5 Davi

A chuva havia voltado a cair com força, lavando o sangue de nossas roupas. O motorista de ônibus deve ter pensado que eram apenas dois jovens que tinham bebido demais, assim que subimos apoiados um no outro.

Sentamos lado a lado no fundo do ônibus. Haviam várias coisas que eu queria perguntar, mas precisava me concentrar em recuperar o fôlego.

— Você já... Conhecia… Aquele cara?

Galantyr mantinha o olhar fixo à sua frente.

— Eu trabalhava para ele até pouco tempo.

O ônibus ia para o centro da cidade. Quando chegamos em uma subida, Galantyr apertou o botão para descer e me conduziu para fora com ele. Seguimos pela calçada, nos protegendo da chuva sob os toldos das lojas fechadas. Quebramos em uma meia dúzia de esquinas, até o ponto de eu não saber dizer exatamente pra que lado ficava o quê. Paramos em uma rua estreita, em frente à uma casa antiga que lembrava um pouco o Café, porém muito maior. Nenhuma luz lá dentro.

Poderia pensar que se tratava de uma mansão abandonada, não fosse os dois homens em capas de chuva que estavam guardando o portão. Galantyr se aproximou. Com as costas apoiadas no muro do outro lado da rua, não pude entender o que ele conversava com os seguranças. Mas a forma como um deles colocou a mão no ombro de Galantyr já deixava claro que não éramos bem-vindos. Nós já havíamos tido nossa cota de problemas naquela noite, e eu pude perceber que Galantyr estava perdendo a paciência. Como ele estava de costas pra mim, não pude ver exatamente o que era o brilho vermelho que veio de seu rosto, iluminando a cara do segurança que estava mais próximo. Pela forma como ele gritou e se jogou no chão, sendo logo seguido pelo segurança que estava ao seu lado, deve ter sido algo bem característico de Galantyr.

— Desculpe, senhor! Não o reconheci. — disse o segurança,agora com a cara quase colada na calçada.

Galantyr não se deu ao trabalho de responder. Apenas fez um gesto para que eu fosse em sua direção enquanto passava pelo portão. Me vendo mancar em sua direção, ele lembrou do machucado na minha perna e voltou para me ajudar.

— Apressa o passo, — disse ele, passando o braço sobre as minhas costas — já consigo sentir o Caçador vindo até nós.

A mansão estava completamente escura. Um raio atravessou a grande janela dos fundos do aposento, iluminando as escadas que davam para duas alas opostas. Descendo por elas e vindo em nossa direção estava o garoto que havia visitado o Café mais cedo naquele dia.

— Bem-vindo de volta, Galantyr. Não esperava uma visita sua. Como conseguiu quebrar o selo do Café? — só então os olhos dele caíram sobre mim, e seu rosto assumiu aquela expressão raivosa de antes. — Você!

O garoto desceu o último lance de escadas e veio em nossa direção, e quando ele colocou a mão dentro do sobretudo, já sabia o que ele estava procurando. Antes que pudesse dar mais um passo em minha direção com a lâmina na mão, Galantyr me soltou. Quase caí quando perdi meu ponto de apoio, por isso foi difícil acompanhar o que acontecia. Ouvi um som abafado e vi o corpo do garoto se dobrar. Quando olhei de novo, Galantyr estava abaixado sobre ele, o joelho pressionado em algum ponto de suas costas. O punhal escorregou de sua mão.

— O que você está faAAAH! — ele tentou protestar, mas Galantyr o pressionou com o joelho.

— É melhor nem tentar, Davi. O nosso contrato já foi encerrado. Agora, — Galantyr pegou a mão dele com a sua e levou para dentro do sobretudo — destrua o sigilo do Caçador, e eu te deixo ir.

Davi deixou escapar uma risada, que mais parecia um suspiro por conta da pressão nas suas costelas. Galantyr aliviou o peso do joelho para que o garoto pudesse pescar o sigilo de dentro do bolso.

