2 Bernardo

O Uber parou em frente a uma casa comum, com um portão de grade branco e muro alaranjado. Dava pra ver de fora uma pequena área coberta com telha americana que ia até o muro, piso de cerâmica e um Pálio estacionado.

— Será que é aqui mesmo? — pensou um pouco nervoso.

Nunca havia ido para aquela parte da cidade. Thiago havia lhe dado aquele endereço há muito tempo, quando Bernardo ainda estava na faculdade cursando Direito a mando de seu pai, como tudo que ele havia feito na vida até agora.

Saiu do carro logo após o motorista, que foi em direção ao porta-malas para pegar suas coisas.

— Obrigado — disse a ele que agradeceu de volta antes de entrar no carro e ir embora. Olhou em volta e viu que não tinha ninguém na rua. — Se ele não morar mais aqui eu estou fodido — pensou indo em direção ao portão para tocar a campainha. Não demorou muito para alguém aparecer.

— Quem é você? — perguntou uma garota de estatura média, cabelo verde e uma camiseta que ia até o joelho.

— É... Oi, meu nome é Bernardo, o Thiago ainda mora aqui? — perguntou quase rezando para que ela soubesse de quem ele estava falando. Ela o olhou de cima a baixo, desconfiada, antes de responder.

— Thiago! — gritou ainda olhando para ele.

— Para de gritar sua maluca! — disse Thiago aparecendo alguns segundos depois.

— Você tem visita — foi só o que disse antes de voltar para dentro da casa.

— Bernardo? — perguntou quase não o reconhecendo. — Caralho, é você mesmo? — disse sorrindo abrindo o portão pra ele. — Entra aí cara, e essas malas? Não vai dizer que finalmente criou vergonha na cara?

— Thiago, eu preciso conversar com você — disse sério.

— É, eu também, já tem o que? Uns três anos que a gente não se fala? — perguntou pegando uma das malas e levando-a para dentro da casa.

As malas foram deixadas na sala pequena com um sofá escuro e uma TV embutida na parede e depois Bernardo seguiu-o até a cozinha, que tinha paredes de cerâmica branca e uma janela de madeira, logo acima da pia de alumínio. Bernardo sentou-se à mesa redonda de mármore que ficava no centro da cozinha, enquanto Thiago pegava a garrafa de café e duas xícaras.

— Olha só pra mim servindo café para as visitas, pareço até uma velha — disse rindo enquanto servia o café depois de se sentar. Bernardo apenas sorriu de volta, já tinha até se esquecido do senso de humor de seu velho amigo.

— Acho que você já tem mais ou menos uma ideia do porquê que eu vim pra, né? — perguntou depois de tomar um gole do café.

— Não é lá uma coisa muito difícil de se deduzir — disse assoprando o café de sua xícara. Seu cabelo loiro estava bem maior, sua pele mais bronzeada e ele também parecia estar de ressaca. — Da última vez que eu te vi, você estava se casando com aquela patricinha arrogante e estava trabalhando no escritório de advocacia do seu pai, o que mudou?

— Eu cansei — respondeu e esperou seu amigo dizer alguma coisa, mas ele apenas o encarou. — Eu passei a minha vida inteira sendo o filho perfeito para os meus pais, deixando eles escolherem que curso eu deveria fazer, com quem eu deveria me relacionar, até as minhas roupas! — disse apontando para si, ele usava um terno azul-marinho e sapatos sociais. Seu cabelo preto estava curto com uma franja meio bagunçada. Thiago apenas balançava a cabeça concordando, como quem já conhecia toda a história. — Você tinha razão... Você me disse uma vez que um dia eu me cansaria de ser o boneco deles, que um dia eu sentiria falta de ser eu... É exatamente assim que eu me sinto agora.

— E o que você fez em relação a isso? — perguntou depois de tomar o café de uma vez.

— Eu larguei tudo, pedi o divórcio pra Camila, me demiti do escritório e basicamente fugi de casa pro único lugar que eu tinha certeza de que meus pais não me encontrariam — desabafou e Thiago apenas riu como resposta. — Eu sei que é muita cara de pau eu aparecer assim na sua casa depois de anos sem nenhum contato... A verdade é que eu sou um idiota, eu afastei todas as pessoas que realmente se importavam comigo e agora eu estou rodeado de puxa sacos — riu sem humor. — Você não precisa me ajudar... Eu não me ajudaria, eu estraguei a minha vida e...

— Ok, já chega — levantou-se para colocar a xícara na pia. — Eu realmente fico muito feliz de saber que você finalmente acordou pra vida, mas você não vai conseguir nada se auto rebaixando desse jeito — sentou-se novamente. — Se precisa de um lugar pra ficar, sabe que é mais do que bem-vindo aqui, mas o que pretende fazer? Quais são seus planos?

