6 Capitulo 6

A casa era simples, mas ainda assim aconchegante. Tinha uma sala grande com várias portas para os demais cômodos, e essa sala grande tinha um sofá macio que era o meu preferido. A única coisa que deixava o ambiente pouco amigável ali era a luz. Sabe quando a luz é "escura"? Quando ela não ilumina muito e deixa o ambiente um pouco, sabe... "escuro" demais? Fica uma atmosfera meio tétrica? Lúgubre? Era mais ou menos assim. Era a casa do Craig.

Eu estava sentada no sofá macio. Craig estava de pé terminando de se arrumar: ora ajeitava o cabelo olhando no espelho, ora colocava seus pertences nos bolsos. Ele é aquele típico brutamonte que parece um instrutor de academia ou algo assim. Costumava andar de regata para exibir seus másculos bíceps cobertos de tatuagens aleatórias sem necessidade. Uma delas era a tatuagem do Dragão.

Sempre que ele ia falar com o Dragão eu aparecia na casa dele um pouco antes para conversar.

Na casa moram só ele e Marcelle, que é uma menina de quem ele cuida. Marcelle é cega e cadeirante, não faz nada sozinha. Assim Craig sempre tem que estar em casa, nunca pode sair por muito tempo. E isso combina com o trabalho dele, que na maior parte das vezes acaba rápido e dá muito dinheiro. Você adivinhou: ele trabalha para o Dragão. O famoso chefe do submundo de Sproustown. É um sicário ou algo assim.

Eu também trabalho para o Dragão na mesma vocação, mas minha tatuagem é escondida nas costas, eu não ando exibindo ela por aí usando uma baby-look. E é porque eu trabalho sob as ordens do mesmo chefe que venho e sento naquele sofá no dia antes de ele conversar com o dito cujo, para tratar de trabalho.

- Sabe o que aconteceu? Um ET apareceu.

- Um alien?

- E ele deu um convite de um tal de torneio de não sei o que da Arena para a polícia.

- O que? Um convite da arena? Quer dizer "o" convite da Arena? E o que quer dizer com "deu" o convite para a polícia?

- Ele deve ter perdido. Sei lá...

- Você ao menos sabe o que é esse convite?

Dei de ombros. Esparramada no sofá, continuava jogando Cinder Clash no meu celular. Eu não sabia. Como eu ia saber? Provavelmente era alguma coisa horrível e ilegal como sempre. Esses humanos são todos tão esquisitos.

- O torneio de Uahmyr é uma competição de seres paranormais, os melhores de todo o sistema solar.

- Hum...

- As anteninhas se levantaram, é?

- E qualquer um pode participar?

- Infelizmente não, você não poderia participar nem que quisesse, Bubble. É algo feito de organizações mafiosas para organizações mafiosas. Os líderes inscrevem seus cachorrinhos e eles que lutam. Contra a vontade, óbvio.

- Então não devem ser os seres mais fortes... Se eles se deixam controlar desse jeito...

Meu interesse se esvaiu.

- Coincidentemente você vem me dizer isso justo no dia que o Dragão me chamou... Suponho que deve pensar que ele quer discutir algo a respeito disso, é?

- Imagino que sim. Foi a única coisa relevante que aconteceu... Já que você diz que esse torneio é famoso entre a máfia, ele deve estar querendo que você usurpe o convite para que um de nós três possamos participar. Por nós três quero dizer, eu você ou o Sub. Excluo a Marcelle, óbvio.

Craig me lançou um olhar mal-humorado. Ele detesta que eu fale mal da Marcelle em qualquer hipótese. Mas que ela atrapalha bastante as atividades do grupo, isto é fato.

- A Marcelle não está atrapalhando as atividades do Dragão, Bubble. Pelo contrário, tenho cumprido as ordens cem por cento desde antes de o Sub-Zero se juntar à equipe.

Odeio quando ele faz isso. A finesse mais chata de todas que existem é a leitura de mente do Craig.

