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Capítulo 19

LETTIE

O luto é como um dragão que lentamente te devora sem misericórdia.

Bom, pelo menos foi assim que me senti no primeiro mês após a morte de Piccolo.

Apesar de ter ganhado uma casa e de nunca mais ter de me preocupar em me matar de trabalhar em torneios clandestinos para pagar o aluguel daquele quartinho mequetrefe, meu coração chamava por um nome.

Dois nomes, na verdade.

Gohan podia não ter morrido; entretanto, sua ausência me trazia uma profunda e dolorosa sensação de vazio. Era como se eu estivesse… perdida. Passei um ano da minha vida maternando-o como se ele fosse meu próprio filho, acompanhando seu desenvolvimento, vendo-o aprender a falar direito, a descobrir a natureza ao seu redor, a se tornar um grande lutador…

E então, sem mais nem menos, ele sumiu da minha rotina.

Juro pra você que havia manhãs que eu acordava no meu novo quarto e pensava, "O que vou preparar de café-da-manhã para Gohan?", só pra me lembrar de que ele não vivia mais comigo, mas agora comia em algum internato em outro país.

Como eu sentia falta da sua voz, do seu carinho, da sua curiosidade, da sua paz…

Só que Gohan, ao menos, estava vivo. Por certo, eu o veria em breve, nas férias escolares, quando voltasse para visitar os pais. E eu também mandava recados para ele através de Chi-chi, os quais ela anotava e me dizia que os transmitiria de bom grado. Bom, era o que eu acreditava na época.

Eu me agarrava nesta esperança de que em breve o veria de novo.

Mas nada conseguia tapar o buraco no meu coração que a morte me trouxe.

Um buraco na forma do Piccolo.

Eu o via em cada cantinho da minha casa, acordando comigo, fazendo as refeições comigo, assistindo televisão comigo, limpando a casa comigo, treinando comigo…

Era uma dor que parecia não existir cura. Só ficava mais intensa.

As primeiras noites que dormi sozinha foram aterrorizantes. Imagens do seu corpo dilacerado em meus braços preenchiam os piores pesadelos que já tive na vida. Ele gritava por ajuda, implorava para eu não o deixar morrer. E eu não conseguia fazer nada. Apenas o via perecer da forma mais cruel possível. Ao fundo, as risadas malignas de Vegeta e Nappa celebravam a derrota do seu oponente.

Isso aconteceu por noites e noites.

Eu acordava no meio da madrugada, toda suada, tremendo e gritando em pleno pavor, com as memórias daquela luta sanguinolenta e impiedosa saltando diante os meus olhos.

Teve uma vez na qual meu desespero foi tão apavorante que só consegui recuperar o fôlego após sair correndo pela porta da frente no meio da noite e respirar o ar puro da natureza que rodeava minha casa.

— Você deveria fazer terapia — disse Chi-chi certa tarde, após minha ligação, implorando para que visse me fazer companhia. — Se quiser, eu te passo o contato do lugar onde faço.

Ela me ensinava a receita de um pão recheado e sovava a massa na pia, enquanto eu a observava com atenção ao seu lado. Era bom tê-la por perto. Mesmo que Chi-chi tivesse um temperamento colérico e rígido, se você soubesse lidar com sua personalidade, colheria os frutos de uma amizade firme e sincera.

Além de que, no fundo, Chi-chi era uma mulher tão quebrada quanto eu. Mesmo que ela estivesse mentindo para mim, sua fraternidade para comigo nunca foi falsa. Eu sentia que ela gostava de mim e da minha companhia, de verdade. Talvez eu trouxesse a calma que sua mente caótica tanto necessitava.

Eu ainda não tinha conseguido um emprego. Na verdade, eu nem havia procurado. Isso me envergonhava, pois era Chi-chi quem bancava o meu sustento, conforme havia prometido. Mas eu não conseguia fazer nada naquele primeiro mês. Minha rotina estava tão diferente daquela que vivi no último ano com Piccolo e Gohan, e a tristeza era tanta, que às vezes, eu mal saía da cama, inundada pelas incontáveis lágrimas que derramei nos lençóis.

No entanto, acatei sua sugestão de procurar ajuda de um profissional, e foi a melhor decisão que tomei naquele momento.

Fui diagnosticada com transtorno de estresse pós-traumático. Os traumas que sofri na batalha contra os Saiyajins deixaram marcas profundas demais para o meu cérebro e coração suportarem. Afinal, quem suportaria? Suspeito até que Gohan também sofria com algum transtorno do gênero, mas Chi-chi sempre me dizia que ele estava bem e dedicado nos estudos do internato.

Felizmente, a combinação da passagem do tempo com as sessões de terapia e os medicamentos que passei a tomar me fizeram bem. Pelo menos, eu não passava mais o dia todo na cama e já pensava em como eu poderia reingressar no mercado de trabalho e parar de dar gastos a Chi-chi (pois ela insistiu em também pagar meu tratamento).

Eu pensava bastante na ideia de Piccolo, de tentar ser professora em um Dojô da cidade. Mas ele não me acompanharia em nenhuma entrevista. Eu teria de ir sozinha e continuar sozinha.

Porém, foi justo na volta do consultório de terapia que minha oportunidade de emprego se apresentou.

