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Cicatrizes expostas

A sala podia muito bem estar tremendo por culpa de toda a gritaria e discussão de sua família.

Aquilo doia seus ouvidos porque a sua cabeça de apenas oito anos simplesmente não conseguia acompanhar toda a comoção. Mas havia uma certeza, ele era o assunto principal.

— Isso não pode continuar, Ahaya. Você sabe que não podemos continuar o mantendo aqui. — Seu pai, o mais novo chefe da família grita.

— Eu sei o que precisa ser feito, Chester. Mas... não sente nem um pouco de culpa? — Ela estreita os olhos, parecia tão irritada. Ryler estava ficando assustado.

— Mamãe?

— Eu não tenho culpa se você o gerou de modo errado! Se sabe o que deve fazer, apenas faça de uma vez. — Seu pai sai do cômodo, sem olhar para trás.

Os olhos de sua mãe estavam vidrados e vermelhos como rosas feridas do campo. Ela estava irritada de novo; Ryler pensou ser de seu pai, até ela puxar seu braço com brutalidade e arrastá-lo porta a fora.

Ele não gostava de sair, às pessoas o encarava sempre de modo estranho; o evitava ou faziam sons reprovadores.

Mas era começo de manhã e muitos ainda deviam estar em suas camas. Isso era bom, fazia tempo que não caminhava sem a presença daqueles olhares que o faziam manter a visão somente nas pedrinhas do caminho. Mas porque o aperto de sua mãe parecia tão forte?

— Mamãe? Está doen...

— Quieto! — ela diz, rispida. Não encara, continua mantendo o olhar distante, enquanto começa uma corrida desenfreada passando pelo vilarejo, pelo poço, pelo rio que desce até outros territorios e...

— Mamãe, se eu fiz algo de errado...

— Eu mandei ficar quieto, menino! — esbraveja, ainda sem encará-lo. Por que não encara? Por que está gritando tanto?

Depois de minutos, seus passos diminuem e por fim... cessam. Em frente em um daqueles muitos postos espalhados pelo território Athlas; o garoto nunca os esquecia pois os via sempre com feições fechadas, sempre de mau-humor.

Um deles se aproximava, enquanto o olhava da ponta dos cabelos à sola do pé. Quando sua mãe o virou com uma força que ele não possuía; aqueles olhos em formato de filetes — que ele tambem não adquirira — encarava seu rosto, cada pedacinho dele. Um abraço. Ela o agarrou e o abraçou tão forte que pensou sentir uma costela quebrar.

— Mãe... o que está acontecendo? — Ryler pergunta. A esta altura, já não consegue segurar o rio de lagrimas que se rompe ao perceber o que estava acontecendo. — Mamãe, o que eu fiz?

Ele chora e grita a mesma frase várias vezes cada vez mais alto; porque sabia...

Sabia que ela o estava deixando.

Ele podia pedir deculpa, seja o que fosse, tentaria melhorar e ser um bom garoto.

Ele gritou e gritou até que o nó na garganta o impossibilita de fazê-lo, até que sua visão se tornou turva como rios revoltos e sua cabeça tão leve quanto as folhas sopradas ao vento.

Quando despertou, sua mãe não estava mais no mesmo lugar. E Ryler tambem não.

(Sete anos depois...)

O sol ainda não tinha nascido quando Ryler levantou e se banhou com a água que havia trazido do riacho nas redondezas, o mais rápido que pôde devido ao frio congelante do inverno.

As ilhas Rerny eram impiedosas com aqueles que se aventuravam por seu solo, deixando as feras invernas, aquelas que respiravam o ar gélido com satisfação, soltas pela mata à procura de presas.

Já tinha se acostumado à rotina a tanto tempo que já a fazia como memória muscular.

Amarrando os laços do seu calçado, percebeu que um pequeno rasgo se formava logo abaixo do seu dedo do pé direito ao pressionar o membro no chão terroso; seus sapatos já estavam ficando surrados novamente, assim como as calças e camisetas que continuavam a diminuir, porém, isso não era importante.

Voltando para a tenda improvisada, Ryler vê que Gallahan também já não estava na cama de madeira e panos velhos no chão, o que não era nenhuma novidade já que ele costumava acordar assim que ouvia qualquer ruído. Ele apareceria em questão de minutos. O garoto era calado e observador, seus olhos estavam sempre atentos a tudo e qualquer coisa, o que era bom considerando que as pessoas ali tendiam a esmurrar e agredir caso achassem que uma resposta ruim saiu de sua boca. Sua cabeça estava sempre baixa e as respostas se resumiam a sim e não.

Já Ikleas, permanecia atrelado aos lençóis, não importava quantos dias ele tivesse o alertado com o horário; Ryler lutou muito para convencer o Oficial a deixá-los ficar separados dos soldados em troca de receber mais trabalho, mas o outro garoto não parecia se importar quando o assunto era seu sono.

Ryler foi o primeiro a ser enviado — com apenas oito anos — para servir aos soldados, nos conflitos das colinas Rerny e lutar por sua própria vida.

Ao completar dez anos, foi decidido que era crescido o suficiente para carregar uma espada e lutar por um povo que lhe atirava desprezo como pedras em um rio.

Ele sempre seria grato por tal decisão, já que foi assim que conheceu Gallahan e Ikleas — dois garotos que em suas personalidades totalmentes diferentes, possuíam um problema em comum com Ryler: nenhum deles portavam as marcantes características draconianas, manifestadas no sétimo ano do nascimento dos Athalianos.

