4 Caçados

Eu queria começar esse relato a partir do momento em que eu e Galantyr saímos do Café, mas eu tive o bom senso de deixar a Tati dar uma conferida no manuscrito antes de publicar ele na internet. E ela disse que, se eu não falasse sobre a transformação do demônio, meus leitores iriam encontrar meu endereço e me matar. Com razão.

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Então, vamos começar pelo momento em que ele começou a derreter, sua pele vermelha se soltando dos ossos. Confesso que eu dei uma leve surtada quando minha única esperança de sair viva daquela situação começou a desaparecer bem na minha frente. Quando, para meu desespero, a pele de Galantyr havia derretido completamente, pude perceber os órgãos internos começando a inchar dentro do esqueleto gigante. Antes que eu pudesse entender o que acontecia, tudo ficou vermelho.

Quando consegui limpar o sangue que havia coberto meus olhos, já não havia mais demônio nenhum. Parado onde antes havia Galantyr estava agora um cara, tão coberto de vermelho pela explosão quanto eu e os outros clientes do café (que não estavam gostando nem um pouco da situação). O homem penteou o cabelo para trás usando as mãos e o sangue que o cobria. Não parecia ser mais velho do que eu, embora as cicatrizes no rosto e nos braços o deixassem com uma aparência endurecida. O corpo era definido, mas nem de longe tão musculoso quanto o de Galantyr. Usava coturnos de cano longo e calças folgadas que estavam duras de sangue. Cobrindo o peito, vestia apenas o que parecia ser um colete à prova de balas. Ele sorriu pra mim.

— Precisamos ir. Não vamos querer brigar dentro do Café de novo.

Fui acompanhando ele para fora do Café, focada demais em acompanhar seus passos largos para conseguir pensar em perguntas. Tatiana foi atrás de nós, mas ele fez um gesto na direção dela.

— Fique. Não se preocupe, o Caçador virá direto atrás de nós. — ele deu um sorriso de canto para ela. — Não posso proteger vocês duas aqui fora.

Eu nunca vi Tatiana tão fora do personagem, embora ela estivesse sendo apenas ela mesma, hoje. Aquele sorriso bobo em seu rosto, eu também não conhecia. Balançou a cabeça para cima e para baixo e voltou para o Café, determinada a fazer o que Galantyr dizia, nem que pra isso fosse preciso lutar sozinha contra o Caçador.

— O que você fez com ela? — eu disse.

— Eu fui gentil.

— Pra onde a gente vai agora?

— O mais longe possível. E é melhor que você acompanhe, porque eu não vou te carregar.

Eu queria parar e perguntar exatamente o que estávamos fazendo, mas ele já estava correndo. Como eu disse antes, ele parecia ter a minha idade, mas havia algo no jeito com que ele se movia, uma objetividade fria, que me dava a sensação de que ele já estava fazendo aquilo há muito tempo. Não sabia ainda se podia confiar nele, mas não havia outra opção a não ser correr. Já havíamos percorrido uma quadra quando ouvimos o urro do Caçador vindo de longe. Galantyr parou.

— Não vamos conseguir ganhar distância o suficiente — ele disse, levantando o rosto para cima e começando a fungar alto. — Ali!

— O metrô?

— Vai nos levar onde precisamos ir.

— E onde seria isso?

Mas então ele já estava correndo de novo, e eu fui atrás. Galantyr olhava impaciente em minha direção, depois de ter saltado os dois lances de escada e pulado a catraca. Passei meu cartão e atravessei pro lado dele. Fora um velhinho do outro lado da passarela, não havia mais ninguém ali. Ainda assim, pude notar quando os olhos do velho cresceram por trás dos óculos e corriam de mim para Galantyr, e depois de volta para mim.

— Ele pode te ver?!

— Quando eu estou assim, sim.

O velhinho continuou mantendo contato visual com nós dois enquanto subia as escadas de fininho. Tenho certeza de que, se eu visse duas pessoas no metrô cobertas de sangue da cabeça aos pés no meio da madrugada, eu teria feito a mesma coisa. Assim que ele se foi, me virei para Galantyr.

— Qual trem nós iremos pegar?

— Qualquer um — ele disse, enquanto coçava o nariz com o polegar.

Nós vimos quando uma luz fez a curva lá no final do túnel. O som do trem que se aproximava não foi alto o suficiente para encobrir os ruídos do Caçador, que agora descia as escadas com aqueles passos de chumbo.

