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Capítulo 1

"Falso Éden"

~ Arty ~

Já faziam seis anos. Seis anos dos meus doze de vida em que Arty morava nas vielas da cidade porto. Seus pais eram de longe, diziam os moradores. Atracaram na cidade um dia, carregando duas crianças, uma bebezinha de colo e ele.

Tirando isso e outros boatos sujos, pouco sabia sobre sua origem. Deixado sem um tostão e aos cuidados de ninguém enquanto seus pais sorriam depois de zarpar em um navio pesqueiro qualquer com o bebê "perfeito", deixando o empecilho, que era ele, para trás. Eram esses os boatos que corriam.

Arty não tinha amigos. Algumas almas caridosas da cidade lhe davam algo para comer as vezes, mas era só isso. Ele não se permitia ser acolhido por ninguém. Talvez por medo de esquecer da sua verdadeira família.

Sua memória era turbulenta e nebulosa, confundida pelas histórias dos moradores. A cada passo, a cada ladrilho de barro da cidade do porto até o castelo no topo da colina, cada passo, toda vez que seus pés descalços encontravam o caminho quente e pouco movimentado de terras baratas e isolados dos problemas do mundo exterior memórias surgiam, misturas confusas, sua mãe em um porão e um fogo vivo se espalhando pela casa, homens de armaduras de ouro puro invadindo e incendiando as casas. Eram memórias que não pareciam dele.

No último passo, os portões abriram.

Um homem abriu os portões. Alto, havia perdido o cabelo para a idade apesar de ostentar uma bela barba grisalha, uma pele escura e dois anéis de ouro ligados do lóbulo da orelha até o nariz por uma corrente de outro. Baltazar, como os guardas se referiam, ordenoi imediatamente que o garoto o siga e, à medida que se afastam dos altos muros, uma imagem deslumbrante começa a se revelar. Uma sucessão de terraços suspensos, cada um adornado com um conjunto de cores vivas e exuberantes. A cada passo, o garoto era envolvido por fragrâncias deliciosas que flutuam suavemente pelo ar, emanando dos inúmeros canteiros floridos. Os terraços tão imponentes, são sustentados por colunas de mármore, que parecem desafiar a gravidade ao suportar o peso da natureza luxuriante. Uma paisagem completamente destoante de tudo que ele havia visto até então. Antes de chegar ao portão e até mesmo antes de chegar ao vale, o garoto havia caminhado pelos piores lugares possíveis, e essas imagens passaram pela sua cabeça nesse momento, é até difícil imaginar como uma criatura tão pequena e franzina conseguiu aguentar tudo isso.

Enquanto o sol se punha no horizonte, eles então deixaram os terraços e adentraram no magnífico prédio principal , lá, ele se deparou com uma visão ainda mais surpreendente do interior, ainda com uma mistura de espanto e admiração perceptível no rosto no menino, Baltazar o deu um banho quente, o vestiu com roupas leves e cortou o seu cabelo, revelando um rosto menos assustador do que o esperado para um plebeu tão miserável.

Baltazar, segurando o garoto pelo braço e o arrastando, fala:

- Venha, vou levá-lo até a cozinha. Deve estar com fome.

Tudo parecia confuso para o garoto e, à medida que Baltazar o conduzia pelos corredores, o ambiente se torna um cenário de grandeza e esplendor que refletia apenas o esperado pela paisagem externa do palácio. Esculturas imponentes adornam nichos estrategicamente posicionados, representando os deuses da era anterior e outras figuras lendárias. Os pés do garoto afundaram em carpetes macios e soltando a mão do homem que o conduzia parou por um instante observou a estátua de um mulher com um estranho terceiro olho acima de sua testa tocando um instrumento de corda que ele não conhecia, havia também algumas escritas estranhas que ele não compreendia na base naquela estátua e em algumas outras próximas. Ela vestia roupas estranhas e seus olhos, pareciam diferentes do "normal" para o garoto, parecidos com os de alguns homens encapuzados que ele havia visto no porto algumas semanas atrás.

Algumas pessoas os chamavam, com um tom não tão amigável, de "carrascos". Arty não entendia o porquê do povo da cidade os julgarem tanto, afinal, alguns até deram a ele moedas em troca de nada e ainda fizeram perguntas atenciosas sobre os seus pais antes de partirem.

