6 Capítulo 5 - Planos Futuros

Seus olhos demoraram a ter um diálogo pacífico com seu cérebro, suas pálpebras abriram, sua respiração se tornou regular e eventualmente ela conseguiu compreender seus arredores.

Ela estava no quarto que lhe foi reservado na casa da sua tia. O mesmo no qual acordou assustada outro dia.

— Você está bem, pequenina?

Os olhos de Develine resvalaram sobre Ashiria. Havia uma expectativa tão grande na face daquela mulher, que mesmo ela, grogue como estava, conseguia discernir o olhar misto de zelo e preocupação.

"O que aconteceu?" Tentou se sentar, ainda atordoada e com sua cabeça latejando, flertando com uma dor aguda.

— Calma garotinha! Eu sou o doutor Izay, prazer. Você acabou de passar por uma situação complicada, então dê um passo de cada vez. Não se apresse. — Uma voz grave interveio, acompanhada de mãos ásperas que calorosamente ajudaram-na a sentar.

Quando olhou ao seu redor, encarou a feição de todos os presentes. Eram um total de quatro pessoas. Ashiria, Marlly, Tânia e um senhor que, dentre todas aquelas feições abarrotadas de expectativas, era o único a demonstrar tranquilidade.

Era um homem de bigode grosso e escuro, de careca lustrosa, trajes sociais na cor azul e um monóculo em seu olho direito. Pelo estetoscópio em seu pescoço, Develine imaginou que fosse um médico.

— Eu estou bem... — encarou Ashiria e o Doutor, respondendo-os de maneira direta, um pouco seca devido a estar atordoada e ainda tentando reunir alguma força em suas pernas e braços.

"Ela voltou a ser o que era?" Marlly, preocupada com o incidente, arregalou os olhos diante daquela resposta. Develine mal falou e ela já estava pensando no pior. "Eu sabia que precisava colocar um capacete nesse diabinho" Ela se martirizou por deixar a ideia de lado, e em seguida lamentou: "Foi tão bom enquanto durou!" Ficou desolada. "Talvez, se eu acertar uma pulada quando ela estiver distraída" Um sorriso levemente assustador começou a se formar em seu rosto.

"Eu nem preciso ler sua mente para saber no que você tá pensando, seu rosto diz tudo" Develine ficou em choque com a feição assustadora que sua cuidadora estava fazendo. Foi fácil compreender o motivo. "Eles realmente pensam que eu mudei por causa do acidente" Achou a concepção divertida.

Do ponto de vista daquelas pessoas, de fato parecia ser o caso. Logo após cair de uma árvore e desmaiar, a garotinha até então considerada um pequeno demônio, despertou mudada.

"Será que eu deveria dar um susto neles?", cogitou a ideia travessa, mas assim que se atentou ao rosto bagunçado de Ashiria, percebendo a dor que ela remoía, desistiu.

A elegante mulher ruiva estava a ponto de chorar. Pelo que Develine sabia, conforme os escárnios do seu pai, Ashiria era estéril. Sempre que seu progenitor se via encurralado pela poderosa maga, ele apelava para a infertilidade da mesma.

Para se tornar a maga poderosa que se tornou, Ashiria teve de fazer muitos sacrifícios e renuncias. A possibilidade de gerar uma vida foi uma das coisas que abriu mão. Uma decisão que tomou jovem demais.

Quando pediu para aquela mulher se tornar sua mãe, Develine desconsiderou essa parte. Em um dia ela ganhou uma filha, no outro, sentiu medo de perdê-la para sempre.

— Mamãe?! — Seus lábios juvenis e rosados se moveram. — Está tudo bem com você? — questionou-a com cuidado e ternura.

Ao ouvir aquela palavra, computá-la em sua mente e apreciar sua doçura, Ashiria suspirou aliviada e avançou sobre a garotinha. Esquecendo que a mesma acabou de acordar de um desmaio, abraçou-a com força.

— Eu estou bem, filha — respondeu. — Eu só estive com medo de... — hesitou.

— Você não vai me perder, mãe — entendendo a questão, Develine se adiantou, sendo sincera. Ao ver o rosto em conflituoso daquela mulher, teve o impulso de lhe contar a verdade.

