8 O Deserto

Não sei dizer exatamente o que eles fizeram naquele dia em que Galantyr sentiu a chave, mas eu tenho minhas suspeitas. Galantyr era um tubarão, e algo havia caído nas águas em que ele habitava. Uma ondulação irresistível seguida por uma linha de sangue fresco o obrigava a se aproximar e descobrir mais. Se era uma presa de verdade ou uma isca, só ficaríamos sabendo tarde demais.

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Decidi seguir o conselho de Galantyr, e fechamos o Café por volta das quatro da manhã. O demônio passou bem longe do seu antigo círculo, escolhendo uma mesa vazia em um canto. Não havia voltado à sua forma original.

Me ofereci para acompanhar Tati até sua casa (era o mínimo que eu podia fazer), mas ela gentilmente declinou, apontando para os curativos na minha perna.

O desconforto na perna e o nervosismo pelo dia seguinte dificultaram o meu sono, mas no fim o cansaço venceu. Acordei quase no final da tarde, bem depois de o despertador do celular ter desistido.

Tati já havia aberto o Café. Só tive tempo de pedir desculpas e colocar o avental antes de começar a anotar os primeiros pedidos da noite. Em meio à gritaria dos clientes (nenhum humano, até então), dei uma espiada na mesa que Gal ocupava na noite anterior. Sua cadeira estava inclinada para trás, os pés sobre a mesa, o arranjo de flores caído ao lado de suas botas. Sua cabeça pendia do encosto, e um fio de baba escorria do canto da boca.

— Pensei que vocês não dormiam!

Se ele levou um susto com a minha aproximação, fingiu bem. Seus olhos se abriram bem devagar, não mais do que uma fresta.

— Nós não precisamos dormir, mas nada me impede de tirar um cochilo pra recuperar as energias. Além do mais, é diferente quando eu estou nessa forma.

Fiquei sem saber para onde ir, muito menos o que dizer. Galantyr não parecia em nada o tipo de demônio que puxa assunto. Nesse sentido e em tantos outros, ele era muito diferente do resto da freguesia demoníaca...

— Ele já chegou?

— Ele quem? — perguntei, só para me sentir um pouco mais besta.

Só havia um "ele" nessa história. Ele fingia tranquilidade, mas a iminente chegada de Davi o deixava em alerta.

Encontrei forças para sair da frente dele e continuar o atendimento, fingindo que aquela conversa nunca tinha acontecido. Havia trabalho suficiente para manter duas Lívias ocupadas, principalmente quando os humanos começaram a chegar.

Davi chegou quando o movimento já havia começado a diminuir. Passou reto por mim quando fui recebê-lo, e escolheu uma mesa o mais distante possível de Galantyr. Tirei meu avental e o entreguei para Pólux, que já estava esperando o seu turno começar.

— Ô, Lili — disse ele, no tom de voz debochado que parecia ser a única coisa que aquele bico era capaz de reproduzir — Cê não acha que já tá na hora de mandar fazer um desses pra mim?

Dei um sorriso forçado e concordei. Talvez o poder demoníaco de Pólux fosse a capacidade de me irritar com qualquer coisa que ele dissesse. Mas eu precisava ser legal com ele, depois de toda a ajuda.

A tensão começava a se formar no ar. Olhei para Galantyr, que fez um sinal com a cabeça para que eu chegasse perto. Dei uma olhada para Davi, que também parecia aguardar minha aproximação. Nenhum dos dois levantou.

Eu não ia fazer parte daquele joguinho. Escolhi uma mesa bem no meio do campo de batalha e me sentei, deixando que viessem até mim. Fiz questão de não olhar ou fazer nenhum gesto. Os dois foram se aproximando aos poucos, parando no meio do caminho para se certificar de que não havia perigo, como pequenos animais silvestres. Sentaram-se em lados opostos da mesa, comigo no meio. Tentei começar a conversa, mas eles só tinham olhos um para o outro.

— Você me pegou de guarda baixa lá na mansão — Davi quase choramingou.

— E você só pode culpar a si mesmo por isso.

— Não vai acontecer de novo.

— Não faria a mínima diferença pra mim.

— Tá, já chega, vocês dois! — intervi — Davi, você encontrou o que estava procurando? Gal me disse...

Senti o olhar furioso de Galantyr cair sobre mim. Davi não deixou passar. Enquanto eu falava, pude ver seus lábios formando um silencioso "Gal" enquanto ele balançava a cabeça de forma debochada na direção do demônio. Como a única pessoa adulta presente naquela reunião, ignorei os dois e segui falando.

— Galantyr me disse que você encontrou a ferramenta que vai nos permitir fechar o portal dos demônios, ou coisa assim. Você tem ela aí?

Davi levou a mão ao bolso, e eu instintivamente fiz uma careta. O gesto por si só me lembrava quem ele era. Mas dessa vez não havia nenhum punhal, mas sim um embrulho de panos que ele abriu sobre a mesa. Dentro havia uma chave feita de ferro escuro. Não tinha nenhum tipo de ornamento, mas era grande e parecia pesada, como aquelas chaves de celas de prisão antigas que a gente vê nos filmes.

