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Capítulo 1 - O Presente Passado

Envolto do vazio cósmico, enxergava incontáveis estrelas e diante de si a maior e mais intensa delas. Mas não sentia-se nem com frio, nem com calor. Na verdade, ele não sentia nada.

Estranho, achou ele, afinal, sabia que elas eram massas incandescentes de energia pura.

Ora olhava para suas mãos, agora já velhas e enrugadas; ora para estrela a sua frente. Ele batalhou a vida inteira para chegar a este momento.

Tudo pelo bem da existência.

Enquanto eles dormiam, Henry perdia sua pele, sua vida, seus companheiros lutando contra demônios, criaturas horrendas e entidades místicas que buscavam destruir seu mundo de alguma forma.

Quando ele ascendeu, após dez anos como Grão Arquimago no mundo de Feria, lhe foi dita a verdade: havia uma grande guerra, tão grande e sangrenta que já se estendia por milhões de anos.

Ele deveria escolher um lado.

Os porta-vozes dos Deuses, seus apóstolos estenderam-lhe a mão.

— Se você deseja salvar os seus, lute ao nosso lado.

E assim ele cedeu seu poder e obteve muito mais. E também perdeu ainda mais.

Se não fosse seu único amor, talvez tivesse vivido inteiramente pela grande causa; pela salvação da humanidade e dos inocentes. Mas ele também perdeu isso.

Quantos anos fazem? Não interessava.

Seus velhos e cansados braços ainda se recordavam do peso do corpo de sua amada, seus ombros do calor das asas que o protegeram naquele fatídico momento, seu nariz do perfume de jasmim que exalava seu cabelo.

— Amarantha, eu finalmente cheguei até aqui. — sussurrou quase sem força, quietinho, como se estivesse prestes a desaparecer de tamanha fraqueza.

Seus cabelos agora brancos e esvoaçantes denunciavam sua idade. Qualquer um que o enxergasse diria que era um ancião imortal. Ou um fantasma. Ou os dois.

Henry Cal'Amor.

Embora tenha lutado por uma eternidade, não era lembrado.

Por que tamanha dedicação? Por que tamanho altruísmo por alguém que jamais conhecerá seu nome?

A razão original para ele havia sido esquecida há muito. Lutava porque Amarantha havia visto nele a única chance dos inocentes.

— Meu amor, só você pode parar essa loucura. Vai ser mais difícil daqui pra frente, mas confie em você e em todo amor que te dei. Quando a hora mais difícil chegar, eu estarei com você e um dia poderemos viver um sonho de paz, poderemos moldar o futuro. — sussurrou antes de dar-lhe o último beijo.

Ele levou suas mãos ao peito. Decidido.

Estendeu-as e tocou a estrela.

Naquele momento, ela diminui tanto que se transformou em uma esfera do tamanho de uma bola de canhão.

Um fluxo ininterrupto de informação invadiu sua mente e feixes de luz escapavam por todos os orifícios de seu corpo.

Ele sentia seu corpo queimar por dentro: seus órgãos, seus ossos, seu sangue.

Era como se alguém estivesse tentando encher a força um recipiente com mais do que sua capacidade aguentava.

Rachaduras começaram a aparecer em seu corpo e fragmentos dele se desintegravam lentamente; viravam pó.

Neste momento, o vazio cósmico se acendeu e milhares de silhuetas colossais surgiram ao seu redor.

Ele não podia ver seus traços, mas suas feições eram claras: escárnio.

Sim, eram os Deuses! Sim, ele havia sido traído!

Se sentindo uma presa encurralada por predadores, sentiu pela segunda vez uma raiva imparável, que avançava na direção da sua garganta como um tsunami.

Ele gritou. De dor e de frustração.

Tudo finalmente fazia sentido. Os registros de Giseph deram-no o conhecimento que precisava.

Deuses eram criados pelos registros mas não podiam tocá-lo após nascerem. No entanto, o assunto era outro se devorassem uma alma que possuísse ligação com os registros.

E era exatamente isso que estava acontecendo: seu corpo físico era incapaz de lidar com todo poder dos registros, fazendo com que sua alma transbordasse. Era um pedaço de carne jogado no meio de uma matilha faminta.

Mas, inesperadamente, Amarantha apareceu. Entretanto, sua aparência não era a mesma: ela estava em forma cósmica, como todos os outros Deuses.

Como uma figura angelical gigantesca, ela envolveu seu corpo com suas asas.

Henry podia ouvir o ataque dos outros Deuses à sua amada. Eles pareciam centenas de milhares de fogos de artifício.

O rosto de Amarantha se torcia de dor. Ao mesmo tempo, ela tentava disfarçar com um olhar carinhoso e zeloso.

— Meu amor, só você pode parar essa loucura. — disse ela.

De repente, runas brilhantes surgiram ao redor de Henry enquanto Amarantha sussurrava.