Sua voz, seu rosto, seus olhos, suas expressões. Era doloroso observar alguém tão doce sofrer tal ansiedade, sofrer com o medo de que no menor acidente possível sua filha volte a ser uma cria do capeta.

Por um instante ela se questionou se deveria. Se a verdade seria libertadora ou lhe causaria um enorme problema.

— Bater a cabeça... — tentou se aproveitar do impulso para dizer — ... só me fez perceber o quão idiota eu estive sendo — suspirou enquanto desistia. "Não é o momento", pensou. Contudo, encarando aquele olhar aflito, se sentiu no dever de acalmá-la. — Você não vai me perder, mãe, pois eu não vou voltar a ser o que era. — Se esforçou para demonstrar confiança.

Ashiria amargou e Develine compreendeu que seria difícil espantar a dúvida persistente que surgiu no coração fragilizado daquela poderosa mulher.

— Ééééééé... — O doutor interveio, confuso com a cena. — Lady Ashiria, creio que seja bom pegar leve com a sua sobr... — Hesitou, conferindo as informações escritas na ficha da garota apenas no caso de ter deixado algo passar. Percebendo que na ficha estava realmente escrito que às duas são tia e sobrinha, encarou-as em confusão e em seguida aceitou com um suspiro. — Sua filha precisa descansar — sorriu desconcertado, ignorando o conflito de informações.

— C-compreendo — Ashiria se desvencilhou da pequenina. — Acredito que devamos deixá-la em paz — começou a se afastar.

— Exatamente! — O doutor se adiantou, seguindo em direção a grande porta dupla que liga aquele quarto a um amplo corredor.

Tânia e Marlly fizeram o mesmo, seguindo de perto a dona da casa.

Antes de sair, se lembrando de algo, Ashiria voltou para dentro do quarto e encarou Develine. — Minha pequena, se precisar de algo... — disse, genuinamente preocupada com o bem-estar da garotinha.

— Eu sei, mãe, se me sentir mal irei lhe chamar — Develine respondeu, entendendo a intenção.

— Tudo bem — Ashiria devolveu o sorriso e finalmente saiu, fechando a porta.

Logo Develine se viu sozinha em seu novo quarto. Por alguns instantes ela ficou em silêncio, admirou o ambiente suntuoso e a vista privilegiada que tinha do extenso pomar.

"QUE BOSTA!", irrompeu em pensamento enquanto se debatia em sua cama, pressionando o enorme travesseiro contra seu próprio rosto; irritada com os acontecimentos recentes.

As memórias do seu desmaio logo abarrotaram sua mente. Ela mal fez vinte repetições com a espada de treino e o céu ficou escuro, estrelas fantasmagóricas brilharam e a mesma desligou.

"É sério que nem balançar um maldito graveto eu posso?!" Se debateu mais um tempo, socando sua cama fofinha.

Ao perceber sua fragilidade, rapidamente memórias ruins resolveram incomoda-la. Cenas dos seus irmãos a maltratando com violência, socando-a como se fosse um saco de pancadas, vieram em flashs.

"Como raios eu aguentei aquilo?" Estava impressionada consigo mesma.

Por mais que evitassem seu rosto, ela conseguia se lembrar das surras homéricas que tomou. Sempre que eles estavam irritados com algo, descontavam nela. Chegando ao ponto de invadir seu quarto apenas para lhe agredir.

"A pergunta certa deveria ser outra. Deveria ser sobre como eu sobrevivi a tudo aquilo." Sentiu arrepios diante das recordações desagradáveis.

Considerando o quão frágil se descobriu, ficou impressionada com a sua resiliência. Quando menor, nunca lhe foi permitido sequer praticar uma simples caminhada. Apesar de saber que era fraca, já que todos repetiam isso como se fossem discos arranhados, não tinha ideia do quanto.

Por mais que tenha sido uma megera mirim, por um instante admirou o quanto aguentou, o quanto resistiu, o quanto se esforçou para ficar de pé.

"Mas que merda eu vou fazer daqui pra frente?" Ficou preocupada, se lembrando do caos instaurado, das cidades em chamas e pilhas de corpos amontoados nas ruas.