— Com essa chave, eu consigo selar o portal. Você só precisa me ajudar enquanto o seu demônio nos protege de qualquer possível hostilidade. Vai ser bem simples, qualquer um poderia fazer.

Eu não gostava do tom de voz dele, nem do jeito que se referia a mim. Se ele realmente precisava de ajuda, falar daquele jeito não era uma boa forma de conseguir. Mas havia milhares de pessoas naquela cidade que teriam suas vidas mudadas completamente se eu decidisse não ajudar aquele idiota. Não havia uma escolha que eu pudesse fazer nesse caso, não realmente.

— Certo, então eu vou ser o seu "qualquer um". Quando nós vamos fazer isso?

— Meu motorista está nos esperando lá fora.

— Agora? — senti meu corpo amolecer subitamente.

— Sim, de preferência — ele disse, já no caminho entre nossa mesa e a porta.

Levantei e encontrei o olhar de Tati, que me deu um leve aceno de cabeça. "Vai na fé", aquele gesto me dizia. Já estava indo atrás dele, mas dei meia-volta quando percebi que estava esquecendo algo.

— Você também!

Galantyr revirou os olhos para mim antes de levantar da mesa e me seguir.

O banco de trás do carro era espaçoso o suficiente para que nós três pudéssemos sentar sem precisar se espremer. Davi foi no meio, para poder passar as direções ao motorista. O vai-e-vem de pessoas na calçada começou a diminuir conforme nos afastamos do centro.

Eu nunca tinha andado por aqueles lados, antes. Vim morar nessa cidade só depois de passar no vestibular, e nunca me aventurei a conhecer outros bairros. Ali quase não havia prédios, as casas eram pequenas, e os terrenos, grandes. Mesmo com a iluminação dos postes somada à luz que escapava pelas janelas das residências, uma pessoa que só conhecia a parte mais movimentada na cidade ainda se sentiria no escuro.

O motorista parou em frente à uma praça, e Davi indicou que era ali que deveríamos descer. Senti uma pontada de desespero quando percebi que éramos só nós três ali, e as luzes do carro de Davi já se tornavam pequenas no horizonte.

— Ali — Davi apontou para um portão com uma guarita abandonada do outro lado da rua.

Assim que atravessamos a praça, pude ver o contorno sombreado de uma chaminé enorme se erguendo do fundo do pátio abandonado. Galantyr empurrou o portão para nós passarmos.

Davi ia na frente, procurando algum tipo de sinal em meio aos pavilhões abandonados que nos cercavam. Quando eu fazia alguma pergunta, ele só apertava o passo. A cada passo em frente, eu precisava lutar contra a vontade de dar meia-volta e cair fora dali. Minha atenção estava completamente voltada a conter esse impulso e acompanhar o ritmo de Gal.

Quando já estávamos quase na base da chaminé, Davi parou.

— O portal está logo ali na frente, na parte interna daquele pavilhão. Galantyr, é melhor você fazer o seu lance enquanto eu e a Lívia repassamos o ritual.

— Repassar? Mas você não me passou nada, pra começo de conversa! — minha voz saiu fina como um guincho de morcego, o que pareceu divertir Davi um pouquinho.

— Eu serei o conjurador, e você será a minha ajudante. — ele fez questão de dizer isso em um tom desagradável — Eu digo as palavras e faço o feitiço, você segura a chave e me alcança ela quando eu mandar.

Um arrepio correu pelas minhas costas quando ouvi aquele som que lembrava um balão gigante cheio de gelatina estourando. Um tremelique na minha perna entregava a aproximação do demônio, com suas passadas de elefante.

— PRONTOS?

— Sim — Davi disse.

— Pera, porque o Gal mudou pra forma...

Minha voz desapareceu quando Galantyr investiu contra a porta selada que dava acesso à parte interna do pavilhão, transformando-as em pedaços de metal retorcido presos às dobradiças. Lá dentro era só escuridão, um poço de sombras que dançavam no ritmo das chamas que escapavam para fora de Galantyr.

Quando ele saiu para o lado de fora, trazendo a luz de suas chamas consigo, pude perceber um brilho fraco vindo lá do fundo da sala. Em meio à sujeira e ao maquinário abandonado, havia algo brilhante que pulsava.

Davi passou por mim em disparada, gritando: — Vem, Lívia! Não perde tempo!

O garoto se jogou em meio às trevas, sua silhueta cobrindo aquele brilho fraco. Antes que eu pudesse segui-lo, algo chamou minha atenção. Galantyr ainda estava parado do lado de fora, com o rosto erguido na direção da chaminé. Seu peito subia e descia em um ritmo controlado, os músculos estavam tensos. Peguei um movimento de canto de olho, e então eu vi o que ele estava encarando.

Por toda a extensão da chaminé, um monte de pontinhos vermelhos luminosos, que lembravam bastante aqueles lasers que os alunos levavam pra escola quando eu era criança. Por um instante eu fiquei hipnotizada pelo movimento das pequenas luzes, até o momento em que um fio de luz da lua conseguiu escapar por entre as nuvens do céu noturno, revelando as massas de escuridão que cobriam completamente aquela estrutura. Centenas de pares de olhos vermelhos estavam travados em Galantyr, e o demônio os encarava de volta.

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