4 Capítulo 3 - Protejam-lhe a cabeça

Enquanto atravessava o corredor iluminado pela tenra luz solar da manhã. Uma jovem espevitada, considerada por muitos a encarnação de algum demônio antigo, viu uma pessoa que, em seu ponto de vista, era a mais inteligente, a mais poderosa e a mais bela de todas. Ashiria Dagran, sua dignissima tia.

— Tiiiiiiia! — ela gritou assim que avistou a mulher ruiva conversando com um senhor de meia-idade ao final do corredor.

— D-develine — reconhecendo a voz da pestinha, a elegante mulher se virou para encará-la, ainda receosa; temendo que os acontecimentos da noite anterior fosse apenas um breve surto que jamais se repetiria.

Contudo, seu queixo quase despencou.

No colo de uma empregada novata havia uma jovem sorridente que trajava um bem adornado vestidinho azul. Uma cena inimaginável até poucos dias atrás, mas que lhe trouxe uma enorme paz de espírito.

— Titia, titia, eu fiz uma amiga — apontou para Tânia, que tão desconcertada quanto as pessoas que as observavam, carregava a garotinha em seus braços.

Quando sua pequena sobrinha chegou mais perto, ela emitiu um sorriso sincero. "Talvez seja realmente possível mudá-la?", pensou.

Apesar de ter sido maltratada por aquela garota, ela entendia como poucos de onde partia tal comportamento. Develine era filha do príncipe Hydess, um membro da família imperial de Calderium. Uma família que só se importava com dinheiro e poder, uma que só dava atenção a seus filhos caso os mesmos fossem "úteis".

Por ter nascido frágil, pequena e mulher, o pai de Develine perdeu o interesse na mesma, ignorando-a tanto quanto podia e prometendo sua mão em casamento assim que foi possível.

O ambiente horrível onde cresceu moldou completamente seu caráter. Por isso, quando aquela pequena foi enviada até ela, pensou que se demonstrasse algum carinho, que se lhe desse afeto, a mesma poderia mudar.

Fazia pouco tempo que a jovem estava em sua casa, e apesar de ser espezinhada sempre que cruzavam olhares, decidiu que resistiria o máximo possível. E foi dessa forma até o fatídico acidente.

— Bom dia, tia Ashiria — Develine saltou dos braços de Tânia e abraçou com força e ternura a senhora daquela casa.

— B-bom dia, Develine. — Sua tia ficou momentaneamente surpresa com a presença radiante que a pequena estava demonstrando, tendo certa dificuldade de processar o ocorrido de maneira natural.

Foram tantas vezes ouvindo aquela garotinha lhe dizer que a odeia, que aquela cena, aquela pequena a abraçando com um sorriso sincero no rosto, lhe fez duvidar da realidade.

*hump, hump* um homem de cabelos e bigodes loiros, pele branca e enrugada, que estava logo ao lado de Ashiria, pigarreou. — Bom dia, pequena Develine — ele a cumprimentou em sinal de provocação.

Era de conhecimento geral que Develine odiava que empregados se mostrassem tão próximos dela, indicando qualquer intimidade. Mesmo a empregada que esteve ao seu lado desde pequena, como sua babá, tinha lá suas restrições.

O pensamento daquele homem era muito óbvio: "Isso é falso." E poucos conseguiriam achar motivos para negar tal dúvida. "Ela provavelmente percebeu que seria ruim continuar tratando a senhora Ashiria de maneira rude" Reforçou suas crenças na mesquinhez do indivíduo que conhece desde o nascimento.

Valdo foi motorista da família real por tempo demais. Ele viu aquela jovem nascer, crescer e diminuir os outros assim que formulou sua primeira frase. Era natural que duvidasse da mesma exibindo uma postura carinhosa de forma tão repentina.

Foi por isso que ele a provocou. Sem emoção ou expectativas, formulou um falso sorriso simpático enquanto esperava a garotinha se revelar.

Develine se desvencilhou da sua tia e fazendo uma elegante mesura, pegando as pontas de seu vestido e se curvando graciosamente, respondeu com um sorriso no rosto: — Bom dia, senhor Valdo! — tentou ser o mais cortês possível. "Ainda bem que estudei etiqueta enquanto morava com o arrombado do meu pai" Ficou aliviada por conseguir tirar algo de positivo da sua infância como pequena tirana.

O senhor de idade, que trajava roupas bem alinhadas na tonalidade verde-musgo, curvou suas sobrancelhas. Ele ficou incrédulo, e com razão.

"Será que ela desenvolveu a capacidade cognitiva de se curvar para salvar sua pele?" Considerou fortemente a possibilidade, tentando veementemente negar qualquer possibilidade de mudança: "Impossível!" Esse era o pensamento que insistia em manter mesmo diante de uma cena tão curiosa.

O queixo de todos circundantes quase despencou no chão e um silêncio desconcertante, que era uma mistura clara de choque e surpresa, acabou tomando conta do ambiente.

Para Valdo, aquela jovenzinha não tinha salvação.

"Eu realmente fui uma cadela" Develine lutou para se manter firme, apesar de se lembrar de boa parte das suas maldades, ver a genuína reação de dúvida daquelas pessoas lhe causou calafrios. "Vou ter que me esforçar bastante para mudar isso." Seus ombros quase penderam com o desgosto que sentiu.

