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Capítulo Único

Amber olhou mais uma vez para aquele homem intrigante que posava elegantemente em um canto do salão de festas. Seu rosto era limpo, como o da garota, sem aquelas placas metálicas que os adultos pela sala usavam. Estava bem trajado, com um terno acinzentado de alta-costura e uma camisa vermelho borgonha. Usava uma calça cinza com suaves listras brancas. Faltava a gravata de seda envolta do pescoço para completar o visual tradicional que a família de Amber tanto presava. Pelo contrário, ele deixara propositalmente os últimos botões da camisa abertos, expondo um pouco de seu peitoral. Acima do bolso do blazer havia uma rosa dourada. Cada pétala cintilava junto a luz do lustre no teto.

Com certeza, o que mais intrigava Amber eram os olhos do homem. Eram azuis, mas de um azul tão profundo que era como se o próprio oceano estivesse contido dentro de seu olhar. Tão profundo que é impossível dizer o que estava pensando por sua expressão. Parecia melancólico, olhando para os convidados com desinteresse.

De repente, seus olhos passaram por Amber, e a garota não conseguiu esconder que o observava. Ela deslizou a cabeça para o lado delicadamente e fingiu encarar o chão. Em seguida, ela ouviu ao longe as batidas leves no chão de madeira marfim, passos que se aproximavam dela. Amber espiou pelo canto dos olhos, ainda encarando o chão. Um par de side gores pretos desfilavam pelo salão, trazendo consigo aquele homem misterioso. A garota arfou o peito e logo tratou de passar os dedos em certos pontos do cabelo, para ter certeza que seu penteado estava aprumado e em ordem. Sentia uma estranha ardência nas maçãs de seu rosto. Puxou as abas de seu longo vestido branco para o lugar e esperou que o homem viesse lhe cumprimentar.

O rapaz gentilmente estendeu a mão e Amber repousou a palma da sua própria mão contra a dele. A garota sentiu o aroma de um perfume suave invadir suas narinas. Tinha notas ácidas, como se um vinho de maçã verde tivesse quebrado em uma rua banhada pela chuva e tudo o que restasse fosse a lembrança do sabor da bebida. Luvas de seda de preto azeviche cobriam as mãos do jovem. O homem esbouçou um sorriso galanteador para ela e perguntou:

—Gostaria de saber o porquê de uma dama tão esplendorosa estar parada sozinha no meio de um salão de dança.

—Poderia dizer o mesmo de ti. Parecias aborrecido. —Ela o respondeu.

—Apenas divagando sobre a vida.

Ele então se curvou e pôs a mão sobre o peitoral, saudando novamente a garota e dizendo:

—Perdoe meus modos, ainda não me apresentei. Me chamo Paul Violet.

—Amber Tibet. —Disse a garota, retribuindo a saudação. —De que província vens?

—Venho da região sul da cidade, minha cara.

Amber não conteve um suspiro de surpresa. Seu pai sempre lhe contara que a parte sul era a mais pobre de New New City. Ela nunca imaginaria conhecer alguém tão sofisticado que morasse por lá.

Paul deve ter percebido o espanto da jovem, pois logo riu consigo mesmo. Caminhou até uma das portas do salão e apertou a mão de um dos guardas. Amber seguiu o rapaz, que se dirigia para o jardim da família, observando o céu noturno. A garota encaixou sobre o nariz um pequeno dispositivo para filtrar o ar. Respirar o ar da cidade, mesmo que por pouco tempo, poderia trazer complicações para sua saúde. Se criasse uma mancha no pulmão e precisasse de uma instalação de placas de peridotito, seus pais nunca a perdoariam por isso.

Amber conseguia ver apenas uma estrela brilhar no céu, enfrentando todos os gases poluentes que competiam por um lugar na atmosfera. A estrela brilhava, penosa, quase ofuscada pelo mar de toxidade. Paul observava sorridente a moça se aproximar, enquanto descansava o corpo na estrutura de pedra que cercava o pequeno lago do jardim:

—Gosta de flores, senhorita Tibet? —Disse ele, apontando para o imenso campo de crisântemos amarelos que floresciam ao redor do gramado.