Minha psiquiatra recomendou que seria bom eu tomar novos ares, ir e vir até o consultório por rotas alternativas para eu conhecer lugares diferentes. E foi o que fiz.

Numa tarde, ao voltar para casa da sessão de terapia, voei por uma rota diferente da costumeira. Piccolo e Gohan ocupavam meus pensamentos, numa saudade melancólica. Foi então que avistei um pequeno vilarejo. Ele ficava escondido ao lado de um platô rochoso.

Obedecendo ao conselho da minha psiquiatra, resolvi pousar naquele vilarejo para explorá-lo. Era a coisinha mais linda! As ruas eram cobertas por mosaicos de pedras bege e não havia sinal de nenhum carro. As casas eram antigas, numa arquitetura bem simples, mas clássica, pintadas de cores neutras e varandas com guarda-corpos de ferro escuro.

Fui caminhando pelas ruas e logo percebi que era um vilarejo bem pequeno. Logo eu já estava na praça central. Havia uma fonte ornamentada que se destacava no meio do comércio local. O movimento estava tranquilo, com algumas pessoas conversando e fazendo suas compras nas lojinhas ao redor.

Gohan teria adorado este lugar. Aposto que até Piccolo também, pela calmaria de todo aquele ambiente pacato. Esbocei um pequeno sorriso ao refletir sobre eles enquanto me sentava num banquinho ao lado da fonte.

Por vários minutos, observei aquelas pessoas que iam e vinham de seus afazeres. Algumas me olhavam com curiosidade, pois era provável que aquele vilarejo não recebesse muitos turistas.

De repente, senti a presença de um Ki maligno. Virei-me de um lado para o outro na procura daquela ameaça. Meu cérebro já pensou o pior e imaginou que Vegeta havia retornado à Terra e me procurava para me matar. Meu coração disparou em terror.

Realizei exercícios de respiração ensinados pela minha psiquiatra, secando as mãos nas calças. A imagem de Piccolo então apareceu em minha mente, com seus ensinamentos e sua doce presença. Minha pulsação diminuiu na hora.

Eu não precisava ter medo. Fui muito bem treinada pelo meu Mestre.

Tomei coragem e me concentrei. De onde vinha aquele Ki maligno?

Disfarçadamente, percorri meu olhar ao redor e avistei uma moça. Não devia ter dezesseis anos e caminhava com um cesto cheio de frutas, a brisa leve esvoaçando seu vestido florido.

Tudo aconteceu muito rápido.

A moça virou uma esquina para atravessar um beco e, de um segundo para o outro, um par de mãos a pegou por trás e cobriu sua boca para impedir um grito.

Assisti, de olhos arregalados, ela derrubar sua cesta de frutas e ser arrastada por um homem beco adentro.

Meu sangue Saiyajin ferveu na hora e disparei atrás dela. Quando a alcancei, não me deparei com um homem, mas cinco. Esperando para fazer sabe-se lá o que com ela.

Os olhos daquela moça encontraram os meus, e vi estampado neles o mesmo medo que eu via no espelho da minha casa quando eu acordava de um pesadelo.

Não pensei duas vezes e ataquei aqueles homens.

A moça berrou e saiu correndo, clamando por socorro enquanto eu espancava cada um daqueles desgraçados com a destreza de quem tinha sido treinada na disciplina de Piccolo.

Minha vantagem de ter uma força sobre-humana garantiu que eu vencesse meus adversários com facilidade. Quando menos percebi, eu arrastava cinco corpos desmaiados para a praça central, a qual já estava apinhada com todos os moradores do vilarejo tentando entender o que acontecia.

Permaneci de pé, ofegante, ao lado daqueles corpos e rodeada por olhares assustados e confusos. Meu rosto queimou de acanhamento por ser o centro das atenções. 

— O que houve??? — Um senhor baixinho com bigodes fartos e um sotaque forte abriu passagem e parou à minha frente. Sua postura e voz autoritária indicavam que era o líder do vilarejo.

Em poucas palavras, expliquei o ocorrido. Todos ficaram em choque. A moça estava agarrada entre os pais e o que devia ser um irmão mais novo, fitando-me com o rosto pálido.

— Onde está a polícia para prendê-los? — indaguei ao finalizar meu relato.

Todos trocaram olhares nervosos.

— N-Não temos — respondeu o líder, abatido. — O departamento mais próximo fica em outra cidade, a quilômetros daqui…

Franzi o cenho, muito perturbada.

— Vocês não têm nenhuma segurança? — repliquei.

O líder apenas negou com a cabeça, encarando o chão.

— Isso acontece com frequência?

— Temo que sim… Furtos também são bem comuns, sobretudo nas fazendas próximas. — O líder pressionou os lábios e os moradores murmuraram com amargura.

— Mas por que não constroem um departamento de polícia aqui? — inquiri, cada vez mais indignada.

— Nós até tentamos. — O líder abriu os braços. — Mas é uma burocracia enorme! Todos os vilarejos desta região são carentes de segurança. A resposta que temos é que é muito caro investir em profissionais qualificados em lugares tão longínquos e pacatos como os nossos. E nós também não temos como criar um por conta própria. Nossa renda não é tão alta para mantermos um.

— Entendo… — Uma pontada de angústia me atingiu ao olhar para aqueles rostos assustados. — E vocês não sabem lutar para se defender?

