1 De portas abertas

Algumas pessoas dizem que a melhor fonte de inspiração para um escritor é a experiência pessoal. Existem um monte de teorias que criticam os autores modernos por não "viverem" aquilo que escrevem.

Confesso que essa ideia de viver aventuras e escrever sobre isso sempre me encantou. Na verdade, ainda me encanta, de certa forma. Acho que poderia ter funcionado pra mim também, se as circunstâncias fossem diferentes. Afinal, eu nunca tive pretensão de ser uma escritora de terror. Mas penso que minhas experiências pessoais não poderiam se encaixar em outro gênero.

─────────────────────────────────────────────────────

Acho que eu já havia acordado com a ideia naquele dia, mesmo que não pudesse perceber na hora. Tomei um banho quente pra me acordar, escovei os dentes e, ao invés de abrir o notebook e procurar por mais oportunidades de emprego, saí pra tomar café fora de casa. Eram umas seis da tarde.

Me sentei com um copo de café quente na mão, mas nem cheguei a ligar a tela do computador que eu havia trazido e colocado na minha frente. As pessoas eram interessantes demais para que eu pudesse me concentrar em outra coisa. Ver aquele entra-e-sai de gente e imaginar suas histórias me fascinava, mas também me deixava um pouco desconfortável. A maioria vestia roupas sociais e trazia um olhar cansado no rosto, alguns trazendo os seus trabalhos ainda consigo na forma de pastas ou celulares que não paravam de tocar. Ver aqueles semblantes sempre me trazia a sensação iminente de que amanhã seria eu ali, fazendo as mesmas coisas responsáveis e muito, muito sérias. Mas eu sabia que assim como ontem, assim como hoje, uma força se apossaria de mim assim que o despertador tocasse pela manhã, movendo minha mão e cerrando meus olhos, só me libertando para viver o dia depois das quatro da tarde, pelo menos.

Você deve estar pensando que eu sou uma grande preguiçosa, e eu nem vou tentar te dizer que isso não tem nada a ver com o meu problema. Mas a verdade é que, em grande parte, não tem. Eu fui diagnosticada desde criança com SAFS, uma síndrome que faz com que meu ciclo biológico seja diferente do padrão. A SAFS se manifesta em diferentes intensidades, e no meu caso, meio que faz de mim uma coruja-humana. Até acordar às quatro é uma luta.

Estava tão concentrada nas histórias por trás daqueles breves encontros, que nem percebi que o rapaz de avental verde de cabelo desgrenhado vinha em minha direção. Ele deve ter percebido minha surpresa, porque me deu um sorriso meio sem graça antes de dizer:

— Desculpe incomodar, moça, mas nós estamos fechando.

O quê? Mas eram só… E então eu olhei pro relógio: oito e dez. Assenti com a cabeça e me dirigi ao caixa, chateada comigo mesma. Não era justo que eu não pudesse aproveitar aquelas experiências que as outras pessoas viviam como se fosse algo comum. E por falar em comum, a maioria das pessoas não levava minha condição à sério. Achavam que se eu me esforçasse mais, se eu "realmente quisesse", eu poderia viver uma vida normal. Eu duvido que qualquer uma delas seria capaz de levantar às quatro da tarde se tivessem o meu grau de SAFS!

Saí do Café com um sentimento de tristeza que eu já conhecia. Não tinha vontade de ir para nenhum barzinho ou balada, o que excluía praticamente todas as opções de lugares abertos àquela hora. Fui caminhando pra casa de cabeça baixa, pensando em como seria legal se houvesse um Café para onde eu pudesse ir, sem ter que me preocupar com o horário. Eu fazia o caminho de volta de forma automática, enquanto me concentrava em sonhar acordada, até que alguma coisa chamou minha atenção. Um prédio que eu nunca tinha visto antes naquela rua. Estava espremido entre uma loja de roupas e um prédio de escritórios, como se tivesse sido esquecido ali. Um portão alto de ferro dava entrada para um pequeno jardim, com uma trilha de pedras que levava até a porta larga. A pintura estava bem descascada, mas fazia pouco para prejudicar a beleza da arquitetura. As janelas eram grandes, as paredes do andar superior eram repletas de adornos que indicavam sua idade e, bem no centro, acima da porta, uma carranca enorme me encarava.