—São bonitas, mas não me chamam tanta atenção.

—Me pergunto o que consegue capturar a atenção da jovem.

Amber refletiu sobre o que fez ela encarar por tanto tempo aquele rapaz, e do porquê ainda estar interessada nele. As mechas douradas de seu cabelo flutuavam acima dos ombros com a menor das brisas e os olhos azuis haviam ficado ainda mais escuros sem a luz do salão.

O homem levou o lábio inferior para perto dos dentes e soltou um longo assobio. Um pássaro mecânico pousou em seu ombro. Era revestido grosseiramente por partes de metal não refinados e chacoalhava levemente enquanto mantinha o equilíbrio. Amber olhou com curiosidade o animal robótico, sendo observada de perto por Paul:

—Tu o construístes?

—É meu amigo mais próximo. Krys, diga 'oi' para a moça.

O pássaro vergou seu corpo penosamente para a frente e um som metálico soou pela cabeça do animal:

—Já foi para os subúrbios da cidade, senhorita?

—Meus pais nunca deixariam, eles têm medo que eu vá me ferir fora dos arredores da residência.

Amber fitou seus dedos, as mãos, os braços e cotovelos. Depois, deu mais uma olhada na criação de Paul. As pessoas de fora que eram contratadas por seus pais exibiam várias placas de metal, mais do que os próprios convidados de elite que dançavam no salão atrás deles. Alguns empregados tinham membros inteiros substituídos por peças mecânicas. Sua mãe sempre dizia para ela – quando a garota a interrogava sobre as placas – que nunca manchariam o corpo de Amber com esses aparatos. Ela viveria pura, livre dos aprimoramentos, para que pudesse se casar com um magnata famoso em perfeito estado.

Olhando para o horizonte, a garota imaginou como sua vida seria se não tivesse nascido naquela família:

—E como é o mundo lá fora? —Ela perguntou.

—Bom, é muito brilhante, mas um pouco monocromático. Os prédios não são pintados, ao contrário da casa da senhorita. As ruas são cobertas de telas luminosas. Já as pessoas, são elas quem colorem a cidade inteira. É muito comum ver mechas de cabelos das mais diversas cores, com vários cortes de cabelo também. É um estilo totalmente contrário a dos presentes aqui.

—As pessoas nascem com cabelos coloridos?

O homem encarou Amber, como se tentasse descobrir se a pergunta era realmente séria. Ele abriu um sorriso deslumbrante e riu com a inocência dela:

—Ainda não, mas provavelmente é só uma questão de tempo. A tecnologia já avançou muito.

A dama continuou confusa. Não tinha ouvido falar sobre essa coisa chamada tecnologia, muito menos sabia o que realmente aquilo significava. O homem completou:

—Diga, querida Tibet: sabe porque as pessoas instalam as placas de peridotito em seus corpos?

A garota ficou em silêncio. Não fazia ideia do motivo real, sempre pensou que fosse alguma escolha estética ou medicinal, mas as respostas que recebia dos outros eram dúbias demais para tirar uma conclusão. Esperou que Paul respondesse a própria pergunta, e assim ele o fez:

—Elas instalam todo esse metal para fugir do limite do corpo humano. Há muito tempo, a humanidade concordou que para que houvesse progresso de verdade, era preciso que a barreira da carne fosse deixada de lado. Agora, as pessoas andam por aí com conectores acoplados diretamente ao sistema neural, acessam o que quiserem em um piscar de olhos. Se estão doentes, elas vão para um assistente de bio-metalurgia e saem de lá com uma peça nova no corpo. Os médicos se tornaram profissionais obsoletos. Há, ainda, pessoas que abandonaram totalmente a carne e vivem igual Krys, completamente metálicos.