O líder riu pelo nariz, me dando um meio sorriso triste.

— Olhe para nós. Acha que temos cara de lutadores?

Segui seu olhar pelos moradores. Não. Definitivamente, não tinham.

A moça que salvei de repente correu até mim e pegou minhas mãos.

— Por favor! — suplicou ela. — Me ensine a lutar! Eu quero aprender!

— Eu também quero! — Seu irmão deu um passo à frente e bateu no peito. Ele era apenas um pouco mais velho que Gohan. Meu coração se aqueceu.

Dez segundos depois, várias daquelas pessoas, especialmente jovens e crianças, me rodearam e imploraram para que eu os ensinasse a lutar.

De início, fiquei atordoada com todos aqueles pedidos e olhares beirando o desespero. Então, pela segunda vez, a imagem de Piccolo veio à minha mente. Assim como o juramento que fiz em seu funeral.

Meu peito dobrou de tamanho e sorri para aquelas pessoas.

Uma semana depois, eu iniciava minha primeira turma na minha Sala de Treinamento.

Eu não era mais chamada apenas de Lettie, mas sim, Mestre Lettie.

Confesso que foi desafiador no começo. Meus alunos não sabiam nada a sobre a disciplina e a ordem de um Dojô. Eram todos muito simples e alguns tinham dificuldades para entender que, para se tornar um bom lutador, precisariam de muita paciência e dedicação. Não era algo que aprenderiam do dia pra noite.

Mas conforme o tempo foi passando, logo eu aprendi a lidar com eles e com suas dificuldades. A notícia de que a moça do vilarejo fora salva por uma exímia guerreira percorreu toda a região e, em algumas semanas, eu trabalhava em período integral de segunda a sexta e aos sábados pela manhã, com minha agenda lotada de turmas.

Eu enfim não precisava mais depender do dinheiro da Chi-chi.

Falando nela, minha cunhada, apesar de inicialmente parecer ter profunda aversão a lutas ou qualquer tema relacionado ao assunto, foi uma grande incentivadora do meu projeto. Então, após diversas visitas à minha casa para me fazer companhia e me ensinar receitas novas, descobri que Chi-chi, na verdade, não odiava lutas. Muito pelo contrário. Ela adorava. Inclusive lutou em torneios quando era mais jovem.

Seu problema com lutas tinha outro nome, e se chamava Goku.

Além do gosto em cozinhar, Chi-chi e eu compartilhávamos outro atributo em comum: ambas tinham o sonho de se casar e ter filhos. Na verdade, às vezes eu me sentia mais irmã dela do que de Goku.

Bom, o fato é que Chi-chi conseguiu realizar seu sonho. Porém, conforme fui aprofundando nossa amizade e entendendo melhor sua personalidade, percebi que ela era uma mulher muito frustrada com seu sonho.

Meu irmão, pelo visto, colocava sua paixão por lutas acima da família. Para mim era bem esquisito Goku ter viajado quando mal tinha acabado de ressuscitar. Por isso, não me estranhava Chi-chi ter um humor tão sensível. Aposto que foi revoltante para ela.

Não foi uma ou duas vezes que ela chorou ao revelar para mim em algum café da tarde o quanto sentia falta do marido, do seu carinho, do seu toque… Além de que Goku não trabalhava e não trazia sustento para casa. Tudo o que ele pensava e fazia desde que acordava era treinar e comer quilos e quilos de comida. Apesar de Chi-chi ser rica e dinheiro não ser um problema, essa falta de atitude provedora de Goku lhe trazia alguns problemas com seu pai, de quem ela herdou toda sua fortuna.

Não sei quando a você, mas se eu fosse um pai, não gostaria de ver minha filha casando-se com um cara que não trabalha e só pensa em lutas vinte e quatro horas por dia.

Por isso que Chi-chi era tão severa com Gohan em seus estudos. Pois não queria que ele seguisse os mesmos caminhos do pai e se tornasse um "rebelde sem causa" (suas palavras). 

Este assunto rendeu longas horas de conversas entre nós duas. Contei para ela sobre como convenci Piccolo a deixar Gohan brincar de explorador durante nosso Treinamento, pois ele precisava ter um equilíbrio saudável entre os tipos de atividades que exercia. Nisso, pelo menos, Chi-chi e Piccolo tinham em comum. Os dois eram super rígidos: uma nos estudos, e o outro no Treinamento.

Entretanto, assim como convenci Piccolo a pegar mais leve nos treinos, meus argumentos para com Chi-chi pareceram convencê-la de, no futuro, quando Gohan voltasse do internato, ela pegar mais leve com ele nos estudos. 

Assim pelo menos eu esperava.

Por conta de toda essa frustração com lutas, para manter a paz da nossa relação, eu procurava, na medida do possível, evitar falar sobre este tema toda vez que Chi-chi me visitava, e fico feliz em dizer que muitas receitas deliciosas vieram de nossa fraternidade.

Se o meu Dojô desse errado, eu com certeza seria capaz de me sustentar com os quitutes que aprendi com minha cunhada. Não quero me gabar, mas sou uma cozinheira de mão cheia! Uma pena que eu não possa cozinhar para você, caro leitor. Tenho certeza de que a leitura ficaria mais agradável com um belo prato de comida a sua frente, não acha?