— Eu não faço a menor ideia, pela primeira vez, eu não sei o que fazer com a minha vida — disse sentindo-se um pouco assustado.

— Bom... Bem-vindo ao mundo real! — sorriu.

* * * * * *

— Eu sei que não é aquele luxo todo que você está acostumado, mas...

— Está perfeito! — disse Bernardo olhando para o "quarto de hóspedes" que Thiago havia lhe oferecido. Era um quarto pequeno, com paredes cor creme e um PC Gamer em cima de uma mesa para computador. — Vejo que você não parou de jogar — sorriu para o amigo.

— Quem me dera se isso fosse meu — respondeu.

— O que os virjões estão fazendo no meu escritório? — perguntou quase gritando a mesma garota que o atendeu.

— Alex esse é o Bernardo meu amigo desde a escola e Bernardo essa é a Alex minha colega de... casa.

— Ué, eu lembro de você ter me dito que dividiria uma casa com um cara — disse Bernardo.

— É, eu também pensei que fosse um cara já que o nome dela é Alex, né? — olhou para Alex.

— Eu já te falei que Alex é um nome unissex — respondeu.

— Enfim... Ele vai passar um tempo aqui com a gente — disse apontando pra Bernardo.

— E só agora que você me avisa?

— Bem... É que ele...

— Você sabe que de acordo com o nosso contrato você deve me pagar uma multa de 100 reais por não ter me avisado isso com antecedência, não é? — disse com um meio sorriso.

— Contrato? — perguntou Bernardo sem entender.

— Teve uma época que a gente resolveu fazer um contrato com algumas regras e quem não cumprisse pagava multa — respondeu Thiago desanimado.

— E detalhe, essa regra que eu acabei de citar foi ele quem inventou — disse Alex sorrindo.

— Isso é porque você ficava trazendo gente do nada toda hora pra cá, se eu ganhasse 1 real por todas as vezes que eu esbarrei com um desconhecido seminu na cozinha, logo de manhã cedo, hoje eu estaria milionário!

— Você exagera demais — disse Alex fazendo não com a cabeça.

— Eu exagero? — perguntou indignado. — Quando o ex-namorado dela vinha dormir aqui, ela nunca me avisava, então toda vez eu acordava de manhã, ia pra cozinha e dava de cara com ele encostado na pia com uma cueca transparente! Fala se não é a visão do inferno? — perguntou para Bernardo que respondeu com uma risada. — Sério, eu não sou obrigado a ficar vendo ereção de outro cara.

— A cueca dele era branca e não transparente — disse Alex. — E não foi toda vez, deve ter acontecido no máximo umas três vezes! Engraçado que você nunca reclamou das vezes que "esbarrou" com a minha prima quando ela vinha passar uns dias aqui — fez o sinal de aspas com as mãos.

— Mas é óbvio que não! Aliás, falando nisso, eu não tô mais conseguindo mandar mensagem pra ela, o WhatsApp dela deu problema de novo?

— Eu já te falei mais de mil vezes que é porque ela te bloqueou — disse revirando os olhos.

— Claro que não é isso, da última vez ela falou que foi porque o celular dela deu problema.

— Ela mentiu pra você, seu idiota! — disse impaciente. — E para de mudar de assunto, você ainda está me devendo 100 reais.

— Mas isso não é justo, eu não sabia que ele viria pra cá — protestou.

— O contrato é bem claro, tem que avisar pelo menos um dia antes — disse sorrindo.

— Eu pago — disse Bernardo pegando a carteira e tirando uma nota de 100.

— Se você tem tanto dinheiro assim porque não fica num hotel? — perguntou Alex curiosa, pegando o dinheiro e observando que aquela não era a única nota de 100 dentro de sua carteira.

— Por que eu estou tentando fugir dessa vida — disse guardando a carteira. — Mas eu quero que saibam que pretendo ajudar com qualquer despesa.

— Então pode começar comprando uma cama, porque a gente só tem um colchão de ar que tá furado — disse Thiago apontando para um saco com um colchão de ar num canto do quarto.

— Peraí, ele vai ficar nesse quarto? Mas esse é o meu escritório! — protestou.

— Escritório? — perguntou Bernardo sem entender.

— É, ela faz live na Twitch — deu de ombros.

— Ela faz o que? — perguntou entendendo menos ainda.

— Ela joga ao vivo pra pessoas do mundo inteiro poderem ver — respondeu Thiago.

— Joga o que? — perguntou, interessado.

— O que eu quiser, é por isso que eu tenho esse PC monstro aí — disse orgulhosa. — Se você vai ficar mesmo nesse quarto, então já fique avisado que eu faço lives à noite.

