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Road Trip

Você já se pegou envolvido em uma situação onde algo muito importante acontece bem à sua frente, mas você sente como se não conseguisse compreender tudo o que aquilo significa? É como ir em um velório quando você é pequeno demais. Talvez você não consiga entender a importância dos eventos que se desenrolam ao seu redor, mas ainda assim, você sente que aquilo significa algo. Um algo que vai mudar para sempre a vida de todos ao seu redor.

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Eu estava atordoada demais para resistir quando Davi começou a me arrastar para fora do terreno. Ao longe, eu vi Elifas se aproximando de um Galantyr caído de joelhos. O pai de Davi andava em círculos ao redor do demônio, fazendo alguma coisa com ele. Caminhamos até a praça que ficava na frente do complexo abandonado. Davi me levou até um banco.

— Tá tudo bem, a gente vai embora logo. A carona deve estar chegando.

Olhei pra ele, sem entender.

— Liguei para alguém assim que consegui me arrastar para fora do desabamento — o tom arrogante que eu havia associado a ele havia desaparecido de sua voz — Meus amuletos ficaram loucos, e eu sabia que alguma coisa ruim estava acontecendo.

Um carro parou ao lado da calçada, quase do nosso lado. Era pequeno, vermelho, e eu o conhecia.

— Simbora, galera! — Tati gritou assim que o vidro da janela do carro desceu.

Meu coração martelou. Alguma reserva de adrenalina me tirou momentaneamente daquele estado entorpecido. Davi sentiu o ódio no meu olhar.

— Achei melhor não chamar o meu motorista. Achei certo, no fim — ele fez um sinal com a cabeça na direção da chaminé industrial.

— Tá tudo bem, Lívia? Quando esse cara me ligou eu só pensei "corre". Mas aí ele me disse que você precisava de ajuda...— Tati começou a falar assim que eu me joguei no banco de trás. Ela tinha um monte de perguntas. Eu fiz o meu melhor para responder tudo o que podia.

Assim que começamos a andar, Davi se virou no banco do carona.

— Precisamos dar um tempo e pensar em alguma coisa. Tem alguma ideia de um lugar pra onde a gente possa ir?

— Eu só tenho um Café, mano. Tu que é o illuminati do rolê...

Tatiana soltou uma risada que estava segurando. Eu realmente soava engraçada falando daquele jeito grogue.

— Caso você não tenha notado, — aquele tom presunçoso novamente na voz de Davi. Ele também estava se recuperando — aquele arrombado que nos traiu é o meu pai. Não consigo pensar agora em um lugar onde o meu pai não me encontraria!

Garoto estranho, eu pensei. Conseguia pensar em vários lugares onde o meu pai não me encontraria. Foi aí que eu tive uma ideia da qual eu não gostava muito, mas me apeguei a ela mesmo assim. Peguei meu telefone. O brilho da tela machucava meus olhos conforme eu tentava digitar o endereço. Abri o Maps. Passei meu celular para a frente quando a voz do GPS começou a guiar. Não achei que Tati fosse reconhecer o endereço, mas descobri que ela não tinha esquecido de nossas conversas de final de noite, voltando das festas.

— Então eu vou conhecer a sua casa, Lili? — ela tentou soar animada, mas até Davi percebeu que era um assunto delicado.

Houve um breve momento de silêncio após essa conversa, enquanto cruzamos a ponte e pegamos a rodovia em direção ao interior. Eu apaguei assim que deixamos as luzes da capital para trás.

Acordei com o carro parado. Davi tomou um susto quando mudei de posição no banco de trás, derrubando alguma coisa na roupa.

— Você parece cansado.

Seus olhos estavam quase fechados. Segurava um cachorro-quente de AMPM, pingando molho sobre o freio de mão.

— É claro que eu tô cansado. Cansado demais dessa palhaçada.

Estávamos em um posto de gasolina. Tati havia saído para fazer o pagamento.

— O que foi que aconteceu lá na usina? — eu disse.

— O demônio tava exausto e o meu pai é um idiota. Acho que ele nos mandou lá pra morrer, sabe. Aí ele apareceu, viu que havíamos conseguido de alguma forma fechar o portal, se aproveitou da situação e acorrentou Galantyr.

— O que você quer dizer com "acorrentou"?

Seus olhos se abriram um pouquinho diante da minha pergunta. Seu gosto por ser a pessoa mais inteligente do recinto era evidente.