Então, passados cerca de cinco meses desde a batalha dos Saiyajins, eu estava firme e forte nas minhas aulas, meus episódios de TEPT haviam diminuído, minha amizade com Chi-chi aumentava e eu até conseguia uma renda extra fazendo alguns bolos ou assados que os pais dos meus alunos encomendavam de vez em quando.

Mas algo ainda faltava.

A dor da perda tão repentina de Piccolo continuava me assolando. Dia e noite. Até hoje não sei dizer se eu ainda estava de luto pela sua morte ou não. É impossível calcular por quanto tempo uma pessoa pode sofrer pela perda de alguém.

Acredito que o que mais me dilacerava era eu não ter absolutamente nada dele para guardar comigo ou para matar a saudade. Nenhuma foto, nenhuma carta, nem mesmo uma pecinha de roupa dele para eu dormir abraçada. A única coisa que me restou foi o pijama de moletom que ele fez para mim quando passei mal. Eu não tirava aquele par de calças por nada neste mundo. Apenas para lavar, e o colocava de novo quando ainda nem tinha secado direito.

Contudo, foi numa tarde nublada que encontrei algo que trouxe uma parte de Piccolo para mim.

Algo, não… Alguém.

Meu dia estava horrível. Tive um pesadelo com a morte de Piccolo durante a noite, em um episódio surpresa e nada bem-vindo do meu TEPT. Pela milésima vez, sonhei com ele morrendo em meus braços, e eu não conseguia fazer nada para salvá-lo.

Após minha última turma no sábado de manhã, não tive vontade de almoçar e só quis ficar na cama. Aquilo era um péssimo sinal para o meu tratamento. No entanto, uma voz me dizia para sair de casa e voar pela região. Uma voz suave e meiga. Era como se uma força maior quisesse me arrastar para fora de casa contra minha vontade.

Tentei resistir, mas meu coração pulsou rápido e não suportei mais, temendo que fosse uma nova crise de pânico. Então, saí de casa para obedecer ao meu coração teimoso. Nuvens cinzentas cobriam um céu carregado. Em breve cairia uma tempestade feia. Mas não me importei. Quem sabe a chuva não lavasse a tristeza da minha alma?

Voei por uns cinco minutos e me senti assustadoramente exausta. Tropeçando em meus próprios pés, fui forçada a pousar numa estrada de terra que ligava um vilarejo a outro. Mal comecei a caminhar, uma súbita fraqueza acometeu minhas pernas. Precisei sentar na beira daquela estrada solitária.

— Ah, Piccolo… — solucei, baixinho, olhando para o alto na esperança de ver sua capa branca entrecortando os céus escuros.

Mas as lágrimas turvaram minha visão, e não vi nada.

Permaneci ali, chorando numa angústia que parecia não ter fim. Até quando eu me sentiria destroçada daquele jeito?! Quando aquela dor iria embora???

A única coisa que me restou foi baixar a cabeça entre minhas pernas e chorar, chorar e chorar…

Foi então que outro choro sobressaiu ao meu.

Um choro agudo, estridente e carregado de desespero.

O choro de um bebê.

A típica adrenalina que eu tanto conhecia percorreu minhas veias no mesmo instante e levantei num sobressalto, com meus olhos ainda inchados e ardentes.

Procurando a fonte daquele clamor, corri pela estrada, levantando poeira conforme o choro ficava mais forte. Foi então que, perto de um gramado, avistei uma cesta de vime.

O choro vinha de dentro da cesta. Sem pensar duas vezes, debrucei sobre aquela cesta e arquejei em espanto.

Havia uma bebê ali dentro.

Enrolada numa mantinha rosa, seu rosto estava vermelho devido à força do seu choro. Ela era minúscula. Deveria ter pouquíssimos dias de vida, e um tufo de cabelos negros cobria sua cabeça.

Dobrado com cuidado por entre as camadas da mantinha, um bilhete branco se destacava. Com as mãos trêmulas, abri aquele papel e li: "Seu nome é Naíma. Por favor, cuide dela. Eu te imploro. Obrigada."

Um formigamento percorreu todo o meu corpo.

Na minha cabeça, uma imagem se formou: de quando minha mãe me colocou numa cápsula para viajar Universo afora, na esperança de que eu encontrasse segurança em outro mundo.

Uma lágrima pesada e quente escorreu pelo meu rosto.

Analisei aquele bilhete, olhei para aquela bebê…

E vi a mim mesma.

Foi como se um raio daquela iminente tempestade me atingisse.

Quando dei por mim, já havia pegado a bebê em meus braços e a aninhado em meu peito, balançando-a para acalmá-la, enquanto eu olhava de um lado para o outro para ver se encontrava alguém por ali.

Mas só havia eu e a bebê naquela solitária estrada de terra.

Meu coração disparava ao me encontrar numa situação que nunca imaginei que aconteceria. Eu havia encontrado uma bebê abandonada!

Apenas um nome cruzou minha mente: Chi-chi. Eu precisava ir até ela buscar sua orientação. Sim! Ela saberia o que fazer!

Uma onda de energia se apoderou do meu corpo. Eu precisava voar, mas como?! A bebê era muito pequena. Seria perigoso eu voar sozinha com ela. Eu precisava de algum meio de transporte que pelo menos nos trouxesse um pouco de segurança. Mas não havia nenhum ponto de táxi por perto.

