8 Capítulo 7 - Memórias desagradáveis

O som de chicotadas ferozes estalava na mesma medida que os berros de uma mulher derrotada. Suja de sangue e coberta de lágrimas, uma moça estava sendo açoitada diante de uma garotinha. Açoitada em meio à tarde gélida de um inverno intenso.

Na bochecha jambo caramelo da pequenina, levemente rosada devido à situação ao relento em que estava, havia um sinal, um corte raso que provocou um filete de sangue.

Após humilhar uma empregada que sem querer sujou uma das suas roupas preferidas, fazendo-a se ajoelhar no chão e chutando-a com sua força infantil, a mulher enlouqueceu, catou uma faca e atacou a sétima princesa.

Por sorte um guarda impediu o ato e tudo o que Develine ganhou, foi aquele pequeno corte incapaz de sequer provocar uma cicatriz.

Apesar de ser um sinal que desapareceria em poucos dias, Dalfoy, o pai de Develine, ficou furioso.

~A única coisa decente que essa pirralha tem é o rosto e mesmo assim você ousa tentar estragá-lo?!~, berrou animalescamente. ~Como vou apresentá-la ao senhor Eduard, me diz?!~ Agarrou a garotinha logo ao seu lado pelo ombro e a sacudiu com violência. ~Ein?!~ Disparou um olhar intenso de ódio fulminante em direção a mulher que jazia deitada sobre o chão coberto de neve, sangrando, chorando e sem forças.

~Me-me perdoe. Eu tenho filhos!~ A empregada chorou.

Olhando para o céu escuro e encarando a neve voltar a cair, Dalfoy bufou.

~Deixem-na aqui fora, se ela sobreviver a essa noite eu aprovo sua resiliência e perdoo o seu crime.~ Seu olhar furioso desapareceu e tudo que lhe restou foi a frieza de uma pessoa que se tornou incapaz de respeitar uma vida.

Com as roupas rasgadas e sem lugar para se aquecer, exposta ao relento, a empregada não resistiu e morreu.

Por vezes aquele olhar petrificado ainda assombrava os sonhos de Develine, pois ela foi a primeira a encontrar o corpo. A mulher morreu justamente na porta do palácio em que a pequena morava.

Quando aquela moça diante dela falou sobre chicotes, Develine começou a tremer. Sua respiração falhou e seu pulso acelerou. Tânia foi a primeira a perceber o descompasso da garotinha.

Develine ainda se lembrava de cada linha, de cada fala, de cada feição.

— Eu n-não v-vou fa-azer… isso — sua voz falhou.

Poucas pessoas sabiam sobre aquele evento.

"Como vo-você sabe disso?" Sentiu vontade de perguntar.

Após sua mente girar sem controle, tendo que se apoiar nas pernas de Tânia para ficar firme, encarou Leifea nos olhos, e no que o fez, viu o rosto da empregada morta e congelada sobrepor o da moça que implorava por perdão e clemência.

— Devy? — Sua guarda-costas ficou preocupada com a tremedeira repentina que se apossou da pequenina.

Vômito ameaçou sair, porém, reunindo toda força que lhe restou. "Eu preciso me acalmar!" Conseguiu colocar sua mente em ordem.

Os longos segundos de silêncio foram um martírio para a empregada que chorava e as pessoas que assistiam. Fingindo que nada estava acontecendo com ela, Develine se esforçou ao máximo parar sorrir.

— E-eu estou bem — disparou, se voltando para a mulher ajoelhada e mantendo a pose tranquila que conseguiu estabelecer. — Se levante, foi só um susto, eu sou forte — respondeu, pegando nas mãos da empregada e tentando ajudá-la a ficar de pé. — Pra quem caiu de uma árvore, uma batata nem se compara, é como uma brisa fresca no verão. Eu é quem devia pedir desculpas por assustá-la, Leifea — reformulou um sorriso.

— Vo-você sabe o meu nome? — A jovem que cheirava a ervas ficou atordoada, e um misto de felicidade e confusão tomou conta do seu rosto.

— Claro que sei, fiz questão de decorar o nome de todas as irmãzonas que cuidam da minha mãe e de mim — Estufou orgulhosamente seu peitoral reto e infantil.