O tempo então parou e tudo ficou em silêncio.

— Amarantha! — gritou ele — Eu não vou suportar te perder outra vez! Por favor!

Mais runas apareceram. Mas, desta vez, eram diferentes, mais profundas, continham a essência do Deus que as invocava.

Este tipo de runa representava a essência do poder de um Deus e revelava sua autoridade: sigilo.

E o sigilo de Amarantha se revelava diante de seus olhos: tempo.

— O corvo que devorou o tempo! Você é o corvo!

Ela sorriu e esta fora a última coisa que Henry se lembrava antes de ser jogado em um espaço vazio.

Neste lugar, suas lembranças tomavam forma. Ele progressivamente viajava mais e mais para suas memórias do passado. Muitas delas já esquecidas.

Faces, sexos, brigas, intrigas, glórias e fracassos.

Ele assistia sua vida do presente ao passado. Ele viu tudo, até mesmo o momento em que aceitou ajudar os Deuses. Seus dentes rangeram de ódio.

Como foi tolo, pensou.

Ele viu seu fluxo de memórias ir da traição dos Deuses ao seu nascimento incontáveis vezes. Ele sabia cada frase entoada por cada ser que cruzou seu caminho; se lembrava de cada acontecimento até o fatídico dia de sua derrota. Viu tudo isso tantas vezes que o vazio tornou-se uma tormenta.

O lar dos demônios não é tão tortuoso quanto este lugar.

Várias e várias vezes ele viu sua amada morrer. Assim como seus companheiros.

Começou a pensar no que faria diferente.

E então a tormenta virou uma academia, um ensaio, uma simulação.

Ele calculou tantas possibilidades quanto conseguiu afim de alcançar um futuro onde exterminava os Deuses de uma vez por todas.

E em nenhuma obteve sucesso.

Henry, aquele que fora traído pelos Deuses e esquecido pelo tempo fechou seus olhos em derrota. Aceitando que passaria toda eternidade condenado a sonhar um futuro impossível.

Ele sentia o fluxo das suas memórias chegando próximo da época em que tinha 18 anos de idade, no exato momento em que acreditou que poderia se tornar um barão ao se alistar pelo reino Lalon para desbravar as terras selvagens de Aranthes.

No entanto, desta vez algo diferente aconteceu.

Enquanto preso no fluxo de memórias, seu corpo era desprovido de sensações e toda voz soava como um pensamento. Mas dessa vez, as vozes que ouvia estavam entrando pelos seus ouvidos, reverberavam em seus tímpanos.

De olhos fechados, ele sentia a luz tentar trespassar suas pálpebras, assim como calor que provavelmente vinha de tochas.

Seu corpo que até instantes flutuava, sentiu depois de muito tempo a força da gravidade.

E ele, que pensava ter sido esquecido, finalmente abriu seus olhos.

Não era mais um espectador da sua própria história. Ele estava vivo outra vez.

— Eu voltei... — murmurou ele.

Henry olhou para suas mãos.

Elas eram jovens e fortes. Com elas, passou a mão sobre seu rosto; a ponta de seus dedos podia sentir a ausência das rugas e a textura macia de sua pele.

Ele olhou a sua volta.

Era um grande salão com uma plataforma ao fundo, onde se enxergava uma mesa robusta de madeira coberta por mapas, cartas e pergaminhos. Detrás dela, uma mulher velha, de pele negra e cabelo branco, muito alta e forte como um bárbaro.

De cada lado da mesa um soldado portando lanças tão longas que poderiam perfurar qualquer infeliz sem amor à vida que ousasse subir a plataforma para atacá-la.

Alinhados e em formação como se fossem parte de um exército, mercenários, brutos cheirando a violência, burgueses sedentos por oportunidades, mercadores e assassinos estavam atentos à qualquer palavra que por ventura saísse da boca da mulher.

— Peço a atenção de todos! Eu me chamo Thalia Lamalle! — disse enquanto levantava-se de seu assento e cumprimentava todos com uma saudação nobre — Sejam bem-vindos à minha mansão.

Ela abriu um sorriso radiante.

— Eu agradeço a presença de vocês em minha casa. Vocês não são tantos quanto eu esperava, mas estou certa de que se tratam dos melhores entre os melhores! E isto, meus caros, é o que Lalon precisa!

Ela deixou o trono e parou entre seus dois guardas. Seu olhar era como o de um predador que estuda sua presa. Ela emitia uma aura opressiva, violenta, mas controlada.

Thalia Lamalle foi a única mulher da Casa Lamalle e a primeira da história de Lalon a tornar-se uma dos doze mestres da espada do rei Joseph. Você podia não gostar dela, mas não havia como negar seu poder.

Além de ser um monstro com um sabre em punho, era também inteligente.

Repleta de inimigos - dentro e fora do reino - era difícil ela se mostrar a alguém que não fosse de sua confiança.