— A grande guerra — sibilou.

Aquelas palavras lhe causaram um intenso arrepio. Um estremecimento palpável que era fruto de uma pesarosa memória vivida.

— O Imperador morre e às doze casas começam o evento de sucessão, cada uma lutando para colocar seus próprios descendentes no poder — sussurrou, repassando o que sabia enquanto procurava uma solução

O Império de Calderium foi fundado por doze famílias nobres que se lançaram no mar e descobriram aquelas terras devido à grande escassez que atingiu o antigo continente de Azenfor.

Após centenas de anos guerreando, Draghulio Saliglia, primeiro filho da família Saliglia, unificou o império e como gesto de boa-fé o direito de sucessão ao trono foi dado a todas as famílias fundadoras.

"Maldito sistema de governo!" Socou mais algumas vezes sua pobre almofada sem culpa. — E pensar que tudo começa após a morte do vovô — Develine suspirou. — Mas pelo que sei, ele morre devido a uma doença sem cura, então mesmo sabendo seu futuro, eu nem sequer conseguiria salva-lo — ficou desanimada. — Fora que, a depender de como aquela família me trata, eles jamais me ouviriam.

Após a morte do seu avô e devido a nenhum dos seus sucessores diretos serem considerados aptos pelo congresso de nobres, uma guerra pelo poder é iniciada. Com o país mergulhado no caos e na incerteza os governantes do antigo continente espalham suas raízes pelo império, ajudando a enfraquecer as poucas estruturas que restam.

A população se vê desamparada diante da decisão da Santa Igreja em apoiar a família Saliglia, dedicando seus maiores recursos a mesma. Percebendo que essa era a oportunidade perfeita, a Legião do Mau sai de sua toca e inicia um levante das massas.

A era do caos começa.

"Se continuar assim, no fim, vai ser tudo igual ao futuro no qual vivi" estremeceu com o pensamento, mordiscando a unha do seu polegar enquanto vislumbrava o pior cenário.

Se aproveitando de todas as mortes geradas pela guerra, o culto esquecido de Olberia ressurge e entrega o Cristal Obscuro para a família Saliglia, que liderada por um idiota e pressionada pela guerra, despertam uma entidade de ódio, o primeiro pecador.

"Se ao menos o príncipe Liam fosse o líder dos Saliglia em vez daquele tio idiota, talvez essa parte fosse evitada", suspirou, consternada com a história futura. "Talvez eu devesse ter estudado mais a dinâmica das famílias quando era mais nova", reclamou consigo mesma. "Mas essa parte política é tão irritante, esse povo me dá tanta raiva, que eu preferi ignorar pelo bem da minha saúde mental" Se deitou.

Encarando o teto por alguns instantes, se atentando aos detalhes do belíssimo afresco, percebeu a quem aquela pintura se referia.

— Tio — sussurrou.

A imagem descrevia uma grande batalha, onde três pessoas, dois homens de pele escura — apenas de um tom chocolate mais acentuado que o de Develine — e uma mulher de pele nívea, encaravam uma legião de seres chifrudos e avermelhados.

— Essa é a batalha das dunas, quando o Império expulsou os Reinos Unidos de Azenfor após os mesmos abrirem um portão para o mundo vermelho, invocando um demônio maior e sua legião ardente — disse em voz baixa, ficando em pé sobre sua enorme cama de casal e analisando a pintura com atenção. — Essa deve ser uma representação do exato momento em que o tio Amir, a mamãe e o... — hesitou, ficando pensativa. — Eu deveria chamá-lo de papai? — franziu o cenho. — Bem, eu chamo a tia Ashiria de mamãe, mas eu nunca estive com o tio Darizio por tempo o suficiente para poder considera-lo um pai. — Ficou em dúvida sobre como se referir ao falecido marido da sua mãe adotiva.

A pessoa no centro da batalha, com uma linda mulher ruiva do seu lado direito e um homem alto de barba branca do seu lado esquerdo, era o marido de Ashiria, Darizio Hydess, tio de Develine.

Um homem alto, de ombros largos, atlético, de pele escura, cabelos brancos e traçados e que naquela imagem empunhava firmemente uma espada que brilhava dourado.