Foi então que me lembrei de uma coisa. Mas, será que daria certo?

Não importava. Eu tinha que ao menos tentar. A bebê precisava de ajuda, e urgente.

— NUVEM VOADORA!!! — gritei para os céus.

Aguardei ansiosos segundos. Será que apenas Goku tinha o poder de chamá-la?

Meu coração estava para sair pela boca quando enfim a avistei: um pontinho amarelo e reluzente em meio a tantas nuvens escuras e sombrias. A Nuvem Voadora parou na minha frente. Olhei para a bebê em meus braços, a apertei um pouco mais forte e subi.

Foi como mágica. Eu apenas pensei na casa de Chi-chi, e a Nuvem Voadora ergueu-se pelos ares de um modo rápido, mas seguro. Parecia que ela sentia que havia uma pequena vida frágil em meus braços e que precisava ir com mais cuidado.

Por todo o trajeto, afaguei as costas da bebê e sussurrei palavras gentis e reconfortantes, procurando aninhá-la em meu pescoço para sentir-se protegida e quentinha.

Minha alma doía ao ouvir o choro daquela bebê; um choro sofrido de alguém que experimentou o medo e a solidão em tão pouco tempo de vida. Seu corpinho cabia nas minhas duas mãos, que a seguravam com força para não cair durante o trajeto.

Quando pousei no gramado em frente à casa da minha cunhada, as primeiras gotas daquela tempestade caíram. Agradeci a Nuvem Voadora e corri.

— CHI-CHI!!! — Esmurrei a porta em desespero. — SOCORRO!!!

Ouvi uma tampa de panela caindo lá dentro e passos apressados.

— MAS O QUE É ISS– esbravejou Chi-chi ao abrir a porta. Mas ela congelou.

Nossos olhares assustados se encontraram. Os dela então desceram até mirarem o pacotinho em minhas mãos.

— P-Por favor… — sussurrei, balançando a bebê, nós duas aos prantos. — Me ajuda!

— Entre. — Foi tudo o que ela disse, me dando passagem e fechando a porta atrás de si.

Fui direto até o sofá e me sentei, apoiando a bebê nas minhas pernas, massageando seu peito para acalmar aquele coraçãozinho conturbado.

— O que aconteceu??? — Chi-chi sentou-se ao meu lado, encarando a bebê. — Quem é ela?!

Gaguejando em nervosismo, contei tudo. Inclusive a parte em que precisei sair de casa por conta do meu estado emocional. Durante um tempo, observei Chi-chi analisar a bebê com um olhar enigmático, ainda inquieta no meu colo.

— É como se… É como se tivesse que acontecer… — sussurrou ela.

— O que disse? — repliquei, confusa.

Ela virou-se para mim com um semblante sério.

— Olhe pela janela, Lettie.

Virei minha cabeça na direção que ela havia apontado e assisti a uma tempestade torrencial desabando pelos céus com pesadas gotas d'água. Um horripilante pensamento me ocorreu: se eu não tivesse obedecido àquela voz em meu coração e encontrado a bebê a tempo, ela decerto teria morrido afogada naquela tempestade. Teria sido tarde demais.

É como se tivesse que acontecer…

De olhos arregalados, fitei aquela bebê em meus braços e meu coração deu uma pulsada forte. 

Entrei em desespero.

— Mas, e agora?! O que eu faço, Chi-chi?! V-Você já teve experiência com Gohan bebê! O que ela precisa??

— O que esta bebê precisa — ela levantou-se num pulo —, é de um bom banho, fraldas, roupas novas e muito, muito leite. — Ela foi até a porta que dava acesso à garagem e pegou as chaves do seu carro. — Vou sair para comprar essas coisas. Volto em cerca de uma hora, se essa chuva me permitir. — Ela tirou o avental que usava e abriu a porta. Mas, antes de sair, virou-se e, apontando a chave para mim com seu típico modo autoritário, disse: — Você precisa tirar uma carteira de motorista com urgência. Não é porque sabe voar que deve negligenciar essas coisas.

— S-S-Sim, senhora! — Juro que quase bati continência.

— Já volto. — Chi-chi então me deu um pequeno sorriso amistoso. — Procure se acalmar. Foque no bem-estar da bebê. Ela precisa que você transmita segurança. — E saiu pela porta.

Foi a hora mais longa que já esperei. Nem quando aguardamos o retorno de Goku durante aquelas três horas na batalha contra os Saiyajins senti o tempo passar tão devagar.

Apesar de adorar crianças, nunca, em toda a minha vida, precisei cuidar de uma bebê. Me senti uma completa idiota ao me ver responsável por alguém tão pequena de uma hora para outra.

No entanto, eu havia percebido que a bebê gostou de ficar aninhada em meu pescoço durante o voo, num contato pele a pele. Assim, logo que Chi-chi saiu, com todo o cuidado, coloquei-a de volta naquela posição, afagando suas costas e balançando-a devagar até que seu chorinho foi se extinguindo e, por fim, se findou.

A bebê dormiu. Nem consegui respirar de alívio, pois fiquei com medo dela acordar de novo. Porém, conforme os minutos foram se passando, me permiti relaxar, principalmente após refletir sobre as palavras da minha cunhada de que a bebê precisava que eu lhe transmitisse segurança. Ficar tensa não ajudaria em nada.