O homem estranho notou que Arty pairava sobre seus próprios pensamentos enquanto observava a estátua.

-Vamos lá, não temos tempo a perder, não é? - perguntou ele, com um leve sorriso que fez a corrente no seu rosto balançar suavemente.

Nesse tempo, desde que entrou dentro da propriedade não disse uma única palavra. Sendo levado pelos corredores que pareciam sem fim, o garoto facilmente percebeu que "algo" os estava espreitando entre uma decoração brega ou atrás de alguma das muitas colunas nichos. Leves sussurros e passos não tão delicados podiam ser ouvidos com facilidade por ele, apesar disso, o homem não parecia ter percebido ou se percebeu não pareceu ligar se tinha alguém os espionando.

Passando por uma porta que ficava no final daquele mesmo corredor, um extenso lance de escadas se revela junto a uma grande descida em espiral. Conforme andavam o garoto percebeu mais uma ou duas vezes a presença de alguém e por um instante pareceu ter visto uma pequena sombra os acompanhando. Quando finalmente chegaram ao que parecia ser uma cozinha auxiliar, Baltazar pega um pão e um copo de água e entrega ao garoto.

- Fique aqui - Ordenou Baltazar.

- Eu volto em breve, não saia - ele então subiu a grande escadaria, deixando o garoto sozinho.

Arty. Arty era seu nome. Arty não conseguia assimilar direito a situação, alguém tão bem vestido e com um cheiro estranhamente bom acolhendo um garoto como ele? Aquilo não podia ser possível a não ser que... Bem, Arty já ouvia falar, nas vielas escuras e sussurros sombrios que frequentava, sobre nobres sinistros que acolhiam crianças desamparadas, apenas para elas desaparecerem misteriosamente ou, ainda pior, terem seus corpos encontrados posteriormente.

Por um breve instante, Arty parou, mordiscando o pão e tomando um gole de água. Absorto em suas próprias sensações, ele permaneceu imóvel no banco que Baltazar havia lhe oferecido, seus pensamentos continuaram cada vez mais distantes enquanto admirava as vestes novas, deslizando suavemente a mão sobre o cabelo recém-cortado. Arty comeu até o que considerava como metade do pão, e, estendendo o sua mão até às escadas perguntou:

- Você quer um pouco?

Ninguém respondeu, mas Arty insistiu:

- Pode vir. Eu prometo que esse vai ser o melhor pão que você já comeu.

E, saindo das sombras, uma garota surgiu. Seus cabelos azul-marinho estavam amarrados de um jeito estranho, com ornamentos ainda mais peculiares. Ela usava uma roupa que parecia com um roupão estampado com flores exóticas como as do terraço, parecido com as que a estátua usava e uma grande franja cobrindo sua testa por completo. No entanto, o que mais chamava a atenção eram seus olhos, também iguais aos da estátua.

- Por que você está com seus olhos fechados? Pode abrir! - A garota demonstrou certa raiva na fala de Arty, mas pareceu decidir apenas ignorá-lo.

Ela se aproximou, estendendo a mão trêmula para pegar a metade do pão. Com cautela, levou um pequeno pedaço até a boca, mas seu rosto se contorceu em desgosto e ela imediatamente cuspiu o alimento, repugnada pelo sabor. Então ela grita:

- Como você ousa me oferecer algo tão repugnante? - Suas palavras ressoando pelos corredores do castelo como um trovão raivoso.

- Perdão! Eu só queria... - Antes que Arty pudesse se desculpar, ele sentiu algo tão pesado quanto uma corrente chicoteando seu rosto. Rapidamente, ele olhou em todas as direções, mas só havia ele e a garota na cozinha. "Não poderia ser ela, não é?" Pensou Arty.

De repente, os guardas desceram até a cozinha convocados pelos gritos da garota. Junto com os guardas, surgiu uma mulher parecida com a menina, usando a mesma roupa estrangeira e com um penteado igualmente peculiar. A mulher desembainhou sua estranha espada, criando uma harmonia macabra entre as estranhezas que a cercavam.

- Quem é você? - Perguntou a mulher com um tom de voz gélido e ameaçador, dirigindo a espada em direção a Arty.