Foi amor à primeira vista. Me aproximei e tentei abrir o portão de impulso. Claro que estava fechado, mas uma parte de mim ainda dizia que eu podia tentar abrir uma fresta e passar lá pra dentro. Balancei a cabeça para afastar aqueles pensamentos que nem pareciam meus, e me lembrei que deveria tomar cuidado. Estava começando a anoitecer, e aquelas ruas poderiam ficar perigosas. Além do mais, alguém poderia me ver ali e pensar que eu estava tentando invadir. Afinal, aquele prédio certamente tinha sido tombado como patrimônio histórico…

E foi aí que eu vi a placa de "vende-se". Não lembro de ter dado muita importância para essa informação na hora, mas acho que uma parte de mim já tinha começado a bolar um plano. Só percebi que havia salvo o número da imobiliária quando me sentei no sofá de casa para checar as mensagens no celular.

Esperei a hora da imobiliária abrir para ligar pra eles, só de curiosidade. A funcionária que me atendeu teve dificuldades de achar o endereço que eu havia visto. Aparentemente ele estava fechado há quase uma década, e nenhum consultor havia levado clientes para visitar o local há muito tempo. O que me assustou foi o preço que a moça me informou: chegava a ser mais barato do que o meu apartamento!

Algumas horas de conversa depois, um pouco de boa vontade da minha vendedora (eu ainda não sei como aprovaram o meu financiamento), e o número 4 da Rua Capela da Lagoa estava agora no nome de Lívia Antunes. Euzinha. Agora eu só precisava decidir o que fazer com ele.

Foi a ideia de abrir um café que começou tudo isso, mas agora, depois de ter dado o primeiro passo, eu já não tinha mais tanta certeza. Nunca fui uma boa planejadora, mas sabia que não poderia fazer aquilo sozinha. Então eu falei com a Tati, que tinha sido minha colega no ensino médio. Não nos falávamos há algum tempo, mas eu sabia que ela tinha feito curso de barista pelos fotos que ela postava no Instagram. Senti um misto de alívio e felicidade quando ela ouviu minha proposta e topou na hora, aceitando a vaga de barista tão de ímpeto quanto eu ao comprar o prédio.

Se o entusiasmo de Tatiana me fez acreditar no futuro do nosso empreendimento, a reação do meu pai ao ouvir a notícia quase me fez ligar para a imobiliária e cancelar o contrato na mesma hora. Ele disse que eu havia sido imprudente, e vamos concordar que ele não estava de todo errado nesse sentido, mas eu precisei tirar o telefone do ouvido pra não ficar surda com os gritos. Terminei a conversa com ele um pouco chateada, mas confiante de que iria impressionar ele com os resultados!

Levou mais uma semana e boa parte das minhas economias para realizar a reforma necessária no prédio. Tatiana me ajudou durante todo o processo, escolhendo equipamentos, decoração e tudo o mais que fosse preciso. Quando organizamos as coisas para a inauguração no dia seguinte, não pude deixar de olhar pra tudo aquilo e sentir um enorme orgulho. E pensar que eu não sabia nem que precisava de um alvará quando comecei aquilo! Me despedi de Tatiana e confirmei com ela o horário da abertura no dia seguinte: nosso funcionamento seria das seis da tarde às seis da manhã.

No dia seguinte eu acordei às quatro da tarde me sentindo bem, como há muito tempo não sentia. Quando cheguei no Café, Tatiana já estava esperando sentada em um banquinho que havíamos posto no jardim da frente. Ela apontava o telefone de um lado para o outro, caçando pokémons. Abriu um sorriso animado quando me viu, e eu agradeci mentalmente mais uma vez por ter ela ao meu lado.

— Bem-vinda ao Café Goet, mademoiselle! — Tati gesticulava bastante enquanto falava com um sotaque europeu forçadíssimo.

Era mais um dos personagens dela. Tati estava estudando para ser atriz, e fazia parte do seu método estar constantemente interpretando algo ou alguém. Eu achei que, para um Café que só funciona de madrugada, ela poderia se tornar um diferencial bem divertido. Hoje, ela era algum tipo de governanta, mas não pedi detalhes do personagem. Ela preferia que as pessoas interagissem com eles como se fossem "pessoas reais".