Não vou mentir e dizer que não gostei de ficar ali, abraçada a ela. Como parte do meu maior sonho, sempre imaginei como seria ter um bebê em meus braços. E agora, eu experimentava um gostinho daquela sensação.

Era tão, tão bom…

O contato com aquela bebezinha me trazia uma paz tão maravilhosa…

Minha mente vagou até Piccolo. Pela primeira vez, pensar nele não me trouxe dor, mas sim acalento. Por alguma razão, imaginei-o ali ao meu lado. O que será que ele diria se me visse naquela situação? Apesar do seu jeito sério e fechado, eu conhecia o seu coração; eu havia testemunhado sua transformação durante aquele ano que passamos juntos.

Algo dentro de mim dizia que ele ficaria tão preocupado com aquela bebê quanto eu. E isso me trouxe profunda… alegria.

Quase perto da hora de Chi-chi voltar, a bebê acordou, mas não chorou. Só ficou emitindo alguns resmungos típicos de serumaninhos daquele tamanho. Com delicadeza, coloquei-a deitada sobre minhas pernas de novo e analisei cada detalhe daquele rostinho redondo.

— Oi, Naíma… — Sorri com afeto, finalmente dizendo seu nome em voz alta; o nome o qual sua mãe biológica escreveu no bilhete ainda dobrado em meu bolso.

Suas bochechas rosadas contrastavam com a pele clara. Longos fios negros despontavam de seu couro cabeludo, agora desgrenhados por conta de todo o transtorno que havia sofrido. Devagar, percorri meus dedos pelos seus cabelos para penteá-los, do mesmo modo que fiz inúmeras vezes com Gohan. Aposto que ele também estaria muito preocupado com ela se estivesse aqui…

Foi então que reparei nos olhos dela, os quais esquadrinhavam ao redor com muita curiosidade. Eram negros, pequenos e intensos. Meu coração deu outra pulsada forte ao perceber que eles me lembravam muito os olhos de… Piccolo.

Quando mirei com atenção aqueles olhinhos pretos, os quais agora me encaravam profundamente, senti-me arrebatada para todos os momentos em que os olhos de Piccolo se encontraram com os meus durante o tempo que passamos juntos.

Uma lágrima escorreu pelo meu rosto. Era como se eu pudesse vê-lo através dos olhos de Naíma; como se eu pudesse matar a saudade que tanto me consumia pela sua ausência.

Um pensamento bobo me ocorreu. Um pensamento íntimo, mas que expressava um desejo que eu guardava em meu coração.

Se Piccolo não tivesse morrido e nós tivéssemos ficado juntos, será que… se um dia tivéssemos uma filha, ela seria parecida com esta bebê que eu agora segurava em meu colo?

Não nego que já passei um bom tempo dos últimos meses fantasiando como seria a aparência dos nossos filhos. Eles nasceriam parecidos comigo ou com ele? A pele seria igual à minha ou num tom esverdeado como o dele? Nasceria um bebê com os aspectos físicos de um Saiyajin ou de um Namekuseijin?

Eram tantas possibilidades…

Mas a morte arrancou todas elas de mim.

Contudo, ao olhar para Naíma, enxerguei nela uma dessas possibilidades.

Sacudi a cabeça. No que eu estava pensando? Piccolo estava morto. Esqueça essas fantasias!

Minha discussão interna foi interrompida com a chegada de Chi-chi, abarrotada de sacolas de mercado.

Em cinco minutos, ela já havia colocado água para esquentar e encontrado no fundo do guarda-roupa a banheirinha de plástico que usou quando Gohan era bebê. Então, começamos nossa tarefa de limpar aquela pobre bebê. Infelizmente, Naíma estava bem suja.

Com uma paciência que até estranhei, Chi-chi me orientou como dar banho numa bebê daquele tamanho, de um modo que não a assustasse e que fosse um momento relaxante.

Fiquei com tanto medo de derrubá-la. Parecia que eu segurava uma coisinha feita de cristal e que poderia quebrar a qualquer momento.

— Você leva jeito pra isso. — Ela sorriu ao ver como eu limpava com muito cuidado a região do cordão umbilical que ainda não havia caído. Este fato só mostrava que Naíma deveria ter poucos dias de vida.

Depois do banho, seguindo as orientações de Chi-chi, a enrolei numa toalha macia e a apoiei na cama de Gohan para secá-la delicadamente, procurando conversar com ela com suavidade e mansidão para que ela não se assustasse com todas aquelas texturas novas em seu corpo.

Naíma não gostou muito de colocar a roupinha nova que Chi-chi comprou, pois precisava se desdobrar toda para se vestir. Mas, sobrevivemos. Na verdade, fiquei impressionada com o quanto ela era quietinha. Mesmo passando por tudo o que passou nas últimas horas, Naíma apenas chorou naquele período antes de adormecer aninhada ao meu pescoço.

Já anoitecia quando terminei de vesti-la. Ao pegá-la no colo de novo, Naíma instintivamente procurou o meu peito.

— Ei, pequena… — Eu ri, acariciando suas bochechas. — Não tem leite por aqui, não.

— Venha. — Chi-chi riu comigo. — Vou te ensinar como preparar a fórmula. Ela deve estar faminta.