Outro som ressoou da cabeça do pássaro, como se ele estivesse retrucando seu criador. O homem deu de ombros, fazendo o animal balançar. A garota mirou a cidade, tentando pintar uma gravura com todas as informações que Paul havia contado. O contraste com a vida que ela levava era muito grande. Parecia que a garota havia se escondido da realidade desde que nasceu. A poucos metros a frente, viviam milhares de pessoas tão diferentes que ela nunca imaginaria encontrar. Amber se perguntou como devia ser a aparência de uma pessoa completamente metálica, assim como o pássaro ao lado.

Suspirou, pois sabia que nunca seria permitido que ela pudesse olhar por si mesma o incrível cenário que Paul descrevera. Disse, com um tom de melancolia na voz:

—Gostaria de ver pelo menos uma vez em minha vida como é o mundo de fora…

—Eu posso te levar para ver, depois da festa. —Disse o homem, e vendo a expressão que a jovem fez, logo completou. —Vai ser o nosso segredo.

De repente, Paul levantou a mão da garota, analisando a pulseira de esmeraldas que pendia em seu pulso:

—Combinam com seus olhos. —Ele disse, simplesmente.

Amber arfou, sem acreditar no que ouvira. Sempre recebia olhares pesarosos como resposta quando perguntava sobre sua pulseira. Todos a sua volta sentiam o fato de que Amber não havia herdado os olhos verdes intensos da mãe. Para todos, olhos castanhos não haviam sido criados para combinar com gemas nobres como as esmeraldas.

A voz de Paul sussurrou próximo ao ouvido da dama, despertando-a de seus pensamentos:

—Vamos entrar. Eu prometo que essa noite será inesquecível para você.

O homem guardou uma mecha dos castanhos cabelos de Amber atrás de sua orelha esquerda e a guiou de volta ao salão, dizendo ao pássaro alguma instrução para que levantasse voo. Ao entrar, Paul estendeu a mão para o guarda que estava a postos e o cumprimentou cordialmente.

Enquanto seguiam para o centro do salão, a garota refletiu sobre o estranho hábito de Paul de tocar em Amber apenas com a mão esquerda, ao passo que sempre cumprimentava os outros com a mão direita.

Ele retirou duas taças da bandeja de prata que um empregado usava para distribuir as bebidas para os convidados. Paul ofereceu uma taça para a garota, que a pegou delicadamente. Retirou as luvas e as guardou em um dos bolsos do blazer. Puxou a flor que levava no peitoral e jogou algumas pétalas dentro da taça da garota. Ela riu do charme brincalhão do rapaz e deu um gole, sentindo a bebida alcoolizada queimar suavemente sua garganta.

Amber repousou a taça em outra bandeja que rodava pela festa e foi imediatamente rodeada pelos braços de Paul. Ele puxou uma das mãos da garota e os dois começaram a dançar pelo salão. Amber colocou sua mão livre sobre o peitoral do rapaz. Debaixo da camisa de linho, ela sentiu o frio metálico das placas de peridotito. Não só no peito, mas as mãos que, uma segurava fortemente a taça de vinho e a outra guiava a mão de Amber pelo salão, ambas eram metálicas.

A dama fitou profundamente os olhos de Paul. Era isso que a intrigava tanto no homem. No fundo daquele mar profundo residia uma fagulha fervorosa de um mal obscuro. Quanto mais Amber olhava para aquela chama maléfica, maior ela se tornava, ao passo que a garota se sentia incapaz de fugir, sendo levada pela correnteza daquele mar.

Paul engoliu toda a bebida de uma vez, atirando a taça ao chão assim que acabou de tomar o líquido. Amber não conseguia desviar do olhar penetrante do rapaz, mas sentiu em suas costas a raiva do casal que quase fora atingido pela taça. Antes que o senhor pudesse iniciar uma discussão com Paul, o rapaz subitamente levantou a mão livre e estalou os dedos.