- Não é leitura de mente, Bubble. – Respondeu ele ao adivinhar o que eu estava pensando- Mas sim uma leitura de microexpressões faciais. Com base nas expressões quase invisíveis do corpo humano eu consigo obter uma ideia do que se passa na cabeça do alvo observado. Passei anos estudando psicologia da linguagem corporal e fazendo testes em diversas pessoas até conseguir um resultado aceitável que é esse nível de leitura que tenho agora. Com base no seu tom irritadiço de voz, misturado ao fato que sua pele da testa se retraiu alguns milímetros, dá para dizer que você devia estar pensando algo de ruim dela quando falou a frase "excluo a Marcelle, óbvio". E sua cara se retraiu ainda mais quando eu respondi, o que indica que acertei em cheio o seu pensamento: o de reclamar da minha finesse de entender o pensamento. Acertei de novo?

"Psicologia de não-sei-o-que..." Que seja... Para mim ainda é uma leitura de mente.

(E além do mais, ninguém te perguntou, Craig. Você bem que podia me deixar terminar minhas frases.)

Para mudar de tópico, provoquei-o:

- Hum. Eu provavelmente seria mais indicada que você para participar do torneio.

Estava só brincando. É óbvio que alguém que lê as mentes dos outros seria muito mais indicado.

- É? Tem razão. Você realmente é uma mercenária assustadora. O terror de Sproustown. Duplamente mais assustadora quando fica vidrada nesse joguinho e sentada em cima das pernas esparramada no sofá. Imagino que ia querer levar o celular junto consigo para o torneio...

Craig bocejou à medida que colocava um casaco que estava pendurado ao lado da porta, sabe... Naqueles lugares de pendurar casacos que ficam ao lado das portas.

- De qualquer forma, a conversa de hoje com o Dragão vai ser sobre o alien e o convite com uma certeza de mais de noventa por cento. Por que um convite de papel? Seria muito melhor se as organizações criminosas usassem um tipo de senha ou algo que não fosse físico, justamente para evitar de essas coisas caírem na mão da polícia. Como se já não tivéssemos problema o suficiente com a polícia.

- Com a facilidade que paranormais conseguem informação, algo como senhas seria dentre todos os modos o menos confiável meio de certificar sua identidade em um torneio, Craig.

- E um papel não seria ainda menos confiável? Ou vai me dizer que por acaso eles não podem falsificar um papel? Todo mundo com tanta finesse e nem isso...

Craig me olhou de modo rápido enquanto passava o celular do bolso da calça para o do casaco.

- Sua expressão diz que é sim impossível falsificar o papel... – Ele adivinhou.

Dei de ombros.

- Se for o tipo de papel que estou pensando... Só existe aquele material fora da Terra, e a tinta com que as assinaturas oficiais são feitas pode ser identificada pelo serial. Fabricam aquele tipo de tinta só na central de casos criminosos interestelares de Arena.

- Na central de casos criminosos interestelares? Sério? E eles mesmo assim conseguem a tinta para assinar um papel exatamente para fins criminosos interestelares? Roubam a tinta assim, sob o faro deles? Uau... Vejo que é sim um método extremamente confiável de acesso.

- É sim um método extremamente confiável de acesso, Craig: não tenho certeza sobre quem rouba a tinta para fazer os papeis, mas seja lá quem for, ninguém mais além dele consegue. Eles têm controle do material... Tem um código que eles mudam todo o ano que usam para identificar se o papel é falso ou não ou algo assim. E mesmo se alguém tentasse adquirir o papel roubando, como eu disse antes, teria que buscar naquele local específico, e lá é monitorado o tempo todo por eles mesmos desde que iniciam as inscrições, assim...

- Falsificar está fora de questão.

- Está...

Craig foi até o quarto para terminar de se arrumar. Permaneci jogando Cinder Clash. Dava para ouvir a voz de Marcelle fazendo as coisas dela no quarto ao lado. Às vezes dava um pouco de constrangimento falar de trabalho sabendo que ela estava em casa, mas provavelmente com o barulho do rádio ela não ouvia nada.

E depois, se ela ouvisse era problema do Craig e não meu, assim...

Craig voltou.