— Esse deve ser o momento em que ele despertou seu poder divino e, com a ajuda da mamãe e do tio Amir, selaram o tal demônio maior — disse, tão impressionada quanto animada.

A enorme pintura cobria praticamente todo o teto. Sendo uma conjunção de vários "quadros". Ao centro havia a cena do despertar, e ao redor, várias outras imagens de outros momentos cruciais da mesma batalha.

"Da outra vez eu não reparei que tinha algo assim no teto" Ficou chocada com a sua própria falta de atenção. "Quer dizer, ao menos eu não me lembro de ter algo assim por aqui" Se esforçou para lembrar. "Bem...", suspirou "Não é como se eu tivesse me atentado a muitas coisas naquela época, eu só queria sair daqui o mais rápido possível. Se eu soubesse o quanto sei hoje", se entristeceu.

Depois da morte de Darizio, Ashiria se tornou reclusa. Após o império submergir no caos, a guerra chegou no interior, as terras de Ashiria foram invadidas e a mesma morreu em batalha.

"Isso também é minha culpa, a tia provavelmente piorou por causa da minha visita" Se martirizou.

Develine foi a última pessoa que teve permissão para visitar aquelas terras antes de sua tia alcançar o ápice da sua reclusão.

"Eu juro que vou salva-la dessa vez" Reforçou suas convicções.

Ficando um pouco melancólica por causa das suas memórias, a pequenina deu uma nova olhada nos arredores, buscando algo capaz de desviar sua atenção. Se atentando aos incontáveis quadros espalhados pelo quarto, quadros com fotos de Darizio e Ashiria, foi fisgada por uma imagem em especial.

Era uma foto emoldurada que foi colocado sobre uma mesinha de canto próximo à cabeceira da sua cama. Curiosa, se aproximou para observá-la. Era uma foto na qual sua tia aparecia com uma barriga um pouco maior do que nas demais, sendo um detalhe quase imperceptível, mas Develine conseguiu ver a diferença.

— Deve ser de quando ela tentou engravidar — disse com amargura.

Develine sabia exatamente o futuro da criança. Tendo pesquisado incontáveis magias, Ashiria tentou vencer o pacto que fez e gerar um filho. Após quatro meses de uma gravidez conturbada, ela sofreu um aborto espontâneo.

Seu pai vivia usando esse fato para perturbar sua tia. Ashiria é do tipo que gosta de resolver os problemas ela mesma, por isso, Darizio pouco interferia, mas uma das poucas vezes em que seu tio perdeu a paciência foi ao descobrir que seu irmão perturbava sua esposa usando sua infertilidade como arma.

"O rosto do Dalfoy ficou uma bagunça depois da surra que levou do titio" Develine riu ao se lembrar de como o rosto do seu pai ficou amassado. "Se eu não estiver enganada, vai fazer uns dois ou três anos que o tio Darizio morreu" Observou o sorriso largo que o casal tinha naquela foto, felizes com a perspectiva de um futuro brilhante.

Visualizando o rosto de Ashiria em sua mente, o rosto da sua mãe, buscou coragem em sua estrutura fragilizada.

"Minha nova mãe vai ficar viva dessa vez" Develine devolveu a foto enquadrada para o seu devido lugar. "Eu vou achar um jeito de mudar essa merda de futuro", pensou enquanto afiava seu olhar, enquanto considerava o que podia fazer. "Mesmo que eu não consiga poderes, ainda conheço o futuro. Se eu me preparar corretamente, conseguir uns parceiros, deve ser possível", pensou. "Talvez eu precise de dinheiro".

A garotinha pulou em pé buscou um calendário. Após rodar um pouco pelo quarto, achou o que queria.

"Muito bem! No final do mês começa a primavera", fez uma observação. "Ela deve ser realocada para cuidar do jardim e ele deve ser enviado pelo meu pai para sondar essas terras" A mente da garotinha trabalhou a todo vapor. "Se eu conseguir convencer eles", sorriu, "Então mal saberei com o que gastar tanto dinheiro".

Com o plano se formando em sua cabeça, projetou um belíssimo sorriso malicioso em sua face.

O mesmo sorriso que em sua vida passada coroou sua vilania. A cereja do bolo.

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