Arrastado novamente pelos corredores sem a chance de sequer reagir, ele foi conduzido até uma majestosa sala de um ambiente imponente. O trono de madeira nobre, adornado com ouro e pedras preciosas, é o centro das atenções. Colunas esculpidas no formato de serpentes do deserto e outras criaturas místicas e um teto decorado com pinturas vívidas complementam a grandiosidade do espaço. Tapetes tecidos à mão, painéis de madeira decorados e luminárias elegantes criam uma atmosfera de realeza perfeita, mesmo que eles não pudessem ser propriamente chamados de reis ou rainhas de nada já que eram apenas uma província de um império maior. Guardas permanecem em posição ao lado do trono, enquanto um cenário pintado à mão embeleza a parte de trás.

Ao lado do trono estava ele, Baltazar. Parecia que ele estava discutindo com o homem sentado no trono, cabelos curtos em um roxo escuro e profundo e uma barba cheia da mesma cor, sua pequena e simples coroa não era nada mais do que um grande círculo de ouro com um rubi incrustado no centro. Baltazar dizia algumas coisas que Arty não conseguia escutar mas que pareciam ter o objetivo de persuadir o homem e só no momento que ele franziu sua testa Baltazar pareceu notar que Arty estava lá. Uma expressão de surpresa tomou conta de seu rosto e parecia suar frio.

O homem com a coroa então dirige a fala:

-Essa é a criança? - Perguntou

-Sim, meu senhor… - respondeu Baltazar hesitante

-Kya, vejo que encontrou nosso convidado de honra. - Disse o homem com a coroa reluzente

-Convidado de honra? - questionou a mulher, dirigindo seu olhar até Baltazar

A mulher que antes ameaçou Arty se aproximou do trono e ficou ao lado do homem, a menina a acompanhou. Arty foi obrigado a se ajoelhar por um guarda pressionando seu ombro

-Meu senhor, se você me permitir explicar. - Baltazar é interrompido pelo homem antes que pudesse terminar sua frase

-Você já me deu todas as explicações possíveis, baltazar, agora é a vez da minha mulher me explicar o que é isso.

-Shaya gritou e eu respondi o seu chamado. Ele estava lá, eu não poderia pensar em outra coisa.

-Crianças, sempre sendo… crianças, no final.

A mulher virou, fazendo sua roupa girar em uma confusão de cores.

- Baltazar, trazer a criança… eu concordei, mas… não sabemos o que aquilo realmente significa, afinal.

-Algum conselho Baltazar? - Disse o homem sem parecer dar tanta atenção para a opinião da mulher - Não tenho uma opinião sobre… bem… sobre essa situação toda. - Disse em seguida - Você me disse para confiar nas visões mas não sabemos com clareza o que elas são.

Arty não entendia. "Visões? O que isso significa? As visões são sobre mim?" Muitas perguntas nortearam sua mente.

Baltazar deu alguns passos em sua direção e o encarou bem, bem demais, se virou e caminhou um meio círculo.

- São poderes misteriosos os que regem o mundo. Parábolas confusas que até os grandes mantos sonham em decifrar, mistérios antigos como o motivo do desaparecimento dos deuses. - Baltazar finalmente para, frente ao trono. - Sua filha é direta em suas palavras meu senhor. Seja lá o quem diz essas coisas a ela, eu posso afirmar: não são joguinhos. É algo tão claro como a água que corre no vale.

-Desculpe minha criança, - A rigidez do seu rosto se fazia mais presente com seu sorriso, destacando várias linhas de expressão provenientes da idade - Shaya é uma menina um tanto quanto problemática, sabe? - Arty permaneceu de cabeça baixa - Qual seu nome?

Um silêncio caótico tomou conta da sala do trono. Ele não respondeu. O suor frio escorria pelo rosto e gotejava lentamente no chão.

-Bem, meu nome é Abel. Sem honoríficos por hora, tudo bem para você?

Arty levantou sistematicamente a sua cabeça.

-Meu nome é Arty, senhor. - Disse, sem olhar diretamente para o homem.

- Se Baltazar for mesmo te acolher como aprendiz de manto você vai ficar mais à vontade no salão, se quiser um dia ser o manto branco a aconselhar minha filha. - Sua mão repousou no descanso do trono de madeira. - Talvez da próxima vez não fique soando como um porco.

Os risos ecoaram pelo salão.

Arty não conseguia formular algo que fizesse sentido, até que começou a chorar. Lágrimas e mais lágrimas escorriam. Ele soluçava, os guardas ao redor pareciam chocados e piores ainda eram as reações de Baltazar e de Abel quase como se estivessem surpresos pela reação dele.