- "Está"... Algo entre sua entonação e expressão me diz que você está deliberadamente escondendo alguma coisa, esperando que eu pergunte primeiro para só então você responder. Está bem, eu pergunto, Bubble... O que há de adicional?

- Eu ia dizer que mesmo que seja impossível falsificar o convite, é fácil falsificar a identidade de seja lá quem for que está sendo convidado. Se alguém daqui consegue esse papel, basta dar um fim no destinatário e falsificar sua identidade para fazer-se passar pelo destinatário. Afinal falsificar identidades feitas por humanos é a coisa mais fácil que tem. Trivial. Banal igual a uma banana.

- Faz sentido. O staff do torneio de Uahmyr provavelmente nem conhece todos os convidados de tantos que são. Fazer-se passar por um deles desde que o verdadeiro não comparecesse não seria impossível. É... Isso explica porque o nosso Dragão está atrás do convite.

- Se lembre que a priori nem sabemos ao certo se o Dragão realmente te chamou por causa desse convite...

-É claro que deve ter chamado. Por que mais seria?

- Como vou saber?

Após ajustar a gola da camisa, Craig parecia de todo arrumado agora.

-Ei, Bubble... Me diga uma coisa: Como está tão informada sobre o submundo de Arena? Para alguém que apenas acabou de saber do que se trata o convite você está sabendo bastante sobre a staff deles.

Ergui uma sobrancelha.

- Craig... Eu só sei do submundo de Arena porque vim de lá. Eu não sabia que era um convite específico para o torneio de Uahmyr, só isso. Mas como os papeis que usam na Arena para tudo que é confidencial é daquele tipo, imaginei que em Uahmyr não deve ser diferente. Apenas isso.

Inclinei minha cabeça para a tela do celular de novo. O jogo estava chegando na parte interessante.

- Daqui a pouco sua maior finesse vai ser esse joguinho. – Ele apontou com a cabeça para o Cinder Clash. Apenas mostrei-lhe o dedo enquanto olhava para a tela. Ele murmurou mais alguma coisa, mas eu estava muito concentrada no jogo.

- Bom, Bubble... Eu vou finalmente lá falar com o chefe e ver o que ele tem para nós. Você vai fazer o que?

Sem tirar o olho da tela, me preparei para me levantar.

- Eu? Deixe-me ver... Acho que vou dar uma passada na casa dos Johnson... Já que como você disse provavelmente vamos ter que lidar com esse assunto, mesmo.

- Johnson? Quem é Johnson?

- Eu não te disse? O ET que apareceu foi visto na casa de uma tal Margareth Johnson... Eles morreram de ductu.

Craig misturou uma cara de interesse e espanto, mas ao invés de comentar alguma coisa ele só se despediu e fechou a porta atrás de si. Eu não ia ficar sendo babá da Marcelle por isso me preparei, peguei um táxi e fui para o meu destino.

O ônibus demorou bastante para chegar porque era quase fora da cidade, mas tudo bem. Eu não exatamente estava com pressa.

Era uma típica casinha de campo, pequeno e com telhadinho triangular, erguida em cima da grama de forma mais mal-acabada que um carrinho de madeira podre. Além do mais não diria que inspirava muita segurança visto que qualquer um podia chegar até a porta, ou até a janela, a hora que bem entendesse. Onde estávamos? Na Holanda?

Era de tarde e não tinha ninguém lá, ou pelo menos foi o que eu pensei quando cheguei.

Me disseram que o ET tinha sido visto no telhado, por isso a primeira coisa que fiz foi saltar da entrada até o telhado. Com um pulo só. Só aplicar um pouco de força na ponta dos pés e estou lá. Fácil igual a pular corda.

Era fácil também porque a parte mais baixa do telhado fica logo em cima da entrada, assim... Escolher aquele ponto gastava menos da minha energia.

Assim que pousei, o impacto deixou uma marquinha na telha. Previsível. Estava usando a indarra afinal de contas. O pouso naquela pressão não danificava muito o telhado, mas fazia impacto o suficiente para deixar uma marquinha daquele tipo.