Por conta disso foram desprezados e maltratados por seus familiares e povo, visto como inferiores, a vergonha.

As anomalias e deturpação de um clã sublime.

Mas ao se encontrarem, decidirem lutar uns pelos outros, sentiram algo se encaixando pouco a pouco. Os três juntos parecia certo. O natural.

— Vamos lá, Ik. É hora de levantar. — Ele chama, puxando os lençóis e recebendo um resmungo em troca — Quanto mais cedo começarmos, mais cedo terminamos.

Ikleas tenta puxar as cobertas para si novamente, levando-as até o alto dos bagunçados cabelos tão negros quanto o seus, mas Ryler é mais rápido, tirando-as com força, fazendo-o cair no chão de bruços.

— Acordar assim não é muito encorajador — resmungou, levantando enquanto flexiona o ombro dolorido.

— Há jeitos piores. — Ryler comenta, em tom casual enquanto dar de ombros, escondendo bem fundo na memória os métodos que foram usados com ele.

Mas nem sempre era fácil...

— Acha que é um rei para dormir até tarde? Levante! — diz o soldado, jogando um balde com um cheiro semelhante a urina de cabra, fazendo-o pular da cama, caindo no chão. — Vamos, seu monte de merda! Vá trabalhar.

Ainda caído no chão, o odor fétido subia a suas narinas, lhe dando ânsia de vômito. Aquele cheiro estava por seu rosto, seus braços, todo o seu corpo, e...

— Senhor, é madrugada — Ryler pede, falando o mais baixo que pode enquanto os outros presentes dentro do alojamento riem da situação — Por favor, me deixe...

— O que? Estamos assustando o pequeno fedelho? — Aqueles homem de olhos dragonianos o encara, chegando bem próximo do seu rosto. Os outros ali, deitados em suas camas ou escorados na parede se deliciando com o show, começam a reclamar do cheiro impregnado a sua pele, enquanto torcem o nariz.

Aqueles que não cometiam as atrocidades, os de niveis elevados, simplesmente observavam uma única vez antes de virar as costas como se não fosse seus problemas para tomar uma atitude.

— Viu, Ryler? — O homem estalou a língua em reprovação — Acho que não tem como você dormir aqui hoje... Já sei, vou te ajudar. Está fedendo, não é? Ou será que nem isso você consegue sentir normalmente?

O garoto não teve coragem de responder, e mesmo com as mãos tremendo, manteve-as no colo enquanto permanecia de joelhos no chão.

Ryler foi puxado para cima, e com o chiado de tecido, rasgaram sua camisa em frangalhos; ele nem mesmo podia gritar para que alguém o ajudasse enquanto sua calça era tirada de seu corpo, deixando-o apenas com a roupa de baixo.

Ele foi jogado para fora do alojamento, sem trajes, no meio da madrugada invernal e vento cortante das colinas Rerny.

Observando a porta fechada, ele levantou do chão e caminhou até os estábulos, lutando passo a passo contra a tremedeira nas pernas e nos ossos nu que o ameaçavam fazê-lo se curvar ali mesmo, contra os pensamentos ferozes que o encurralaram onde não havia luz.

Suas pequenas e instáveis mãos alcançaram o trinco da porta de madeira entalhada do estábulo, e ele se viu caminhando em direção ao aglomerado de ovelhas, deitadas ao feno.

Os pequenos animais o encararam com o que ele podia chamar de compaixão ao o deixarem se aproximar de seu pelo quente e deitar ali, onde ele não era nem machucado nem amado; apenas ignorado.

Ryler tinha somente nove anos.

O garoto que aprendera a amar como um irmão apenas suspirou em derrota. Ikleas não irradiava ódio pela situação em que viviam, às vezes parecia até mesmo conformado. Ryler não gostava disso, desse modo dele pensar que merecia alguma punição por ser assim.

— Sabe... eu sonhei com ela novamente. — Ele para, ouvindo-o. Já sabia exatamente de quem ele falava.

— E então?

— Chorando... de novo. — Seu tom diminui.

Aquela voz; a voz que não era tão clara em seus ouvidos mas era possível ouvir seu choro frequente tão bem quanto se fosse seu. — Ry... acha que ela está bem?

Primeiramente Ryler achou ser uma ilusão de sua cabeça confusa, mas, depois de comentar com os outros dois, perceberam que ou era algo esquisito e real ou tinham ficado completamente loucos.

A garota que os chamava em sonho vivia em prantos, o que apertava seu coração; doía. Por mais que tentassem entender, nunca conseguiram.

— Eu espero que sim — murmurou.

— O Oficial está nos procurando. — Ryler e Ikleas se sobressaltam ao notar o garoto de cabelos prateados na altura dos ombros e olhos azuis como dois lagos profundos — Gallahan — em pé, ao lado da porta, já totalmente pronto.

Sua afinidade ao silêncio, ao que parecia, havia passado para todo o seu corpo já que dificilmente percebiam quando ele chegava ou até mesmo saia dos lugares.

— Foi até o acampamento principal?

— Um dos soldados estava perambulando pelas proximidades e deram o aviso. Precisamos ir. — os outros dois acenaram em concordância.

Todos eles sabiam que, no fundo, nunca se acostumariam com isso.