As luzes se apagaram, as janelas quebraram e os convidados gritaram de medo. Paul fez um gesto elegante com a mão e enfim agarrou a cintura de Amber, apertando o passo da dança.

Um tumulto nasceu no salão, rodeando os dois com os mais diversos barulhos. Baques despontavam de vários pontos do ambiente, mas Amber não sabia dizer sua origem exata. Alguém chamou pelo nome da garota, mas a voz parecia tão distante, silenciada pelas ondas marítimas.

Luzes pipocavam sequencialmente, colorindo a noite com tons de amarelo e vermelho. A cada novo feixe de luz que invadia o campo de visão de Amber, mais assustador o rosto de Paul se tornava e mais sedutores eram seus encantos. Os dois já estavam praticamente colados um no outro e rodopiavam sem parar.

O vermelho começou a invadir o vestido branco de Amber pelos respingos do caos que reinava dentro da sala. A garota tentava raciocinar, tentando entender o que se passava a sua volta, mas sua mente estava nublada. Cada pensamento novo era imediatamente sugado pelo mar que corria no olhar de Paul, até nunca mais ser visto novamente.

O homem sussurrou para a dama, com calma e frieza, diferente do tom doce e terno que usara a pouco:

—A rosa dourada da minha família tem uma propriedade peculiar. Depois de anos absorvendo os poluentes que fluem interminavelmente pelas ruas da região sul de New New City, a planta desenvolveu suas flores com uma propriedade que concede um substrato poderoso capaz de sedar uma pessoa. É ótima para a indústria farmacêutica local, porém ainda enfrentamos um problema recorrente. A planta também produz rosas com uma toxina letal. A taxa de chance das rosas produzidas pela planta serem da natureza tóxica é de cinquenta por cento. Quer apostar qual delas foi a que eu trouxe essa noite?

Amber queria responder, mas logo esqueceu sua resposta. Além de tudo, sua boca não lhe respondia mais, assim como o resto do seu corpo. Tudo que ela fazia era continuar a dançar nos braços daquele homem. Sua respiração estava ofegante.

Uma mulher caiu ao lado dos dois e de lá nunca mais se ergueu. Um guarda que passava por perto desmaiou em cima de Amber. Paul puxou o homem pelo braço e deixou que caísse direto ao chão. Em um relance, a garota viu a mão direita do guarda com inúmeros buracos na pele. Sabia que era algo importante, mas não conseguia raciocinar. O olhar da dama se encheu de desespero pela ameaça velada que havia a sua frente.

Paul sorriu para ela e calmamente moldou a linha de pensamento da jovem com quem dançava:

—Nós da família Violet somos grandes farmacêuticos, respeitados por toda a indústria. Diga, querida, já ouviu falar sobre armas químicas? Você ficaria surpresa de ver o quão fácil é invadir mansões de ricos esnobes que renegam a realidade atual e escolhem viver em uma fantasia ultrapassada dos tempos vitorianos.

Novamente, Amber desejou poder respondê-lo, mas não conseguiu. Sentia o cheio de enxofre invadir violentamente seu nariz.

Paul retirou a pulseira da garota cuidadosamente. Em instantes, um pequeno menino apareceu ao seu lado e recebeu a pulseira em suas mãos. A maior parte do corpo da criança era feita de metal, com grandes tubos interligando o tórax com as costelas, por onde escorriam um líquido verde brilhante. As mechas de cabelo eram de um roxo geleia quase fluorescente.

O menino recolheu a pulseira e apontou para longe. O homem concordou com a cabeça e completou:

—Pilhem tudo, e diga aos outros para me esperarem no portão.

De repente, as pernas da garota falharam. A respiração estava curta e lenta. Ela não conseguia mais se manter em pé. Deslizou o corpo dos braços de Paul para o chão congelante de madeira do salão. O homem continuava a sorrir para ela.

Amber fechou os olhos, sem saber se os abriria novamente.