— Você dormiu bem, Devy? — Ashiria interveio na situação desconfortável, criando um apelido carinhoso por impulso.

Todos os funcionários se entreolharam com preocupação, temendo o desgosto que aquele apelido repentino poderia causar. Também era de conhecimento geral que aquele monstrinho odiava apelidos, principalmente os que desvirtuavam o seu precioso nome.

— Melhor impossível, mam... — Develine respondeu de maneira igualmente impulsiva. O rosto da sua tia era muito parecido com o daquela que lhe amou mesmo antes do seu nascimento. Por esse motivo aquele anseio afetuoso quase saiu, mas assim que percebeu o que faria, se corrigiu a tempo. — ...Titia! — sorriu desconcertada. — Melhor impossível, titia! — reforçou sua fala para que ninguém a compreendesse errado.

*hehehe* uma risada desconfortável interveio. — Perdão pela pergunta impertinente, mas a senhorita Develine realmente está se sentindo bem? — uma moça bela, gordinha, por volta dos trinta anos e de cabelos negros amarrados em uma trança; trajando um vestuário característico de uma empregada doméstica, questionou.

— Bom dia, senhora Marlly! — Develine cumprimentou a moça com um sorriso radiante ocupando seu rosto.

Ela imediatamente reconheceu aquela mulher. Depois que sua mãe biológica morreu alguns meses após o parto, aquela foi a empregada que ficou responsável por cuidar dela. Exatamente por isso é que o diabo infante a tratava um pouco melhor do que os outros .

Antes que empregada pudesse intervir, Develine respondeu sua pergunta: — Melhor impossível, a titia é uma pessoa incrível. — Percebendo o olhar surpreso de todos, incluindo sua tia, ela teve um estalo. "Talvez...", pensou enquanto seus olhos se iluminavam. — Tão incrível que, se eu tivesse que escolher uma nova mamãe, sem dúvidas seria a titia — Develine fez seu melhor para demonstrar sinceridade em suas palavras.

Marlly, Valdo e Ashiria se entreolharam com surpresa. Tânia apenas sorriu, pensando: "Na real, a princesa é bem legal" Constatou em silêncio. "Então elas não são muito confiáveis", suspirou, encarando algumas das suas colegas de trabalho ao redor e ficando um pouco triste, já que boa parte delas fez questão de comparar aquela doce menininha com um demônio desprezível.

— B-bom dia, senhorita — sem saber como proceder, Marlly apenas respondeu o cumprimento, chocada com a situação.

Percebendo a completa confusão que acabou causando, Develine suspirou propositalmente alto.

"Acho que essa é uma boa hora." Vendo que algumas das pessoas que mais machucou estavam diante dela, uma ideia lhe ocorreu.

Receio e curiosidade logo tomaram conta de boa parte dos circundantes.

— Aproveitando que muitas pessoas estão aqui, eu gostaria de pedir perdão a todos vocês — Develine abaixou sua cabeça. — Eu sei que definitivamente não mereço, sei que fui uma pessoa rude por tempo demais, contudo, mesmo que não queiram me perdoar, eu gostaria de dizer que sinto muito pelas minhas palavras. Eu juro que lutarei para ser digna do perdão de cada um de vocês — completou com firmeza.

Um silêncio mortal, composto por uma miríada de feições incrédulas, ocupou o recinto.

Os ombros de Develine penderam diante da falta de respostas. "É obvio que seria difícil", pensou.

As memórias que tinha daquele período ficaram mais vividas desde que retornou. Mesmo suas piores vigarices e acessos de raiva acontecendo na sua adolescência, ela sabia muito bem a maneira absurda com a qual tratou todas aquelas pessoas. Sempre xingando e fazendo pouco-caso das vidas alheias. É obvio que seria complicado.

"Se é assim", suspirou. — Se quiserem que eu me ajoelhe para lhes pedir perdão, para provar que estou falando a verdade e que realmente pretendo mudar — encarou a todos. — Eu faço — começou a se abaixar, dobrando seus joelhos e abaixando sua cabeça.

— Não! — percebendo o que estava prestes a acontecer, Ashiria gritou em pânico e impediu a garotinha, lhe dando um abraço — Não é necessário, minha pequenina. Eu acredito em você — acariciou-a com ternura.

— Obrigada, tia — Develine respondeu ao gesto, abraçando-a de volta.

Pela primeira vez em dez anos, Valdo e Marlly viram um descendente do príncipe Dalfoy pedir desculpas. Mesmo a terceira princesa, a mais educada dentre dos descendentes daquele homem, não pedia desculpas.

Por mais que estivessem receosos com a mudança repentina da garotinha, em hipótese alguma, mesmo em seus sonhos mais febris, conseguiam imaginar alguém com aquele sangue fazer algo próximo daquilo.

Para aqueles funcionários era impossível imaginar Develine se curvando para as pessoas que um dia ofendeu.

Tão incrédula quanto o moço ao lado dela, Marlly se aproximou de Valdo e sussurrou: — Será que nós precisamos colocar um capacete na princesa?

O senhor de meia-idade se voltou para a mulher parada ao seu lado e concordou: — Urgentemente! — Balançou sua cabeça.

A única explicação que tinham para tal mudança, era a queda que a garotinha levou.

Se era realmente esse o caso, eles pensaram que talvez fosse melhor ela não levar outra pancada como aquela. Ambos estavam determinados a protegerem o crânio daquela criança.

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