Observei que bem perto da minha tinha outra marca que parecia ter sido feita com um sapato também, da mesma forma. Ou algum humano subiu no telhado e deu uma sapatada muito forte na telha sem razão alguma, ou era obra da indarra de outra coisa. Adivinhe você qual opção era mais provável.

Como eu sabia tanto sobre formas de marcas de pegadas? Isso porque... Durante a infância eu sempre quis ser detetive.

Isso. Você ouviu. Detetive.

Meu passatempo de criança era ficar procurando por pistas nos variados lugares e deduzindo coisas a partir delas. Queria ser uma policial da perícia ou algo assim. E por isso que a parte que eu mais gostava do meu trabalho era justo a hora em que eu analisava uma cena, igual a eu estava fazendo ali.

Infelizmente a vida não me permitiu seguir meu sonho, por causa de algumas escolhas infelizes que tomei. No final das contas acabei virando... Você sabe... O oposto de detetive da polícia.

Enquanto eu analisava aquela marca de sapato meu anti-ductu apitou. Tinha alguém por perto. Seria o ET? Me escondi atrás da chaminé o mais rápido que pude. Isto é, "atrás" na visão angular de alguém que se posicionasse na frente da casa. Escolhi aquele lugar porque parecia que o ductu que senti vinha... Você sabe... Da frente da casa.

Eram dois seres paranormais: um homem e uma mulher. A mulher era uma jovem ruiva e bem arrumada. O homem era de meia idade, barbudo, alto e corpulento. Estava fumando um cigarro.

Ainda bem que eu tinha aprendido o sigilo, uma técnica que se baseava em equilibrar o ductu e o anti-ductu de modo a não ser detectada por nenhum ser paranormal ou algo assim. Em geral tem um tempo de reação entre o anti-ductu e o sigilo, se alguém entendido sente ductu em um lugar e instantes depois, de repente some, sabe de imediato que tem alguém se escondendo com sigilo por perto. E revelar o uso do sigilo dessa forma meio que acaba com a utilidade da técnica.

Para minha sorte, parecia que eles não tinham notado nada, o que indica que meu tempo de reação foi rápido o suficiente.

Ao invés disso, o casal parecia estar rindo de alguma coisa.

- ...Aquele seriado é demais. E a Ketlyn então?

- A Ketlyn é minha personagem preferida.

- Eu sempre lembro daquela parte que ela...

Os dois entraram na casa dos Johnson e não ouvi mais nada. Pensei:

(Que coisa... A polícia faz seu trabalho enquanto conversa sobre coisas aleatórias dessa forma?)

Me perguntei isso porque pelo jeito como aquele senhor de meia idade estava vestido ele devia ser da polícia. Pela quantidade de ductu supus que devia ser do DCAE. Eles estavam fazendo a perícia? Mas se eu já sabia da notícia é porque eles já tinham feito isso antes. E a faixa de transgressão já estava lá quando eu cheguei... Era mais provável que eles já deviam ter vindo ali uma vez antes e estariam voltando agora uma segunda.

Olhando de novo para aquela pegada imaginei se ela seria de um deles que subiu no telhado da primeira vez que vieram... Será que saltariam no telhado de novo hoje? Iriam me ver ali!

Comecei a suar de leve.

Procurei com a cabeça com pressa algum lugar reserva caso quisessem saltar no telhado e avistei uma terceira pegada no meio do mesmo. Era a única que tinha além das que estavam na parte acima da entrada. Esta estava mais longe que as outras. Significava que alguém saltou no meio do telhado ao invés de na ponta... Devia ser com isso que descobriram que era um ET. Eles têm maior alcance no salto.

Atrás da casa dos mortos tinha a casa do vizinho, que era do mesmo tipo pitoresco, e atrás desta outra tinha meio que um labirinto de árvores. Não quero dizer floresta porque tinha muito poucas árvores para isso. Era só um gramado com árvores mesmo. Decidi saltar na grama e correr para lá, assim se fosse encontrada não seria estranho. Seria só uma garotinha brincando nas árvores. Desde que continuasse usando o sigilo.