Mas hoje era um dia incomum: o próprio rei havia dado a ordem.

Sua localização não era segredo. Não agora.

Henry baixou o olhar. Sua velha companheira e espada de seu finado pai descansava em sua cintura. Um sentimento de nostalgia tomou seu coração.

A esta altura, ele sequer havia tocado no arcano e despertado suas habilidades de mago.

Sua mão - sem calosidades e ainda macia - passou pela empunhadura. Ele agarrou-a com força e começou a contar até dez.

Quando acabou, o homem ao seu lado retirou de dentro da sua jaqueta uma varinha enfeitiçada.

— Vida longa ao rei Vonner Mitemor... — murmurou Henry.

— Vida longa ao rei Vonner Mit-... — gritou o homem antes de ter sua cabeça decepada pela espada de Henry.

O silêncio do salão foi interrompido pelo grito de Thalia: — Assassinos! Guardas!

Ninguém atendeu o chamado da mulher.

Enquanto isso, a multidão tentava fugir, mas as portas estava trancadas do lado de fora.

Homens surgiram das sombras e começaram a matar todos do salão, um por um. Suas habilidades eram de primeira, Henry sabia que se tratavam dos assassinos dos Portões do Céu, um grupo a serviço do rei Betheas: Vonner Mitemor.

Aliás, uma lembrança um bocado salgada para ele, que teve que se rastejar até a saída, com a vida escapando por entre seus dedos enquanto suas costas ostentavam um punhado de flechas.

Ao lado do trono de Thalia, escorado sobre a braçadeira, seu fiel sabre "Serrador" descansava. Ela imediatamente pulou sobre a mesa, pouco importando-se com os papéis que ali estavam e tratou de brandir sua arma.

O sabre emitia uma aura um bocado sombria e em seu aço Henry enxergava runas.

A arma era dentada e possuía um encantamento que acentuava o sangramento e dificultava a cura.

No entanto, mal sabia ela que, graças a Henry, não precisaria alimentar tamanha aberração de aço.

— Perto de tudo que eu já enfrentei, vocês se movimentam como macacos... — disse Henry, apoiando sua espada em seu ombro e desdenhando dos inimigos.

Com seu corpo jovem e constituição física avantajada, reproduzir um milésimo das artes marciais que aprendera ao longo de toda sua vida não seria problema.

Obviamente que a luta não poderia se estender muito, mas Henry estava confiante no seu eu do passado.

Ele sorriu. Mesmo diante de doze assassinos, ele estava sorrindo.

Na verdade, era quase como um deboche.

Sem paciência os doze avançaram sobre o pobre coitado apenas para descobrirem que o jovem rapaz não estava blefando.

Ele se movimentava como se estivesse dançando e intercalava golpes de palma com cotoveladas, joelhadas, golpes com a bainha e golpes com a espada.

Thalia não enxergava um garoto, mas sim uma espécie de monge de batalha misturado com um duelista. O garoto era feroz como ela na sua adolescência, mas calculista. Ele parecia sempre saber onde pisar em seguida.

E assim, em poucos minutos, Henry era o único sobrevivente entre os homens que vieram à mansão hoje. Ao seu redor, os cadáveres dos assassinos, dispostos como um ritual sangrento.

Henry sacudiu sua espada, espirrando o sangue para longe e usou as roupas de um defunto qualquer para terminar de limpá-la. Em seguida, embainhou-a e caminhou até a nobre.

— Alto lá! — gritaram os soldados, temerosos de que sua razão fosse a mesma dos assassinos.

— Pelos Deuses! Como vocês podem apontar suas armas para quem salvou suas vidas? — Thalia colocou as mãos sobre os ombros de seus guardas e passou por eles, indo em direção ao rapaz.

Ela olhou a terrível cena que se desenrolara em seu salão e sacudiu a cabeça.

— Só sobrou um... E depois disso tudo, vou ter mais dor de cabeça do que se tivesse morrido! Hahaha! — Thalia chutou um dos assassinos e cuspiu sobre ele — Qual é seu nome rapaz?

— Senhora Thalia... — ele se ajoelhou e baixou a cabeça — Eu me chamo Henry Cal'Amor e...

Uma dor lancinante recaiu sobre sua cabeça. Henry começou a receber um oceano de informação de uma vez só.

Além disso, sua cabeça parecia possuir uma orquestra dentro dela, era uma cacofonia de sons estridentes aliados a uma miríade de caracteres, palavras e runas distintas.

Quando sua cabeça obteve silêncio novamente, sentiu seu corpo pesar e sua visão enegrecer.

No entanto, enquanto desmaiava, pode ver algo peculiar.

Havia uma tela etérea diante de seus olhos, azulada. E nela, letras brancas dizendo o seguinte:

[Henry Cal'Amor adquiriu uma habilidade.]

[Especialização em Espadas - Nível 1 - 0%]