Abel questionou Baltazar com uma expressão assustada.

-Eu fiz algo errado? Foi a piada que eu fiz?

-Acho que ele só está emocionado demais senhor. - ele respondeu, sério.

Arty percebeu que ele e a mulher com a espada foram os únicos a não rirem. Mas ele não conseguia ver a pequena garotinha que recusou de maneira tão rude o pão.

Abel conteve as suas estrondosas gargalhadas.

-Sendo assim, leve ele até um quarto na sua torre e o acomode. Amanhã você pode começar o treinamento.

E assim Baltazar o fez, agora em uma cama cujo a sensação de conforto não poderia ser descrita Arty não conseguia nem ver os arredores do quarto, agora que parou de chorar as memórias de como chegou ali começaram a escapar, dos corredores que passou ou até mesmo de qual porta da torre ele abriu, antes que pudesse pensar ou se preocupar com mais alguma coisa ele pegou no sono. Envolto por alívio ele afundou no colchão macio da cama e nos travesseiros com fronhas de seda fina. Era a primeira noite, desde quando foi abandonado pelos seus pais, que ele teve uma noite de sono digna de um ser humano, sem ter que se preocupar em acordar e em estar seguro. "Tudo seria diferente, tudo seria melhor." repetiu, antes de pegar no sono.

Quase dois meses se passaram tão rápido quanto possível, Arty, durante esse período, foi levado por Baltazar por algumas horas todos os dias para um dos cômodos da torre, um pouco afastada da estrutura principal do castelo, ligada a ela por um ponte estreita de tijolos. Dentro da torre havia inúmeras estantes lotadas dos mais variados gêneros de livros e no centro uma grande mesa redonda repleta de papéis e mais alguns livros largados, lá, na mesa entalhada em uma árvore antiga do bosque do vale, era onde Baltazar ensinava Arty. Em uma velocidade impressionante e mostrando um talento incrível, ele aprendeu a ler e escrever na língua comum, mostrando uma facilidade que surpreendeu todas as expectativas de Baltazar.

Como era de costume fazer durante suas caminhadas com Arty no jardim para testar seus conhecimentos adquiridos durante as sessões de estudo, Baltazar o questionou:

- Fale um pouco sobre o que você sabe da história do herói, Arty.

-Um homem caminhou pelo Deserto por 40 dias e 40 noites, sem água ou comida em busca de um lugar para sua tribo recomeçar… - Arty parecia hesitante.

-E então?

-Os Deuses impressionados pela sua perseverança concederam bênçãos para o peregrino, o poder de governar com sabedoria, a habilidade de empunhar todos os tipos de armas com perfeição e um poder ainda mais impressionante… a imortalidade. Ele conseguiu fundar graças a essas bênçãos uma poderosa nação, a maior de todas.

-Por que hesitou em terminar a história? - questionou o professor, andando a passos lentos.

- Os deuses recompensaram o Dersil por sofrer? - Esse pensamento era recorrente de Arty nas aulas de história do continente.

Baltazar apontou para um banco próximo e redirecionou sua caminhada até lá.

- Olhe. - ele direcionava sua visão até Shaya, que treinava espada com sua mãe.

-O que tem pra ver ali?

- O herói, ou melhor, o Dersil, não recebeu nenhuma dádiva divina durante toda sua vida. - ele levantou sua túnica branca e sentou no banco de mármore. - Na verdade era o oposto.

Arty sentou ao seu lado, com as pernas e a postura eretas e as mãos nervosas apertando seus dedos.

- Mas… os livros diziam outra coisa.

- Olhe, Arty - disse ele, apontando para Shaya. - Shaya tem um poder único e raro, tido apenas a alguns poucos em todo o mundo conhecido. O Despertar, como chamam, concede uma habilidade única e espetacular para a pessoa sortuda que adquire essas habilidades. Ninguém sabe as circunstâncias que levam alguém a adquirir esse poder mistério mas com certeza não não tem relação alguma com os deuses.

- Então o livro está errado?

- Muitos estão errados ou incompletos, às vezes até os dois. - Ele cruzou os braços, parecia vidrado no treinamento de Shaya.

- Então no que eu devo confiar se os livros estão errados?

- Em você, Arty. Confie no seu julgamento e a verdade vai se mostrar uma hora outra.