E assim fiz. Com impulsos nos pontapés cheguei até aquele gramado com uma pitada de árvores e subi numa delas que era um pouco alta. Observei o movimento dentro da casa. Vi o casal lá dentro conversando. Chequei os detalhes dos sapatos do homem corpulento. Eles eram grandes, arredondados e de ponta de ferro. As botas de uniforme policial do DCAE. Como eu tinha imaginado ela combinava com a primeira marca que vi no telhado.

Passei a bancar a detetive.

Se a marca do sapato daquele senhor estava lá era porque ele já tinha pulado no telhado antes. Mas ele tinha chego só há pouco e não o vi subir no telhado, o que significa que ele estava lá agora pela segunda vez. As duas marcas estavam mais fundas que a minha, o que indica que eles não maneiraram na indarra quando subiram, logo quando subiram deviam estar com pressa. Não tem por que deixar um indício de habilidades sobrenaturais de propósito se não estiver com pressa.

Assim, a primeira conclusão que cheguei foi que eles devem ter avistado o ET no outro dia e o perseguido.

Se eles perseguiram o ET no dia da investigação, quer dizer que o ET também esteve nas redondezas duas vezes: uma quando foi reportado para a polícia e uma segunda quando a polícia veio fazer a checagem naquela casa da primeira vez. Contudo o ET só perdeu o convite na segunda vez que veio, pois pelo que fui informada o papel se encontrava agora sob posse do DCAE.

Se o ET fosse um mercenário querendo entregar o papel para algum chefe de tráfico, ele teria feito isso da primeira vez, quando foi avistado nas redondezas. Não teria por que carregar papel tão valioso no bolso da segunda vez, quando a polícia já estava em seu encalço.

Assim, considerando todos os pontos, cheguei foi a segunda provável conclusão:

A perda "casual" do documento foi de propósito.

O ET voltou lá justamente para entregar o convite para a polícia.

Interessante... Que tipo de gente ia querer que o documento caísse nas mãos da polícia? Se fosse alguém relacionado à polícia teria entregado direto nas mãos deles, então era alguém do lado oposto. Algum mercenário contratado ganharia alguma coisa com isso? Se sim o que?

Como eu ia saber?

Enfim... Já que não tinha mais o que fazer ali, pensei em voltar e ver o que Craig estava fazendo. Como a casa dos mortos ficava a mais de meia cidade de distância da dele, só o tempo de eu ir e voltar já seria o suficiente para ele ter retornado. Assim eu voltei para a casa dele.

Infelizmente Craig ainda não tinha acabado de falar com o Dragão.

- Sente-se. Fique à vontade. Pode não ser muita coisa, mas eu vou fazer companhia para você. – Disse Marcelle. Ela estava sentada em sua cadeira de rodas, ao lado do sofá, na sala. Me aproximei e sentei no sofá, conforme recomendado.

- Você foi trabalhar?

- Er... Mais ou menos.

- Você é colega de trabalho do Craig né? Ele nunca fala sobre o trabalho dele... Como é lá?

- Er...

(E nem deveria, Craig)

- Ele disse que ganhou os músculos dele por causa de tanto carregar as caixas.

Carregar caixas? Essa foi a mentira que você inventou? Nenhum carregador de caixas trabalha tão pouco durante a semana, Craig...

- É... Deve ser.

Marcelle tocou nos meus braços de forma inconveniente.

- Mas você não ganhou nenhum músculo... Quantos anos você tem? Parece tão jovem para já estar trabalhando.

(Por favor, volte para casa, Craig.)

- Eu também. Nunca ganhei músculos. Eu sou filha do meu pai... Ele era um empresário. Daí eu ficava em casa.

(Óbvio que você é filha do seu pai, Marcelle...)

- Ei. Tive uma ideia. Vamos disputar uma queda de braço?

"Só espero que eu não use a indarra por engano" pensei. "Deixe-me ver... Se uma pessoa do meu físico disputasse com ela, eu deveria ganhar ou perder? Como vou saber"?