— Ok, ok… — o papel que tinha em suas mãos era idêntico àquele que havia sido deixado no chão do Café. Ele começou a estender a mão pra trás, mas antes que Galantyr pudesse pegar o sigilo, ele levou o braço com tudo em direção ao chão, prensando o papel com a palma da mão. — Ou eu posso fazer isso!

Não sei dizer se os gritos do garoto eram só por causa do joelho de Galantyr em suas costas, que agora parecia ter ganhado ainda mais peso, ou se tinha alguma coisa a ver com o círculo de fogo que riscou o chão da mansão. Uma labareda de quase três metros se materializou bem ali, e o Caçador saiu do meio das chamas, vindo pra cima de mim.

Eu dei um passo pra trás, procurando os olhos de Galantyr. Ele havia tirado o garoto do chão, e agora segurava a cabeça de Davi com as duas mãos, uma mão sob o seu queixo e outra sobre a base do crânio. Eu já havia assistido filmes suficientes pra saber o que aquilo significava.

O Caçador vinha lentamente na minha direção, muito diferente dos seus primeiros ataques. Eu pensei que ele poderia ter ficado ferido depois de ter sido jogado na frente do trem, mas parecia que havia algo mais ali. Ele também olhava na direção de Davi e Galantyr, como se esperasse alguma coisa.

— Vamos, demônio. Mate ela! — Davi gritou.

— Você não quer fazer isso, garotão. — Galantyr falava na orelha de Davi — Se o seu demônio acabar com o meu contrato, eu te mato na mesma hora.

— Então parece que vocês dois vão tomar uma mijada no fim do expediente, hoje. — disse Davi, fazendo um gesto com um dedo trêmulo para que o Caçador continuasse.

Eu me preparei para o pior. O medo era tanto que eu mal sentia a ferida na perna. Meu instinto me dizia para correr, mas eu sabia o quanto aquilo tinha dado certo na última vez. O Caçador avançava com as mãos estendidas à frente do corpo, as lâminas quase me tocando quando uma voz ecoou pelo salão, tão alta que na hora eu pensei que havia mais um demônio ali conosco.

— CHEGA!

Todos nos viramos em direção ao topo da escadaria, em direção aos passos. Os sapatos de couro estalavam despreocupadamente a cada degrau que o homem descia. Seu rosto estava encoberto pelas sombras, apenas a armação do seu óculos refletindo alguma luz. Sua barba grande, quase toda branca, descia como uma gravata pelo pescoço, combinando com o terno cinza que em algum momento ele parou para ajeitar, levando as mãos aos ombros.

O homem falou com Davi, dando pouca atenção para a situação ou para o demônio que ameaçava a vida do jovem.

— Filho, você podia só para variar um pouco ser menos filho da puta? Destrua esse sigilo de uma vez.

Davi sustentou o olhar do velho pelo que pareceu uma eternidade. Depois, com muito esforço por causa da pressão de Galantyr no seu pescoço, pegou o papel do chão. O papel começou a soltar fumaça e prendeu fogo ainda em sua mão, assim como Pólux havia feito com o outro sigilo. Eu senti uma corrente de vento me atingir o rosto subitamente, e me virei na direção do Caçador. Ele havia desaparecido.

— E você, — agora o velho encarava Galantyr — além de negligenciar o seu trabalho, agora anda por aí fantasiado de humano?

Até então, eu nunca tinha visto Galantyr agir daquela forma. O demônio desviou o olhar, adquirindo um súbito interesse pelas próprias botas. Pelo menos não deixaria o velho sem resposta:

— Eu não te devo nada, Elifas. Tenho um novo contrato agora.

O homem ergueu as sobrancelhas por baixo dos óculos, depois começou a olhar para os lados, como se estivesse procurando alguém. E então parou os olhos em mim.

— Ah, sim. Prazer, eu sou Elifas Salles, o dono desta casa.

Ele estendeu a mão em um cumprimento. Eu apertei, de repente achando minha atitude um pouco patética.

— Me diga, senhora. Galantyr deve ter comentado alguma coisa sobre seu último trabalho?