Eu destranquei a porta e nós entramos juntas no que seria o nosso primeiro dia de trabalho. Não pude deixar de admirar o resultado do nosso esforço: as delicadas mesas e cadeiras brancas sobre o chão de parquet reformado, a enorme e confortável fileira de sofás próximos à parede, o pequeno balcão de mogno com tampo de mármore que levou horas para ser arrastado até ali…

— Os clientes devem chegar a qualquer momento. Precisamos organizar a decoração!

— Oui, oui! — Tatiana me ajudou a colocar os vasos de flores sobre as mesas e depois foi verificar mais uma vez os utensílios de cozinha. As luz dourada do lustre era refletida pelos vasinhos de flores, aquecendo todo o ambiente.

Fui em direção à porta, me virei e olhei para Tati em busca de ajuda. Ela fez um gesto encorajador com a cabeça, e eu respirei fundo. Abri a porta e dei um giro na plaquinha do lado de fora, sinalizando pro mundo que o Café Goet estava aberto.

E depois disso, nada. Nossa animação e expectativa se transformou em apreensão com o passar das horas, e mais algumas horas depois, já beirava o desespero. Tentamos colocar alguma música ambiente para afastar o medo, mas foi a nossa única companhia durante as primeiras seis horas de trabalho. Nós começamos a conversar sobre o que poderia ter dado errado. Estávamos satisfeitas com a divulgação que havia sido feita online, e muitas pessoas confirmaram presença na inauguração. Mas, a não ser que nossos amigos das redes sociais tivessem subitamente se tornado invisíveis, todo mundo havia desistido na última hora.

Como que para provocar meu pensamento sobre amigos invisíveis, por volta da uma da manhã eu e Tati ouvimos três batidas fortes na porta. Levantei rápido, sentindo uma onda de adrenalina tomar conta do meu corpo com a promessa de clientes.

— Olá, seja bem-vindo ao Café Goet! — Eu disse, para ninguém que pudesse ouvir.

Embora fosse tarde da noite, a lua brilhava grande no céu, e a luz dos postes clareava bem a rua. Não havia ninguém ali, nem no banco do jardim, nem próximo ao portão que dava para a calçada. Olhei para Tatiana, certa de que havia ouvido alguma coisa, mas ela só deu de ombros. Fechei a porta e voltei para dentro.

Já eram mais de duas da manhã quando ouvi de novo as três batidas. Agora eu tinha certeza! Corri para a porta e a abrir rapidamente, desta vez pulando as boas-vindas e examinando os arredores à procura do sujeito que batia na porta. O portão da frente estava fechado, e eu duvidava que alguém poderia ter sido rápido o suficiente para bater na porta e fugir. Coloquei um pé para fora e já me preparava para descer os degraus e investigar o pátio, quando um sentimento nauseante surgiu como um alerta na minha cabeça. Se alguém estivesse se escondendo em nosso jardim, seria inteligente ir atrás dessa pessoa? E se fosse alguém perigoso?

Voltei rápido para dentro e fechei a porta, encontrando no olhar de Tati a mesma apreensão que eu sentia.

— Tá tudo bem. Alguém deve estar sacaneando a gente no primeiro dia, é só isso.

Mas eu pude perceber a minha própria insegurança ao dizer aquelas palavras. Para tentar tranquilizar Tatiana, arrastei uma cadeira e me sentei bem ao lado da porta.

— Na próxima vez que esse palhaço bater na porta, não vai conseguir fugir.

Na verdade, eu achava que àquela hora da madrugada, a pessoa ia simplesmente desistir de ficar nos assustando. Mas às 3 horas da manhã eu ouvi as batidas de novo.

DUM!

Minha frustração com o fracasso do primeiro dia falou mais alto do que o meu medo. DUM! Derrubei a cadeira pra trás ao me levantar e escancarei a porta.

DUM!

