqui diz que você já fez faculdade de direito, literatura, artes e biologia, mas parou todas elas. Trabalhou em um museu, em um banco, em uma galeria de arte, em uma empresa de festas infantis e em uma editora de livros.

— Também já quis ser aeromoça, cantora, fui assistente pessoal e nas festas infantis eu era a fadinha — completei sem saber se era o certo a fazer. Levei a mão ao cabelo para colocá-lo atrás da orelha, mas me esqueci de que eu ainda estava de touca.

A avó dele segurou um risinho. Os olhos do rapaz se ergueram para mim.

Ai droga. No que ele estava pensando?

Tive tempo para reparar nele. Seus cabelos eram loiros como fios de ouro, as sobrancelhas grossas davam charme aos olhos verdes pinho, que eram sérios, sua barba estava crescendo e dava um ar de maturidade a ele. Fiquei imaginando se ele era alto e qual seria o seu nome. Reparei na semelhança que ele tinha com a senhora sentada ao seu lado, eles possuíam os mesmos olhos.

— Muito bem, o que temos aqui? — Ele perguntou me tirando dos meus pensamentos.

— Bolinho com calda.

Minha resposta arrancou outro olhar julgador dele.

Como que sincronizados, os três provaram do meu prato.

— Qual foi a sua inspiração, querida? — Perguntou a senhora.

— Bem, quando eu era criancinha os meus avós tinham uma padaria onde eles vendiam bolinhos parecidos com...

Minha fala foi bruscamente interrompida por uma tosse constante vinda do rapaz loiro. E então ele levou as mãos a garganta e começou a ficar vermelho.

— O que... — Fiquei confusa.

Valenccio dava batidas nas costas dele para fazê-lo desengasgar, mas não sutil efeito.

— A calda... O que tem na... — ele disse entre tosses.

— Tem caramelo, limão e castanhas — respondi torcendo para que eu não tivesse confundido algum recipiente e posto veneno por engano.

A senhora logo se pôs de pé, o neto por outro lado foi ao chão. Ela discava no celular enquanto Valenccio abanava o rapaz caído.

— O que está acontecendo?

— Lorenzo é alérgico a castanhas! — Valenccio rebateu.

Ai. Meu. Deus.

O mundo girou rápido aos meus olhos. De repente haviam paramédicos no restaurante, uma ambulância lá fora e todas as pessoas que antes estavam na cozinha assistiam a cena. Lorenzo foi levado rapidamente para o hospital junto com sua avó e eu desesperadamente pedi um táxi e mandei que ele seguisse a ambulância.

Eu nem sabia o que faria quando chegasse lá, afinal eu não conhecia nem Lorenzo e nem sua avó. Talvez eles até me expulsassem apontando o dedo para mim dizendo que eu era... Eu nem sei do que eles poderiam me chamar!

Vi o momento em que mais pessoas de jaleco correram com a maca dele pelo hospital. Paguei o táxi com o dinheiro que eu tinha no bolso e corri aos tropeços seguindo o alvoroço.

Eu não pude passar das portas duplas e só me restou ficar andando de um lado para o outro no corredor roendo as unhas e torcendo para que a alergia dele não fosse tão grave como algumas que eu já havia visto por aí.

Eu olhava para o relógio de segundo em segundo desafiando os ponteiros a irem mais rápido. Cada médico ou enfermeiro que passava pelo corredor me causava arrepios por achar que eles trariam notícias.

Depois de uma eternidade a avó de Lorenzo surge acompanhada por uma médica de expressão cansada.

Por favor que eu não tenha matado ele! Por favor que eu não tenha matado ele! Por favor que eu não tenha matado ele!

Esperei que ambas terminassem a conversa e me aproximei.

— Ele não inchou ao ponto de explodir, não é? — disparei nervosa.

— Não, conseguimos desacelerar a reação alérgica a tempo, mas é necessário que ele permaneça em observação essa noite. Também é essencial que episódios assim não ocorram mais, ou os danos ao coração dele serão irreversíveis — a doutora explicou enquanto alternava o olhar entre mim e a avó dele.

— Danos ao coração? — indaguei nervosa. — Estraguei o coração dele? — resmunguei comigo mesma.

— De forma alguma, querida. Lorenzo tem um problema no coração desde sempre, é algo com o que lidamos — A avó me tranquilizou.

— Eu juro que não sabia que ele tinha alergia a castanhas, se eu soubesse não teria posto na calda nunquinha! — Juntei as mãos pedindo desculpas a ela.

Ela me deu um sorriso cálido e se despediu da médica, que foi atender o próximo paciente.