Compenetrada, assisti minha cunhada preparar o leite e o colocar numa mamadeira nova que comprou. Logo, Naíma mamava todo o conteúdo com um apetite voraz.

— Pobrezinha… — lamentou Chi-chi ao nosso lado no sofá. — Há quanto tempo ela não deve se alimentar…

— E agora? — Esbocei uma feição aflita, observando Naíma terminar a segunda mamadeira. — O que devo fazer?

— Bom… — Chi-chi deu de ombros, pressionando os lábios. — Foi você quem a encontrou. É seu direito decidir o destino dela.

E quanto ao direito de Naíma? O que será que ela queria?

Ou melhor, o que ela precisava?

Sua respiração profunda preencheu o espaço entre nós. Ela havia dormido, com as mãozinhas minúsculas agarradas à minha roupa com uma força impressionante.

Sorri com ternura.

— Você não é uma Saiyajin, mas é forte como uma.

Ali estava Naíma. Limpa, quentinha, alimentada e acalentada. Era isso o que ela precisava. Era isso o que todo bebê precisava.

Ergui minha cabeça para Chi-chi e disse:

— Vou levá-la comigo, até… — Pausei por um momento. — Até botar a cabeça no lugar e pensar no próximo passo.

— Mas e quanto às suas aulas? — indagou Chi-chi.

Pensei por um momento e respondi:

— Amanhã é domingo. Acredito que consigo ir até os vilarejos e fazendas comunicar os meus alunos que tirarei uma semana de recesso. Acho que é o suficiente para Naíma se recuperar bem e… eu tomar uma decisão. — Estalei a língua. — Droga, mas não posso levá-la junto… Será muito cansativo.

— Deixe comigo — assegurou minha cunhada. — Eu vou até sua casa amanhã, enquanto você faz isso.

— T-Tem certeza? — Me preocupei. — Você já faz muito por mim, Chi-chi… Mais do que eu poderia imaginar! Não quero abusar da sua generosidad–

— Pare com isso. — Ela ergueu a mão e obedeci de prontidão. — Será um prazer ajudar. Somos família e você tem sido uma ótima companhia para mim nos últimos meses. Além disso… — Ela olhou para a gaveta da cozinha na qual eu sabia que ela guardava seus antidepressivos. — A presença de uma bebê me fará muito bem.

Trocamos um olhar de mútua compreensão e aceitei sua ajuda.

— Muito bem. — Chi-chi se levantou. — Já que é assim, acho que seu próximo passo é providenciar um carrinho de bebê. — Ela riu. — Ou vai colocá-la na cama de Gohan lá na sua casa? Espere aí, vou buscar o antigo carrinho dele. Deve estar guardado em algum armário da garagem…

Uma hora depois, Chi-chi me dava uma carona e me deixava na frente de casa. A Lua brilhava alto nos céus quando descarregamos o carrinho de bebê de Gohan e toda a compra que ela fez no mercado. Da varanda, iluminadas pelas arandelas amareladas nas paredes, nos despedimos e a observei voltar para o carro. Naíma ainda dormia em meu colo.

— Quer um último conselho? — Chi-chi virou-se para mim antes de entrar pelo lado do motorista. — Durma enquanto ela dorme. Vai me agradecer depois.

— Você é a melhor cunhada do mundo — respondi num tom baixo e lhe dei um sorriso. — Até amanhã.

E assim, Naíma e eu ficamos sozinhas, com apenas os sons dos grilos e cigarras sobrepondo o silêncio noturno da minha casa.

Tivemos uma noite relativamente tranquila para uma mulher como eu, que nunca passou pela experiência de cuidar de uma bebê sozinha. Coloquei Naíma no carrinho ao lado da minha cama e ela acordou apenas uma vez para mamar e dormiu o resto da noite. Já eu não consegui dormir nada. Eu a checava a cada dois minutos e não saía da minha cabeça o fato de que, se eu não tivesse saído de casa mais cedo naquele dia, ela poderia ter morrido por causa da tempestade.

As palavras de Chi-chi também não saíam da minha cabeça: "É como se tivesse que acontecer…"

Era verdade? Será que fui compelida a sair de casa naquela exata hora, parar naquela estrada de terra e chorar pela saudade de Piccolo só para poder encontrá-la antes que fosse tarde demais?

Por que meu coração ardia toda vez que eu a contemplava dormindo ali, ao meu lado? Por que eu experimentava o mesmo sentimento que tenho por Gohan quando eu a aninhava em meu peito?

E por que eu pensava em Piccolo quando nossos olhos se encontravam?

Eu não tinha a resposta para nenhuma daquelas perguntas, apenas ouvia a suave respiração de Naíma dormindo no carrinho.

Quando pisquei, uma semana havia se passado desde que a encontrei. Minha casa havia se transformado de cabeça pra baixo. Não no sentido ruim da palavra, mas aos poucos, a presença de Naíma foi tomando cada cantinho do meu lar. Suas roupas limpas estavam dobradas num canto, pacotes de fraldas organizados em outro, latas de fórmula empilhadas pela data de validade, mamadeiras, cobertores, brinquedos e muito mais estavam espalhados por todo o lugar.

Chi-chi precisou ficar cuidando dela quando, pela segunda vez, precisei sair para avisar meus alunos que tiraria mais uma semana de recesso por conta de uma emergência familiar.