Senti meu corpo ficar mais leve quando meus pés se ergueram do chão, e minha visão ficou preta quando algo acertou a parte de trás da minha cabeça. Ouvi os gritos de Tatiana e senti suas mãos nos meus ombros quando ela correu e tentou me tirar do chão. Coloquei a mão na nuca esperando ver sangue, mas acho que não foi pra tanto. A dor ainda era forte o suficiente para me impedir de pensar direito.

DUM. DUM. DUM!

As batidas continuavam, mas agora não vinham do lado de fora. Eu podia ver o parquet recém lustrado afundar com golpes de uma marreta invisível, vindo em nossa direção. DUM.

DUM. DUM!

O último impacto foi forte o suficiente para fazer com que eu perdesse o equilíbrio, levando Tatiana para o chão comigo em um abraço. O parquet destroçado estava bem à nossa frente. Fechei os olhos quando imaginei aquela força invisível caindo sobre nós, mas não foi isso que aconteceu. Pude sentir um bafo quente cair sobre o meu rosto, e uma voz grave fez tremer todo o Café, derrubando um vaso de flores ao chão.

— EU SOU GALANTYR, O ACORRENTADOR, LÍDER DO BANDO DE CAÇA DE DITE. O QUE VEM AGORA?

Precisei tapar os ouvidos, porque essa voz monstruosa vinha de algo bem à minha frente. Eu podia sentir o hálito e a saliva da coisa respingando no meu rosto, mesmo sem poder ver nada.

— Sai daqui! Eu vou chamar a polícia! Pare de se esconder! — eu dirigia meus gritos para todos os lados, ainda abraçada em Tatiana, que tinha os olhos arregalados como os de uma coruja.

— SAIR? POLÍCIA? ESCONDER?... — A voz ainda era forte a ponto de fazer nossos corpos tremerem, mas o tom de voz mudou um pouco . — O QUE VEM AGORA?

— Quem está fazendo isso?! — Eu havia começado a chorar sem ao menos perceber, quando a raiva e a frustração com aquele dia se tornavam um pouco mais insuportáveis. — Apareça!

— OH. VOCÊ NÃO ENXERGA AINDA. SAQUEI.

E alguma coisa cobriu toda a minha visão, algo que demorei alguns segundos para identificar. Pelo tamanho da cabeça, parecia uma enorme cabeça de touro mergulhada em água fervente. A pele tinha um tom carmesim, os chifres eram enormes e retorcidos como a tuba de uma banda da escola. Os traços do rosto, porém eram quase humanos. Olhos pequenos e vermelhos, grandes narinas que mal se projetavam para fora do rosto e uma boca grande, com dentes pontudos saltando para fora dos lábios.

Conforme eu me arrastava para trás, buscando fôlego para gritar, percebi que a coisa estava de abaixada. Era grande o suficiente para bater no teto, mas estava de joelhos na minha frente.

— Mon dieu!

Por um momento, eu havia esquecido de Tatiana. Enquanto eu estava completamente tomada pelo pavor, ela havia se levantado. Seu olhos de coruja estavam mais arregalados do que nunca.

— Lívia, você precisa ver isso! — Ela disse, enquanto esticava uma mão na minha direção.

Eu pisquei os olhos na direção dela, mal acreditando no que ela me dizia. Com aquela coisa parada há poucos centímetros de nós, o que poderia ser tão importante? Foi nesse momento que alguma coisa dentro de mim parou de funcionar, e a minha cabeça desistiu de colocar sentido nas coisas. Era a sensação de estar dentro de um sonho, porém sem ter a mínima dúvida de que aquilo realmente está acontecendo.

Aceitei a mão que ela me estendia e me ergui, tomando cuidado para não me aproximar nem mais um passo daquela coisa. E foi aí que eu entendi o motivo dela estar daquele jeito.

Nas mesas do Café, no enorme sofá do canto, e até mesmo de pé próximo ao balcão: dezenas de criaturas das cores mais diversas, com chifres, asas, escamas e cascos, vestidos em couro e aço e ossos e coisas que eu não era capaz de reconhecer. Todos lembrando de alguma forma aquela coisa que estava parada no meio do meu salão.

Estávamos de casa cheia em nosso primeiro dia no Café Goet.

avataravatar
Next chapter