Peguei seu braço e ela contou até três. Acabei decidindo por deixar ela ganhar porque parecia o certo a fazer. Mas ela colocou força demais e seu corpo quase caiu da cadeira, no que ela soltou um gritinho.

- Calma. Deixe que eu te coloco de volta.

- Ah! Me desculpe. Hahaha! Quase caí. – Ela estava toda em risos. Imaginei se eu tinha uma desculpa repentina para sair e voltar mais tarde.

Mas não foi preciso. A porta da frente se abriu de súbito, no que Craig entrou molhado da garoa.

- Esqueceu alguma coisa, brutamontes? – Perguntei. Ele estava sem o casaco que ele tinha levado.

- Amanhã vou voltar lá. E vejo que você ainda está aí. Vocês duas comeram alguma coisa?

- Eu ia preparar alguma coisa para ela... – Respondeu Marcelle.

(Não, Marcelle. Não precisamos de mais desastres).

- Está tarde. Deixe que eu peço alguma coisa. O que vocês querem?

- Qualquer coisa. – Dei de ombros – E aí? Como foi lá?

Craig me olhou gelidamente. Não se perguntava sobre aquelas coisas na frente de Marcelle.

- Mesma coisa de sempre... – Não existia "mesma coisa de sempre" quando se tratava da nossa linha de trabalho. Eu teria que esperar até Marcelle resolver voltar para o quarto para que Craig pudesse responder de fato. E aquilo era chato... Chato igual a uma panqueca.

Eram quase onze horas da noite quando tínhamos jantado uns pedaços de frango oleosos que Craig tinha pedido e depois que Marcelle afinal pôs-se a dormir. Irônico que foi Craig quem repetiu a minha pergunta, desta vez direcionando-a para mim:

- E então? Como foi lá?

- Hum... Apareceu um casal de policiais do DCAE. Eles estavam fazendo uma segunda perícia por algum motivo.

- Segunda perícia? Como você sabe?

- Porque se já sabemos da notícia é porque já teve a primeira perícia, Craig...

- Ela poderia ter sido feita pela polícia civil... E só depois passaram o caso para o DCAE, que estava analisando agora.

Poderia... Mas eu tinha evidências que não foi assim que aconteceu.

Contei-lhe sobre a pegada no telhado, e também sobre como concluí por fatos óbvios que o ET tinha largado o convite nas mãos da polícia de propósito.

- Sumarizando, agora temos duas possibilidades: um; o alien voltou no dia da primeira perícia e abandonou o convite de propósito, o que nos diz que ele está trabalhando "para" um líder do submundo com uma certeza de uns sessenta por cento, e nos diz também que ele está trabalhando "contra" um líder do submundo com uma certeza de cem por cento. E dois; ele não conseguiu fugir do recinto de uma noite para a outra e/ou não lembrou de tirar o convite do bolso e perdeu, o que nos diz que ele é um estabanado.

- Julgando pela habilidade do ET relatada pelos informantes... Só pode ser a primeira opção.

Tirei o celular do bolso e de modo automático abri o aplicativo do Cinder Clash.

- Que tal uma terceira opção? Esses dois policiais sentiram sim a sua presença e fingiram que não, aliás sentiram antes de você, você que não os notou. Deixaram uma pegada no telhado, então voltaram correndo e esperaram que você subisse no telhado para só depois se revelarem. Assim que o fizeram, entraram na casa da srta. Johnson e esperaram você ir embora para que concluísse que a pista foi derrubada pelo alien de propósito.

Assoviei de leve.

- Parece muito complicado. Eles não poderiam ter certeza que eu concluiria algo tão complicado a partir de uma sequência de ações tão simples. A maioria das pessoas nem saberia identificar qual marca no telhado era de quem. Um ser humano nem notaria que sequer existia uma marca no telhado! Eles têm o QI igual à temperatura ambiente.

Craig balançou um dedo na minha direção.

- Mas ainda assim é uma terceira possibilidade. Nunca podemos ser confiantes demais, Bubble. Certamente teriam feito isso se soubessem com quem estão lidando.