Durante o tempo que passamos juntas, não tive um único episódio do meu TEPT, e a dor que eu sentia quando pensava em Piccolo logo foi sendo substituída por uma saudade gostosa a cada vez que eu olhava para Naíma e o via refletido nela.

Nós nos tornamos unha e carne. Compartilhávamos de um passado em comum, de uma origem em comum. Uma força além da minha compreensão não permitia que nos desgrudássemos nem por um segundo sequer. Acordávamos juntas, comíamos juntas, brincávamos juntas, tomávamos banho juntas e dormíamos juntas. Uma ânsia quase que de urgência nos circundava, como se uma não conseguisse mais ficar sem a companhia da outra.

Chegou um ponto em que me questionei como consegui viver minha vida toda sem a presença de Naíma. Ela era a bebê mais tranquila e carinhosa do mundo. Era raro vê-la chorar e, quando fazia, era um choro baixo e manhoso, daqueles que você até gosta de ouvir de tão fofo que era. Tadinha.

Chi-chi vinha nos visitar com frequência, afinal era bem melhor ficar conosco do que sozinha em casa sentindo falta do seu marido e filho. Como sempre, ela me ensinou muito com sua experiência na maternidade e cheguei à conclusão de que minha cunhada não era uma mãe ruim. Sua paranoia com os estudos de Gohan era um reflexo de algo mais profundo, e acredito que meu irmão tinha uma parcela de culpa nisso, infelizmente.

Contudo, a presença de Chi-chi em minha casa também trouxe uma realidade que, no fundo, eu evitava a qualquer custo.

— E então? — Ela me olhou de um jeito sério e preocupado, num sábado à tarde. — Já tomou sua decisão sobre o que fará com ela? Já se passaram duas semanas desde que a encontrou.

Estávamos sentadas no sofá e eu amamentava Naíma em meu colo. Sem conseguir encará-la, desviei o olhar e permaneci em silêncio, focando em Naíma. Apenas em Naíma.

— Lettie, olhe para mim. — pediu ela e obedeci. — Por que você ainda não a levou a um orfanato?

Fez-se silêncio outra vez. Meus olhos arderam.

— Estou ficando preocupada com você — continuou ela. — Algum motivo deve existir.

Engoli uma saliva amarga, contemplei Naíma e enfim confessei num sussurro:

— Ela me lembra o Piccolo.

O semblante preocupado de Chi-chi se agravou. A essa altura, ela já se tornara minha amiga o suficiente para saber tudo o que aconteceu durante o ano que passamos juntos no Treinamento, e sobre meus sentimentos para com Piccolo. Pelo menos, ao descobrir toda a transformação e arrependimento dele, ela deixou de lado todo o preconceito que tinha contra o ex-inimigo de Goku. Sobretudo ao saber dos detalhes de como ele se sacrificou para dar a vida por mim e Gohan.

— Ah, Lettie… — Ela afagou meu braço ao ver que não contive mais minhas lágrimas.

— P-Por favor… — implorei, engolindo um soluço. — Me deixe pensar um pouco mais…

Chi-chi nos analisou por um momento com uma expressão compassiva e, por fim, assentiu em concordância, suspirando com pesar. Depois de um tempo, se despediu e foi embora.

Naquela noite, como de costume, tomei banho com Naíma na banheira da minha suíte. Eu a apoiava em minhas pernas, molhando seus cabelos com o chuveirinho. Não consegui nem conversar ou brincar com ela, como eu fazia. Um grande nó se formava em minha garganta.

Pensei sobre a questão de entregá-la para um orfanato. Porém, a sensação que eu tinha era que, se eu fizesse isso, seria eu quem estaria abandonando-a. Era algo impensável para mim, entregá-la como se fosse um mero objeto, depois de todo o tempo que passamos juntas, criando uma conexão tão verdadeira quanto minha herança Saiyajin. Além disso, quem garantiria que ela tivesse um bom futuro? Quem garantiria que alguém bom a adotaria e lhe daria a vida que merecia?

E se ela acabasse como eu? Abandonada nas ruas, passando fome e tendo que se sustentar num lugar cheio de gente podre?

Não. Eu não podia fazer isso.

Meu encontro com ela não pode ter sido por um mero acaso. A voz que me fez sair de casa naquele dia nublado foi muito clara para ter sido uma ilusão da minha cabeça.

Como confirmando minhas palavras, a mesma voz suave e meiga retornou ao meu coração e disse: "Ela é sua."

Contemplei Naíma ali comigo naquela banheira quentinha, sentindo um formigamento por todo o meu corpo ao ouvir mais uma vez aquela voz tão poderosa. 

Como resposta, Naíma sorriu para mim. Um sorriso grande e banguela, com seus olhinhos negros, pequenos e intensos entrecortando minha alma como uma espada de dois gumes.

Foi impossível suportar mais. Com o mesmo cuidado e carinho que a tratei desde que a conheci, trouxe Naíma para junto de mim, aninhando-a em meu pescoço, e chorei.

Naíma era minha. Minha bebê. Fui até ela e ela veio até mim, como se os céus me enviassem um pedacinho do Piccolo que eu tanto necessitava para eu guardar aqui, comigo.

Sim. Eu tomei minha decisão. Eu adotaria Naíma e ela seria a filha que eu e Piccolo nunca tivemos a chance de ter.

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