— Você deveria saber... Afinal, essa é a especialidade de Galantyr. Quando um demônio não está na terra mediante um contrato, isso significa que ele tem sua liberdade, mas também corre certos riscos. Tipo, um mago pode chegar e aprisionar ele contra a sua vontade. É o que nós chamamos de "acorrentar".

— E os demônios do Café?

— É diferente. Lá é um lugar onde eles podem firmar contratos. Eles não podem sair, mas também não infringem nenhuma lei ao ficar por lá.

— Tipo uma embaixada do inferno.

— Tipo isso.

Ele continuou mastigando o cachorro-quente. Quando Tati voltou, eu sugeri para trocarmos de lugar. Davi foi para o banco de trás e capotou logo depois de arrancarmos. A estrada foi ficando escura novamente. Tocava Deftones no rádio. Era difícil conversar por cima da música, mesmo quando ela estava baixa.

— Noite louca, né.

— É.

— Então, sobre o Café...

— Sério Tati, desculpa te envolver nisso...

— Não, não. Tá tudo bem. Eu só queria avisar que o Pólux tá cuidando das coisas.

Falar do Pólux naquele momento me fez sorrir. Sempre metido, o Pólux. Meio caloteiro, também. Mas fazia a gente sorrir.

Eu tentei manter o assunto de casa o mais distante possível, mas conforme nos aproximávamos da cidade, as lembranças se tornavam mais fortes e começavam a procurar uma forma de sair. Não é que a minha relação com o meu pai fosse difícil. Nós só acabamos nos afastando, se conformando, e depois decidindo que era melhor deixar as coisas assim. A gente se falava, e tudo mais. Alguns minutos ao telefone a cada duas semanas, mais ou menos, tempo que ele escolhia passar me dizendo que eu estava fazendo as coisas de forma errada, e que havia um jeito muito melhor de fazer o que quer que eu estivesse tentando fazer no momento. Nós sempre tivemos opiniões bem definidas sobre como fazer as coisas. Nós dois sabíamos disso, o que fazia com que aqueles minutos fossem suficientes. Agora, eu estava voltando pra casa, sem nem saber direito o porquê. O que eu sabia é que teria que deixar minhas opiniões de lado e assumir a derrota de espírito que aquele momento representava.

Tati ouviu tudo isso, como só uma melhor amiga sabe fazer. Assim que entramos na cidade, comecei a mostrar os lugares que haviam sido importantes pra mim ao longo dos meus primeiros 18 anos de vida. Não havia muitos. A escola onde eu estudei até a sétima série. A árvore, atrás da qual eu havia dado o meu primeiro beijo. As escadas na frente da loja de ferragens onde eu costumava virar a noite bebendo com os meus amigos. Tudo parecia tão velho e abandonado. Era como se o fato de eu ter dado as costas para esses lugares tivessem feito o tempo passar mais rápido do que o normal.

Atravessamos toda a cidade até chegar na beira do rio. Eu a guiei através da estrada de asfalto, que se tornou uma via de paralelepípedos, e depois não mais do que uma larga trilha de chão batido. O rio corria em paralelo ao nosso avanço, aquele embalo lento que sempre havia me dado nos nervos, completamente indiferente à forma como o tempo passava. Desci do carro para abrir a porteira do sítio, estranhando a ausência dos cachorros na entrada. Seguimos colina acima. A grama que crescia no meio da trilha fazia barulho ao raspar por baixo do carro.

O sol nascia nos fundos da casa, onde antigamente ficava o meu quarto. Às vezes eu ficava acordada para ver o sol nascer. Naquele momento, os primeiros raios da manhã ainda estavam encobertos pela estrutura, mas já dava para sentir o clima esquentando.

Alguém espiava pela porta entreaberta. Não saiu para nos receber. Pedi para Tati parar o carro e desci sozinha, não queria causar confusão. Antes de subir os degraus da varanda, eu já conseguia reconhecê-lo. A porta não se abriu mais do que alguns centímetros, e ele não fez menção de avançar. Estava feliz em me ver, ainda assim. Um sorriso perdido em meio a uma expressão carrancuda que me fez feliz, também.

Meu pai fungou o ar de um jeito exagerado algumas vezes antes de dizer:

— Consegui sentir o cheiro de demônio em você desde lá da porteira. Que merda cê andou fazendo, Lívia?

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