Baltazar se levantou, pronto para recomeçar a caminhada.

- O que ele diz nessas circunstâncias?

A mente de Arty parou, ele olhou até as profundezas procurando uma resposta.

- Bem… - seus lábios estavam trêmulos, tentava se lembrar de outros textos que havia lido sobre o assunto procurando um motivo para aquilo - talvez eles mudaram porque um humano ter tanto poder… poderia… manchar a imagem dos deuses?

- Acho que você pegou a essência. Sim, de fato, mas também podemos relacionar isso ao fato de que um humano ter conquistado tanto poder sozinho poderia influenciar mais pessoas e mais pessoas a questionarem a força dos deuses. Durante o declínio eles mudaram muitos outros fatos históricos e alteraram vários outros textos importantes. Mas não se engane. - seu olhar mudou, franziu o rosto fazendo com que a corrente dourada anexada ao seu rosto esticasse - A era dos deuses não acabou. Sua influência ainda é enraizada e os seus seguidores aguardam o seu retorno. Não se preocupe, mesmo que o despertar seja um poder de poucos existem outros caminhos para se tornar forte nesse mundo.

Era fato que os deuses tinham morrido, eles mesmos trouxeram seu fim. O próprio Arty poderia citar de cor como cada um deles morreu, envenenados pelos seguidores do herói caído, batalhas sem sentido por poder e até mesmo a morte dos seus corpos mortais. Na era anterior, os Deuses mesmo tendo suas existências descritas como imortais tinham que ter um receptáculo para que pudessem viver, toda vez que os corpos mortais que possuíam perdiam seu valor eles o trocavam. Um dia, misteriosamente isso parou de acontecer, quando um Deus morria ele realmente deixava de existir.

Shaya e sua mãe terminam o seu treinamento. Baltazar precisou sair para resolver algumas questões da corte, porém, Arty permaneceu no lugar até que Shaya se aproximou e gritou apontando para Arty.

- Você.

Suas vestes eram roupas simples de treino e estavam sujas assim como o seu rosto, seu cabelo estava todo bagunçado e ela estava um pouco ofegante. Essa visão destoava completamente do primeiro encontro dos dois, já que agora Arty era quem estava relativamente bem vestido, com seu manto negro típico dos aprendizes, enquanto Shaya parecia ter vindo do outro lado dos muros, mas, Arty não notou esse paralelo. Isso não importava para ele.

-Minha mãe me mandou pedir… pedir… - a garota parecia extremamente relutante em terminar sua frase.

Arty interrompeu.

-Tudo bem, eu te perdôo

Ela sentou no banco em que Arty estava, um pouco afastado dele.

-Ouvi dizer que você aprendeu a ler e escrever na língua comum, não é mesmo?

-Bom, eu não diria que aprendi tudo ainda, sabe? Minha caligrafia ainda é horrível. - Arty disse, em tom de piada.

-O papai me pediu pra te ensinar a língua de Surin.

-Surin? - Arty parecia surpreso

-Sim ué, nunca ouviu falar nela não?

-Bom… é que eu tô um pouco surpreso que você saiba alguma coisa de Surin … é uma língua bastante complicada pelo que Baltazar me contou…

- Pra sua informação Surin é minha língua materna, tá?

-Nossa!! Sério?! Eu já li muitas histórias sobre o oriente e a gloriosa nação de Surin! Você não quer me contar sobre os honrados guerreiros das cores ou sobre os palácios esculpidos nas encostas íngremes das montanhas do tempo? - Arty continuou fazendo uma enxurrada de perguntas carregadas do seu mais puro entusiasmo para Shaya que a princípio pareceu um pouco confusa.

-Bem… eu nunca fui lá então… - Shaya olhou de relance para Arty e viu seus olhos cheios de um brilho que logo contagiou a garota - Por onde eu posso começar então?

Então, uma longa tarde de conversas sobre guerreiros lendários e maravilhas arquitetônicas no outro lado do mundo se seguiu, por muito e muito tempo até o sol se pôr entre a cordilheira que cerca o vale.

Quase um mês se passou e as jovens crianças de origens tão distintas estreitaram ainda mais os seus laços, e aos poucos nos seus horários vagos, entre as sessões de estudo com Baltazar e as aulas da língua Surin, Arty passou também a frequentar os treinos de combate junto a Shaya e Kya, dessa vez ela estava levando os dois para um "treinamento especial" na floresta próxima a base das montanhas do vale.