Eu procurei o olhar de Galantyr, mas ele ainda estava fitando o chão, agora com as mãos nos bolsos. Elifas percebeu minha confusão.

— Sim, este distinto cavalheiro infernal em forma humana é o nosso Acorrentador, responsável por capturar os demônios que ficam vagabundeando na nossa cidade. Mas aparentemente ele decidiu tirar férias, desde que a senhora reabriu a casa.

Davi, agora livre do aperto de Galantyr, avançou em nossa direção:

— Pai, eu tentei explicar a situação! Mas essa idiota…

— CALA A BOCA! — a voz do velho saiu com toda força novamente, mas logo assumiu um tom mais agradável, embora sua expressão ainda fosse severa — Devemos sempre respeitar o dono da casa, e você sabe disso.

Elifas se dirigiu novamente a mim: — E você, como já deve saber, é a nova dona da casa. Então permita-me ser o infeliz que vai te atualizar sobre a situação.

Eu deixei ele falar. Embora eu já fizesse ideia de muitas coisas do que ele me disse, achei melhor não interrompê-lo. O que eu ainda não compreendia da história, porém, era o mais importante (e perigoso): a ausência de Galantyr foi como um convite para que mais demônios fossem evocados para a terra. Sem o Acorrentador para bani-los ou capturá-los, a maioria não via motivos para voltar para casa. Lembrando da bagunça que era o nosso Café, estremeci só de pensar naquelas criaturas andando soltas por aí.

— Então, é só pedir para Galantyr voltar a trabalhar — minha afirmação saiu mais como uma pergunta.

— Ah, agora é um pouco tarde para isso. — um sorriso estranho apareceu no rosto de Elifas. — Uma congregação de demônios decidiu formar uma espécie de sindicato e abrir um portal para o outro plano. Mesmo que Galantyr seja capaz de banir todos eles, o que eu acho pouco provável, a porta ainda estaria ali.

— Então, como Galantyr pode destruir a porta?

— Não pode. Precisamos de uma chave para fechá-la.

Minha vontade de me envolver com a situação desapareceu quando ele disse "precisamos". Acho que Elifas notou o meu desânimo.

— Não, não se preocupe com isso! Eu vou providenciar a chave. Só preciso da sua cooperação… Ou melhor, do seu demônio.

Galantyr me cortou antes que eu pudesse responder:

— Você já se sente segura?

— Eu… Acho que sim? — respondi.

E assim, em um piscar de olhos, Galantyr também havia desaparecido. Eu olhei para Elifas, que deu de ombros.

— É, acho que ele não está com muita vontade de voltar a trabalhar. Mas não é algo que ele pode escolher não fazer.

Eu não gostei muito da forma como ele disse isso, mas entendi a importância do que ele me pedia. Ou ao menos eu achava que entendia. Para mim, também não havia escolha, então concordei em ajudar como pudesse.

Elifas bateu as mãos, animado, enquanto Davi fazia o melhor possível para ignorar minha presença.

— Ótimo! — disse Elifas — me dê alguns dias para conseguir a chave. Davi vai levá-la até o Café, quando for a hora.

Davi começou a ensaiar um protesto, mas apenas um olhar de Elifas foi o suficiente para calar sua boca. Um silêncio um tanto quanto constrangedor tomou conta do salão quando tudo havia sido dito.

— Então, acho que vou indo…

Tentei dar um passo em direção à porta, mas lembrei do machucado assim que a minha perna falhou. Elifas fez um gesto para me segurar, mas eu afastei a mão dele.

— Opa, tô bem, não se preocupa.

— Acho que seria bom dar uma passada no hospital para ver essa perna. — disse Elifas.

Fiquei esperando, mas ele não disse mais nada. O silêncio que se formou a seguir conseguia ser ainda mais constrangedor que o anterior.

— Então, eu meio que esqueci de botar o celular pra carregar na hora de correr do demônio. Será que algum de vocês poderia me chamar um Uber?

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