O trem não chegaria a tempo, eu disse em voz alta para Galantyr. Ele concordou com a cabeça, se abaixou para me encarar nos olhos e disse:

— Você vai precisar confiar em mim. Não tente correr, não importa o que aconteça.

Um estrondo se fez ouvir quando o Caçador chegou na altura da passarela. Minha atenção foi atraída para o som e, quando me virei na direção de Galantyr, ele não estava mais lá. E então eu entendi qual era o plano dele: me deixar lá para morrer!

Meu corpo tremia de medo e raiva conforme o Caçador se aproximava de mim, as lâminas curvas no lugar de suas mãos pendendo agora ao lado do corpo, sendo arrastadas no chão. Galantyr voltaria para o Café e diria que não pôde fazer nada para me salvar, e todos iriam acreditar nele.

O trem estava mais próximo, agora. Talvez, se eu corresse em sua direção, poderia passar pela porta antes que a criatura chegasse até mim. Sem pensar duas vezes, disparei na direção da luz. Eu já havia corrido quase até a linha amarela quando uma explosão de dor me levou pro chão. Me virei de costas para ver o Caçador quase em cima de mim, a lâmina da mão esquerda ainda pingando sangue. Minha panturrilha queimava onde ele havia me cortado, e eu podia ver uma mancha escura se formando ao redor do rasgo na minha calça. Tentei me levantar, mas minha perna falhou quando busquei apoio nela. O Caçador havia se aproximado enquanto eu lutava com a dor, e assim que eu estava novamente ao alcance de suas garras, ele atacou.

Não havia nada que eu pudesse fazer agora a não ser fechar os olhos em um aperto desesperado, tentando me levar para longe do que estava prestes a acontecer. Misturado ao som dos meus gritos, pude ouvir a pele se rasgando, enquanto a lâmina do Caçador se enterrava na carne. E então eu abri os olhos.

Galantyr estava de costas para mim. Eu podia ver a lâmina do Caçador se projetando através do colete à prova de balas, agora destruído. Suas mãos fortes seguravam os chifres de gazela da criatura. O monstro tentava em vão balançar os braços e se libertar de Galantyr, mas o demônio em corpo humano fazia força para chegar ainda mais perto. Um som horrível vinha de dentro de Galantyr toda vez que ele conseguia avançar mais alguns centímetros, e a lâmina o rasgava um pouco mais.

— Eu te… Disse pra…

Sua voz era abafada pelo sangue que subia através de sua garganta. Eu assistia enquanto ele lutava com o Caçador, fazendo tudo ao meu alcance para me pôr de pé.

— Não se aproxime!

Assim que ele disse isso, ouvi um estalo alto vindo do braço do Caçador. O monstro soltou um urro enlouquecido enquanto Galantyr se desvencilhava da lâmina que o atravessava. Eu havia conseguido finalmente me erguer de novo, mas precisei me jogar para o lado quando meu guarda-costas veio com tudo na minha direção, segurando o Caçador pelos chifres. Assim que passaram pela linha amarela, Galantyr deu um puxão forte nos chifres da criatura e se abaixou, suspendendo o Caçador no ar e o arremessando por cima da cabeça na direção dos trilhos. A criatura ainda estava no ar quando foi atingida pelo trem, que mal havia começado a diminuir a velocidade.

Me levantei com a intenção de mancar na direção de Galantyr e fazer algo para fechar aquele ferimento horrível, mas assim que me pus de pé ele já estava ao meu lado.

— Você está bem? — perguntei.

— Não foi nada — ele disse, enquanto passava um braço sob o meu ombro — vamo meter o pé daqui.

— Eu achei que nós íamos pegar o trem!

Ele sorriu pra mim e disse:

— Eu nunca disse que nós íamos pegar o trem.

Subimos as escadas em direção à rua. Minha perna doía horrores, mas Galantyr disse que não podíamos parar agora. O Caçador ainda viria atrás de nós. Fiquei até com vergonha de reclamar dos meu ferimento quando olhei para o rombo em suas costas. Como ele ainda continuava de pé?!

— Nós precisamos encontrar Davi e desfazer isso, antes que seja tarde para você.

— Quem é Davi? — Perguntei.

— O cara que te meteu nessa furada. Nós vamos até a residência Salles, fazer uma visita ao meu antigo mestre.

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