Mesmo ali, fora dos muros e longe dos belos jardins do castelo, a paisagem não se assemelhava nenhum pouco às favelas da cidade porto. Agora, Arty conseguia ver uma beleza que antes não conseguia observar, a água corrente passando com calmaria pelos córregos, os pássaros cantando e o sol atravessando as folhas das árvores em direção aos três. Eles caminharam bastante por um longo período de tempo, e algo surpreendia tanto Arty como Kya e era o fato de que Shaya não havia reclamado nenhuma vez, mesmo depois de fazer alguns calos e sujar suas roupas na lama.

- Chegamos - disse Kya quando adentram em uma clareira no topo de uma das montanhas que cercam o vale - A surpresa de vocês já devia ter chegado… - disse ela, quase sussurrando.

Por um tempo, Arty observou a cidade lá de cima. Ele vê a majestosa capital do Reino Babylon, uma cidade construída antes mesmo da queda dos deuses. Um majestoso castelo no centro do vale com um indescritível jardim, muros altos que cercavam a sede do governo do vale, tudo isso separava as realidades da nobreza e das pessoas comuns. Do outro lado dos altos muros uma grande cidade desabrocha, a maioria dos habitantes era pobre. Arty entendia agora que o motivo disso era porque o rei Abel e os reis antes dele viveram um período pós-abolicionista, uma das primeiras nações a abolir a escravidão do continente de areia, e, por causa disso o comércio do país foi profundamente afetado. Mesmo entendendo que não era totalmente culpa dos governantes, Arty sentia que algo a mais poderia ser feito.

Três grandes caminhos se afastam da capital, o primeiro seguia reto até o norte em direção a cidade porto, na qual Arty morou por metade da sua curta vida, não era uma distância tão grande assim, o segundo seguia em direção a leste para uma série de pequenas fazendas e o último, no oeste, seguia diretamente entre as montanhas até o deserto. Essa era toda a extensão daquela nação. Um único e pequeno vale cercado por um ambiente completamente hostil.

Arty nem tinha percebido, mas Shaya também estava observando o vale, talvez com uma perspectiva diferente da dele, ela olhava com um olhar estranho de admiração misturado com um pouco de ansiedade, talvez por saber que um dia ela iria herdar aquelas terras e governar.

-Vocês venham! - gritava Kya

-Eu aposto a minha coroa que eu chego primeiro que você!

E assim uma corrida se iniciou.

Antes que conseguissem chegar, uma grande sombra os pega de surpresa e rindo os agarra.

- Adivinha quem é? - disse a grande sombra, com uma voz grave mas em um tom amigável.

-Tio!! - gritava Shaya, que agora estava em cima da cabeça da enorme montanha que ela chamava de tio, Arty acreditava que ela havia usado seu "poder" já que ele não sabia ao certo o que ele era.

Caim, o tio de Shaya. Caim é o irmão mais novo do senhor Abel. Seus cabelos são de um tom de roxo levemente mais claro que o do seu irmão, frequentemente ele sofria bullying dos filhos de pequenos nobres por causa disso, sendo sempre taxado de inferior por eles. Abel, como herdeiro, sempre mostrou grande destreza em tudo que praticava, mesmo que Caim não fosse ruim na maioria das coisas ele sempre era ofuscado por seu irmão. "Um irmão menosprezado que volta para se vingar" é um clichê que Caim e Abel pareciam não compartilhar, eles nunca se desrespeitaram, como pelo contrário, isso inesperadamente fortaleceu a conexão de ambos.

-Onde você foi dessa vez? - perguntou Shaya, com sua voz carregada de entusiasmo.

Como explorador, Caim já havia viajado pelos confins do continente e até mesmo a terras além da grande baía azul. Lugares como o Arco Celeste, as terras da Coalizão entre várias outras paisagens mágicas para aventureiros e amantes de histórias. Essas eram as histórias que chegavam até ele.

-Bem, vejamos por onde eu começo... - ele apoiou uma das pernas sobre uma pedra e começou a gesticular sua história - Dessa vez eu resolvi viajar para além dessas terras mórbidas, entende o que eu digo? Peguei um navio simples no arco celeste até… - ele parecia tentar fazer uma pausa dramática.

Ele direciona levemente seu olhar até Arty.

-Que tal um jogo antes de eu terminar a história?