— Tudo bem — sorriu pra ela.

* * * * * *

Estavam dentro do Palio vermelho, que Bernardo descobriu ser de Thiago, indo em direção a sua casa para buscar o resto de suas coisas.

— Eu já sabia que você deveria morar num bairro nobre, mas dentro de um condomínio fechado? — parou em frente ao portão do condomínio, impressionado.

— Mais uma das coisas que meus pais decidiram por mim... — disse assim que o portão abriu para eles. Quando entraram deram de cara com uma avenida ladeada de sobrados, uns mais altos que os outros, com apenas cercas vivas para separá-los. — Pode seguir, a minha fica mais pra frente.

Pararam em frente a um sobrado branco, cúbico com janelas de vidro e uma porta pivotante de madeira.

— Ah droga... — disse Bernardo ao ver o sedan preto parado em frente a sua casa.

— Seu pai? — perguntou estacionando o carro.

— É... já tem umas trezentas chamadas perdidas dele no meu celular, eu já desconfiava que ele estaria aqui — sua vontade era de ir embora e voltar outro dia ou nunca mais, mas sabia que não poderia fugir dele pra sempre.

— Quer que eu vá com você? — perguntou já tirando o cinto.

— Não, ele vai acabar descontando em você e eu não quero isso... — tirou o cinto e abriu a porta. — Me deseje sorte! — forçou um sorriso.

* * * * * *

Abriu a porta devagar já ouvindo a discussão entre seu pai e sua esposa.

— Como você pôde deixá-lo sair assim? — perguntava seu pai, claramente alterado.

— E você queria que eu tivesse feito o que? Amarrado ele na cama? Ele não é uma criança, Rodrigo! — disse Camila irritada. — E eu não o vi saindo, só percebi quando acordei e vi nosso closet revirado e duas malas faltando...

— Isso é ridículo... Sumir assim, não atender minhas ligações...

— Até onde sabemos ele pode nem ter levado o celular.

— Um irresponsável, um...

— Eu estou aqui — disse Bernardo fazendo ambos pararem para encará-lo. Camila foi a primeira a correr em sua direção.

— Por onde você andou? — perguntou enquanto o abraçava.

— É uma longa história... — disse saindo do abraço. — Camila, eu sei que nós ainda temos muita coisa pra conversar, mas você poderia nos deixar a sós por um momento? — perguntou olhando para seu pai.

— Claro, eu já preciso ir para o escritório de qualquer jeito... Depois você me liga? — perguntou e Bernardo respondeu fazendo sim com a cabeça. Camila era alta e usava um terno feminino preto, tinha olhos verdes e um cabelo ruivo comprido e liso.

— Então... Agora é a hora que você me explica que brincadeira de mau gosto foi essa? — perguntou Rodrigo depois que Camila saiu.

— Não foi nenhuma brincadeira, pai — respondeu, tentando se manter calmo.

— Mas é claro que foi — disse rindo. — Ou foi uma brincadeira ou você enlouqueceu de vez! — seu pai era apenas alguns centímetros mais baixo que ele, tinha um cabelo grisalho, curto e também usava um terno. — Olha, se foi por causa do que sua mãe disse ontem, nós só achamos que já estava passando da hora de você engravidar a Camila e...

— Não foi só por causa disso! — disse irritado por seu pai tê-lo feito se lembrar da noite passada. — Eu nunca quis ser advogado, nunca quis me casar com a Camila, nunca quis nada do que eu tenho hoje!

— Mas que merda é essa que você está dizendo, Bernardo?

— Eu falei sério quando pedi demissão do escritório ontem, pai! Eu estou cansado de vocês ficarem controlando a minha vida.

— Controlando? — aumentou o tom de voz. — É assim que você vê? Você tem ideia de quantos filhos queriam que seus pais "controlassem" a vida deles igual eu faço com você? — fez o sinal de aspas com as mãos. — Eu te dei um futuro! Sabe quantos funcionários do escritório fariam de tudo para ter pelo menos metade do que você tem, hein, Bernardo?

— Eu nunca pedi nada disso! — alterou-se. — Eu só queria poder ter controle da minha própria vida!

— Então eu cedo ele pra você — disse com um sorriso irônico. — Já que você se sente tão prisioneiro trabalhando em um dos maiores escritórios de advocacia do país, morando num sobrado dentro de um condomínio fechado e casado com uma mulher linda e inteligente, pois bem... — encarou-o. — Eu aceito sua demissão, e já que a ideia de você se casar com Camila foi minha, então eu também irei arcar com todos os custos do divórcio, mas a minha ajuda acaba aí... Depois disso você estará sozinho — aproximou-se dele. — Porque eu não vou sustentar essa sua birra — disse secamente saindo logo em seguida.

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