— A senhorita realmente me chamou pelo nome quando a servi no outro dia — Dina, uma cozinheira/empregada que parou para assistir o ato, sussurrou ao se lembrar do ocorrido.

— E-eu não posso me levantar — Leifea insistiu. — Cometi um ato hediondo, senhorita — afirmou com convicção. — Mas por favor, peço que me perdoe, juro que foi sem querer — se esforçou.

Mesmo que ela tenha mudado, a fama que tinha a precedia de uma maneira desagradável. Muitos empregados que não viram o ocorrido de outrora com os seus próprios olhos ainda duvidavam da história que rapidamente se espalhou pela mansão.

"Develine pediu desculpas? Impossível!" A maior parte das pessoas que souberam do ocorrido ficaram compreensivelmente chocadas.

Contos sobre o evento espalharam como chamas em um palheiro. A situação de Develine ainda era o principal assunto dos burburinhos alheios.

— Se vai ser assim — a garotinha suspirou.

Para a maior parte das pessoas no local o ato seguinte do dito monstrinho foi um choque sem igual. Todas as empregadas, cozinheiras e afins, arregalaram os olhos assim que viram os joelhos da pequenina serem dobrados.

Develine estava se ajoelhando.

— Então vou te pedir desculpas da mesma forma que você — imitou a mulher. — Me desculpe pelo susto — disse sem nenhum pesar.

— Por favor, senhorita, se levante — Leifea se desesperou.

Develine levantou um pouco sua cabeça e a encarou: — Se você se levantar, eu faço o mesmo — sorriu.

Todos os indivíduos no ambiente se entreolharam. Aqueles que viram a cena de mais cedo apenas reconfirmaram, e os que viram pela primeira vez, ficaram atordoados.

— Não era mentira da Marlly — uma funcionária sussurrou.

— Eu estou sonhando? — alguém questionou.

A nova Develine colocou todos em estado de choque, ou melhor, quase todos.

"Que espanto desagradável, vocês deviam ficar envergonhados" Tânia ficou irritada. "A princesa é uma lady sem igual", afirmou com convicção.

***

Em uma mesa colocada no canto do jardim, próxima à estufa e logo ao lado do ambiente destinado à vida diária dos diversos empregados da mansão. Uma moça de cabelos pretos, olhos levemente caídos e pele delgada servia chá para uma criança de sagacidade sem igual e beleza estonteante.

— Não é muito, mas por favor, beba — Leifea disse, cuidadosamente colocando uma xícara na frente da jovenzinha.

Após o ocorrido de mais cedo, a empregada foi obrigada a se levantar, e como prometido, Develine fez o mesmo.

~Eu ouvi dizer que você faz um ótimo chá, que tal me servir um como pedido de desculpas?~ A garotinha disparou assim que se colocaram de pé.

Arrastada pela situação inesperada, foi dessa forma que às três mulheres acabaram naquele ponto do jardim.

— Sente-se também — Develine disse ao ver Leifea se afastar da mesa e parar logo ao lado após servi-la.

— E-estou bem, minha senhorita — respondeu de imediato.

— Que isso, um bom chá sempre é melhor desfrutado com mais de uma pessoa — sorriu. — Sente-se também Tânia, eu sei que gosta de biscoitos doces — empurrou a tigela cheia de guloseimas esfarelentas e branquinhas.

A guarda-costas salivou.

— E-estou em função do meu dever senhorita, então tenho de protegê-la — respondeu com profissionalismo.

— Muito bem! — Develine saltou da sua cadeira. — Então eu também ficarei em pé. — Pegou um biscoito e mordeu.

Derrotadas, ambas as funcionárias suspiraram e sentaram à mesa junto a sua senhorita. Leifea ainda estava abalada pela irredutibilidade que a garotinha apresentou logo antes.

— Ótimo — Develine voltou para o seu lugar, orgulhosa do seu feito.

— Já que estamos aqui — Tânia pegou um biscoito. — Devemos aproveitar — emitiu um sorriso sem vergonha

Leifea ficou pasma.

"Não era você que estava falando sobre cumprir deveres?" Seu olhar de incredulidade denunciava seus pensamentos.

Tânia deu de ombros e Develine sorriu diante da cena divertida.

Em pouco tempo Leifea também começou a se servir e uma conversa agradável teve início.

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