Ele se posicionou em frente dos dois. Kya observava de longe, atônita.

-Vamos! - gritou ele - Tentem me derrubar com tudo que tem!

Shaya impulsionou seu corpo para cima de Caim de uma vez, com o objetivo de agarrar seu pescoço e o desestabilizar. Ela foi pega antes que pudesse chegar até ele, Caim segurava seu pescoço com uma agressividade que Kya nunca tinha usado nos treinos, com tanta força que as veias dos seus pulsos pulavam e Shaya sufocava tentando juntar ar.

Arty estava perplexo.

Ele virou para kya e ela parecia estar se contendo, pronta para desembainhar sua lâmina, ele olhou novamente para Caim e viu que sua expressão mudou completamente. Ele não estava levando aquilo na brincadeira.

Arty notou que Shaya tentava se soltar, esperneando e tentando chutar seu tio com as forças que lhe restavam.

-Não vai fazer nada, garoto?

Arty tentou pensar por um tempo. Não tinha força física suficiente para impedir ele, a possibilidade de forçar o homem gigante a usar as duas mãos veio na cabeça dele, mas a diferença de forças mais uma vez veio à mente. Por um breve momento, um momento que não deve ter durado mais de 1 segundo, ele sentiu um fio invisível se formar por sua mão e percorrer irregularmente até Caim, sua mente estava vazia e ele via com clareza o fio. Mas, assim que Shaya gritou mais uma vez, as preocupações voltaram a sua mente e o fio se desmaterializou na mesma velocidade que apareceu.

-O que? Ein? Acho que você está precisando de um incentivo! - com Shaya ainda se debatendo e chutando seu tronco ele empurra Arty com seu pé direito e o pressiona sobre o chão.

Arty tentou gritar de dor mas não conseguia nem respirar com o peso em seu peito. Ele pensou naquele momento que iria morrer. Ele se lembrou da vida nas ruas e a mesma sensação constante de viver naquele lugar sujo voltou com a chegada de Caim.

- Como uma guerreira tão honrada da linhagem da Lírio vermelho aceitaria ensinar você? - Ele inclinou sua cabeça levemente, desviando seu olhar de Arty e o dirigindo fixamente para Kya, que parecia estar no limite de sua paciência. - Acho que isso deve ser inevitável, não é? Ensinar ratos que contaminam a mão que o alimenta é tão irresistível assim, Kya?

-Já chega! - Caim finalmente conseguiu fazer com que Kya explodisse, de algum jeito aquelas palavras tão específicas foram o estopim que fizeram ela sacar sua espada e cruzá-la imediatamente no pescoço de Caim, de um jeito que não ferisse Shaya, caso fosse necessário transformar a ameaça em realidade.

A última coisa que Arty se lembra de ter visto antes de desmaiar foi a imagem de Shaya caindo no chão inconsciente e a do tio dela brigando com Kya, na verdade sendo destruído tanto pelas palavras afiadas dela como pelos seus golpes cirúrgicos.

Duas semanas passaram, dessa vez, tão devagar como o possível. Desde o encontro na floresta não era mais Kya que os treinavam, mas sim o tio ameaçador de Shaya e isso mostrou para Arty algo que ele havia esquecido depois de tanta hospitalidade. Ele não era um convidado. Ele é apenas um simples empregado no castelo, na verdade, um mero aprendiz de um empregado, e por mais forte que a amizade com Shaya tenha florescido isso não mudava a sua situação naquele lugar.

Mais uma vez ele estava estudando na torre com Baltazar, praticamente a única coisa que fazia além de treinar, tendo inclusive que parar até mesmo com suas aulas particulares de Surin. Várias faixas cobriam seus machucados de treinos, ele se questionava o porquê de Baltazar ter aberto os portões naquele dia, o porquê ele estar ensinando um plebeu órfão e o porquê de todo resto, mas, ele só teve coragem de fazer uma simples e silenciosa pergunta.

-Por que eu? Por causa das visões?

-Por que não? - Ele não hesitou em respondê-lo imediatamente. - Irei te fazer uma pergunta. Quem era Dersil?