— Sei disso, além do mais não tinha como você saber.

— O que eu posso fazer para ajudar? Me diga e eu farei para me redimir por quase tê-lo matado — disparei esbaforida.

— Apareça no restaurante amanhã às oito.

Pisquei sem entender.

— Mas o que...

— Estou dizendo que você está contratada, querida — respondeu ela falando devagar.

Meu coração deu um salto. A última coisa que eu esperava naquele dia era ser contratada depois de quase matar o chefe do restaurante!

Dei um pulo e por puro impulso a abracei feliz.

— Eu prometo que não vão se arrepender dessa decisão. Darei o meu melhor e não vou usar castanhas nunca mais!

Por incrível que pareça ela não me afastou e nem reagiu mal. O que também foi um alívio.

— Agora vá para casa e descanse, você passou muitas horas esperando aqui — ela aconselhou.

— Eu... Eu posso visitá-lo amanhã antes do trabalho? – perguntei receosa.

— É claro, permitirei sua entrada na recepção.

Sorri para ela e fui embora feliz da vida.

- Lorenzo -

O cheiro do hospital me causava náuseas, mas era de algum modo familiar já que passei boa parte da minha vida frequentando-o.

Fiquei consciente algumas vezes e nesses intervalos minha avó dizia que estava tudo bem e que eu precisava apenas descansar.

Quando acordei na manhã seguinte senti um aroma diferente que não era de remédio e álcool. Era suave, porém marcante. Era como o outono misturado com a primavera.

Abri os olhos e me deparei com uma garota sentada na cadeira ao meu lado.

Ela tinha olhos arredondados cor de cacau, delineados por cílios cobre e sobrancelhas da mesma cor. Sua pele era delicada, de um tom bronzeado, a mesma carregava sardas que mais pareciam estrelas. O rosto dela era emoldurado por uma massa de cabelos, cachos ruivos e rebeldes que se espalhavam em várias direções indo até as costas.

Os lábios carnudos e rosados se abriram com uma expressão quando ela notou que eu estava acordado, e que a observava.

Eu diria que ela era...

Espera aí, ela quase tinha me matado ontem!

— O que você faz aqui? — perguntei, minha voz áspera por conta da garganta seca.

— Vim ver como está e pedir desculpas por...

— Por me envenenar.

Ela franziu as sobrancelhas.

— Não foi intencional, como eu poderia saber? — Sua voz subiu um tom. — Me desculpe pelas castanhas, isso não vai se repetir.

Ri cético.

— Não mesmo.

A garota juntou as mãos e ficou olhando para elas, ela ia perguntar alguma coisa.

— O seu coração...

— Isso não é da sua conta — interrompi enquanto me ajeitava na maca desconfortável.

— Perguntei apenas porque...

Suspirei pesadamente. Minha cabeça doía e eu estava morrendo de sede e sem a mínima vontade de falar com aquela garota.

— Camila, certo? — Ela assentiu me olhando com aqueles olhos de cachorrinho. — Eu estou bem, obrigado por se preocupar. Entrarei em contato com você caso seja escolhida para a vaga no restaurante, se não tem mais nada para fazer aqui peço que vá embora e tenha uma boa vida. — Dei um sorriso para amenizar.

— Isso não será necessário, — minha avó entra no quarto. — ela já foi contratada.

Eu não podia acreditar no que estava escutando.

— Depois de tudo...

— Camila não sabia sobre sua alergia, é injusto julgá-la por isso. Afinal estamos recrutando cozinheiros e não médicos. — Foi a resposta final dela.

Eu sabia que minha avó não mudaria de ideia por nada, assim como eu sabia que ela já havia se afeiçoado à garota só pelo modo como sorria para ela.

— Bem, eu preciso ir, não quero me atrasar no primeiro dia. — Camila se levantou ajeitando a bolsa no ombro. Notei que ela era pequena. — Desejo melhoras a você Lorenzo, ou devo chamá-lo de chefe? — Li a provocação escondida na frase. E ela tinha pronunciado meu nome errado.

Virei o rosto para a janela enquanto ela e minha avó trocavam despedidas breves.

Silêncio recaiu no quarto. Cruzei os braços e respirei fundo para receber a bronca que viria da minha avó por ter tratado a garota daquele jeito. Após muitas formas de dizer o quanto fui grosso ela finalmente me disse que eu teria alta no fim do dia, o que para mim era um alívio.

Ficar afastado do meu restaurante me fazia imaginar tudo o que podia dar errado enquanto eu não estivesse lá. E nada podia dar errado.

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