- Se a polícia soubesse que está lidando com Bubble Tots teriam enviado o FBI, Craig.

- Convencida...

Craig apenas detestava admitir que eu tinha encontrado uma pista interessante a partir de tão pouca informação. Bem... "Eu" estava orgulhosa do meu trabalho. É suficiente para mim.

- Enfim... – Disse eu me levantando em um gesto de despedida – Só vamos ficar sabendo de tudo com certeza amanhã, assim...

- Amanhã? Por quê?

- Ué? O Dragão não falou para você elaborar um jeito de por as mãos no convite?

- Não! Ele mencionou o acontecido. Mas ele quer que eu cuide do negócio com Spencer. A polícia não pode suspeitar de nada. E Spencer é famoso e vem de outra cidade.

- Uai, quem vai cuidar do ET e do papel? Eu? O Sub? Eu não quero trabalhar com o Sub-Snow.

- Sub-Zero, Bubble.

- Isso. Isso.

Que codinome bobo. Em geral após muito tempo em anonimato no submundo acabávamos ganhando apelidos, mas aqueles recém-chegados em geral inventavam o seu próprio. O Sub me disse que o dele veio de um joguinho, porque tinha um personagem que tinha um poder parecido com a finesse dele. O jogo é um tal de fatal qualquer coisa. Não conheço muito sobre jogos. O único jogo que eu jogo é o Cinder Clash.

Se bem que não posso dizer muito. Meu codinome é Bubble...

- Inesperadamente, o Dragão disse que não quer ninguém atrás do convite. Na verdade ele quer que você me ajude na transação do Spencer.

- Que sem graça... Só porque eu queria perseguir uns extraterrestres. Todo esse empenho foi para nada.

Amanhã seria um dia fazendo sala para um político gordo e arrogante, só porque ele ia comprar bastante. O Dragão era bastante esquisito. Desapontada, desliguei meu jogo. Respirei fundo.

- E o Dragão? Como foi falar com ele?

- Ele só disse isso... – Respondeu Craig ao puxar a cadeira da mesa para sentar-se.

- Digo... Como foi ir lá e falar com ele? Estava daquele jeito?

- Sim. Ainda do mesmo jeito. Não me deixou ver o rosto dele o tempo todo.

Soltei um riso irônico. O Dragão é mesmo um caso à parte. De todos seus subordinados o único com quem ele fala em pessoa é o Craig. Eu mesma nunca vi a cara dele. E quando digo isso, quero dizer que nunca fiquei na presença dele. Porque até mesmo Craig que fala com ele em pessoal nunca viu a cara dele, já que ele não mostra o rosto.

- Hoje ele estava de costas e com a luz apagada.

- Não usou uma máscara estranha?

- Hoje não.

Que coisa. Parece um vilão aleatório tirado de um desenho animado ou algo assim.

- Ele tem medo que você leia a mente dele. É isso.

- É? Acho que não. Mesmo sem ver as expressões do rosto posso captar uma nuance ou outra no tom de voz. Se ele soubesse como é minha finesse e quisesse evitar de eu usá-la durante os encontros chamaria você no meu lugar quando quisesse comunicar alguma coisa, assim acho que ele só não quer ser visto mesmo.

- Sendo assim, se um de nós for um agente duplo ou algo parecido, ele mantém sua identidade escondida, não é mesmo?

Craig levantou e pegou água da geladeira. Já estava tarde, por isso me levantei do sofá e, me espreguiçando, finalmente me despedi:

- Enfim... Amanhã é um novo dia, assim... Vou indo.

- Isso. Melhor dormir para se transportar para o mundo do amanhã rapidamente. Quer carona até a sua casa?

- Não precisa. Eu vou andando.

Afinal, não é como se a noite fosse perigosa para gente como nós.

Craig abriu a porta e a noite bateu gélida contra o meu corpo. Embora o caso do ET fosse interessante o Dragão resolveu me colocar em um serviço medíocre ao invés de me deixar prosseguir na pista. O que eu ia fazer? Nem sempre tudo saía como eu queria...

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