- Dersil era um herói e eu sou um… não sei o que sou. - Ele foi pontualmente interrompido por Baltazar

- Não. Dersil era um humano, como eu e você. Ele nunca recebeu benção alguma nem nada do tipo, ele conquistou seu próprio poder assim como Shaya e muitos outros impuros pelo mundo. - ele se levanta e continua - Ele construiu seu próprio país, sozinho, e por isso o império caiu. Uma nação… não, a humanidade não consegue se sustentar sem os deuses. Os mantos da época, de todas as cores, concordaram em alterar a história escrita porque não queriam que o povo soubesse a verdade. Eu não os culpo.

- Não faz sentido, por que os mantos fariam isso?

"Porque Baltazar estava agindo daquele jeito?", afinal os deuses não existem no mesmo plano que os humanos há quase um milênio e nesse meio tempo muitos territórios conseguiram prosperar em situações nem um pouco favoráveis.

-Não é óbvio? Os Deuses, todos eles sumiram assim que o herói sumiu. A humanidade iria ruir sem o seu julgamento divino e as pessoas não aceitariam um humano governando sabendo que estariam fadados à ruína.

Arty também se levantou e confrontou Baltazar cara a cara.

-Mentiroso! Isso não é verdade!

- O que não é verdade, Arty? Não vê as guerras, não vê como Caim o trata? É isso que acontece quando se dá poder demais a um humano. - Baltazar se sentou novamente no seu lugar - Prove que estou errado.

Arty estendeu seus dois braços enfatizando o ambiente que estavam.

-Essa é a prova, todos esses livros, tanto conhecimento e sabe quantos deles foram escritos por Deuses? Nenhum.

-Onde está querendo chegar?

-A humanidade prosperou sem eles e suas intervenções mesquinhas e imparciais. Sério que você acha que o "Deus" Davilon ter praticado um genocídio contra as tribos anciães foi algo bom?

-Essas mesmas tribos se recusaram a seguir os deuses, não é? Elas não recusaram os avanços tecnológicos que você está querendo tanto exaltar? Mesmo depois de todos os deuses terem ido embora?!

-Eles morreram, aceite isso. Sem eles, agora temos a escolha, a escolha de lutar e a de não lutar, de ser um puta de um babaca ou um guerreiro honrado, somos nós que estamos no controle.

Arty já havia gritado o suficiente, estava ofegante e vermelho e se estressou tanto que várias linhas de expressão ficaram pelo seu rosto e até uma pequena veia na sua testa saltou.

O silêncio após a última colocação dele acabou com Baltazar batendo palmas e rindo incontrolavelmente.

-Você tá de brincadeira? - Arty disse

- Parabéns, você realmente surpreendeu minhas expectativas. - Arty o olhou confuso. - Você se enganou apenas em duas coisas.

-E quais coisas seriam?

- Primeiro, você se enganou muito quando disse que "temos o controle das nossas próprias ações" se você soubesse as forças que agem por trás das cortinas do mundo certamente rezaria para os Deuses voltarem e começarem seu último expurgo.

Arty se sentou.

-Qual seria a outra coisa? - toda sua exaltação já havia se esvaído e ele se sentou em silêncio esperando a resposta.

-Segundo, os deuses não morreram, e eu não estou falando isso como um idólatra ou um profeta charlatão, isso é fato. Mas estou feliz que você é do tipo de pessoa que acha que estamos melhor sem eles, como eu imaginei que você seria haha.

Baltazar saiu aos risos da biblioteca, essa frase, na verdade, todo esse grande monólogo dele só deixou Arty ainda mais confuso. "Como ele poderia saber que minha reação não seria diferente?" Pensou, não tinha como ele saber disso mesmo antes dele o conhecer, mesmo antes dele ter aberto os portões naquele dia. Tudo estava confuso.

Arty andou até a janela para tentar espairecer observando a vegetação exuberante de um dos terraços e viu Shaya treinando sozinha entre alguns canteiros de lírios das mais variadas cores. Ela tropeçou com o peso da própria espada e caiu nas flores. A espada era de verdade e cortou a longa frança azul-marinho dela. Ela logo se levantou, devagar, se apoiando na espada que era quase o dobro do seu tamanho. Seu olhar era de amedrontar qualquer um. A mistura de sua maquiagem chique borrada, como se tivesse acabado de sair de algum compromisso de princesa, o cabelo recém mal cortado em um ângulo torto, a mistura de tudo isso refletia perfeitamente a mente da pobre garotinha agora. E tudo isso se manifestou de uma vez em um único grito e estrondoso grito.

"PORRA!!"

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